por Mauricio Salles Vasconcelos
A poética de João Vário, pseudônimo de João Manuel Varela, autor cabo-verdeano, se pauta pela adoção de um encaminhamento propositivo exposto na série de livros (9 publicados de um projeto de 12) intitulados Exemplos.
Linha a linha de seus versos, o dado contextual de um escritor nascido em um país arquipelágico, produzindo em língua portuguesa, traz contido em tal condição um enfrentamento tão interno quanto intenso da dimensão exemplar da escrita, colhida em vários referendos, tanto políticos quanto místicos, a um só tempo filosóficos e literários.
Tão flagrante quanto mobilizante é o modo como se plasma um embate inseparável da dicção enquanto traço imanente tornado expansivo das inumeráveis implicações de localidade, contingência político-existencial, verbalidade do texto e do testemunho inevitável construído de volume a volume. Documento de uma arte em uma inapartável conjuntura idiomática, histórica e cultural, sempre a surpreender pela ritmia que compõem os veios densos de interrelações capazes de escavar um conjunto de poemas densos, dotados, contudo, de um dinamismo convocador para quem os lê. Por força da pujança problematizadora de sua concepção, incapaz de se reduzir a uma monovalente lógica do dizer, ao delimitado referendo de uma única, previsível perspectiva em se tratando de poesia provinda do continente africano.
Em celebração aos 50 anos de independência de Cabo-Verde, a exemplo de outros países de África no mesmo 1975, sinalizamos a importante realização de João Vário no século XX, no campo da poesia.
Seu trabalho se destaca como um dos maiores escritos em português no período contemporâneo. Deixa à mostra sua sintonia com o que de mais elaborado em termos de arte, perquirição crítica e amplitude conceitual, foi escrito no último milênio, com a desbravação de uma vertente essencial de verbalidade, em nosso idioma, amplamente construída a partir de repertórios timbrados por uma diversidade – muito além das demarcadoras e disciplinarizadas linhas-de-ação hoje tão conhecidas e colmatadas para usos institucionais. Polivalente, transformadora face da poesia no território em que atuaram Eliot, Pound, Wallace Stevens, João Cabral, Saint-John Perse, Ashbery, Helder – citando-se poucos tomados pela fiação discursivamente complexa e inovadora de formas redefinidoras das ideias de cultura, nação, de subjetividade e, certamente, literatura – encontra no escritor cabo-verdeano uma experiência inigualável.
Avulta, então, o traço da africanidade através de uma ética exemplar pelo que traz de situacional, ao mesmo tempo em que sua potência de internalização dos mais diferentes recursos da poética, consonantes com os revezes mais agônicos da historicidade até hoje percutidas no já tão novo neomilênio, se mostra capaz de redesenhar o sentido do literário no mundo agora. Por meio de uma voltagem indagativa e escritural que faz da África um polo matricial perene e impactante, poeticidade e exemplaridade são tão fortalecidas quanto intercambiadas para se recompor as noções de humano e seus documentos de vida-arte nos transcursos do tempo.
De modo intrigante, não se apresenta, em Exemplos, um movimento de fundamentação em universais para sustentação de uma experiência escritural no dictum ocidental de poesia. Ao contrário, a indispensável abrangência de prismas por parte das literaturas de qualquer parte do planeta, não apenas numa noção territorializada, muitas vezes limitadora da própria compreensão do que é local, apresenta-se, no caso do autor africano, numa grande sintonia com o momento desses conflitivos, nada simplificadores, anos 2020. Tragicidade, densidade conceitual e também abertura para a dinâmica paratática, paroxística da arte da poesia numa era de blindagem social a requerer desafio inventivo da coletividade terrestre contra os poderes insuladores, quanto mais inscrevem, inserem representantes em categorias catalogáveis.
A imersão na base continental exemplarizada pelo conjunto poético de Vário, no qual o diálogo autônomo e enlarguecido com o patrimônio de escritas de diferentes procedências se evidencia, comparece como irrefutável referência. Pois, nessa porção da vida na Terra, sempre citada como lacunar, carente, desfavorecida em face das chamadas grandes potências de outros continentes, pode ser encontrada uma essencial reconfiguração das forças de criação e invenção – neste caso, de poesia –, como um dado adiante de tudo conhecido sobre literatura, história dos séculos, devir da comunidade planetária, tão bem apontada pelo grande pensador da atualidade, o camaronês Achille Mbembe.
A ética da África como potência faz despontar a realidade nascente de linhas cruzadas no espaço poético, em indagação e fomentação de uma nova formação de humanidade, uma transvaloração das ideias sistêmicas de política, povoação e pertença.
Ao compasso do exemplar, extraído da experiência multívoca da existência em um século (como aquele de João Vário) marcado por conflagrações ainda não apaziguadas, dispõem-se a variação exuberantemente expansiva de som-imagem-pensamento, como também o extremo desalinhamento aos impérios identitários imobilistas, estanquemente desistoricizados, presos a estratégias de ação improducentes, autorreplicativas, e às vias programáticas, sedimentadoras dos ordenamentos geopolíticos ainda em vigência.
Mesmo sob a baliza de pós-colonialismos, decolonialidades, vêm se instaurando nas últimas décadas uma escrita e um modo de ler sinalizados por desígnios paradoxalmente atados a uma ótica regressiva, sempre pendentes do referendo imperial, sem que se suscitem reviravoltas da ordem dos mundos à altura da globalidade macroeconômica a exigir posturas heterogêneas e táticas amplificadamente renovadoras.
Como se lê nas linhas sobre linhas dos sublevantes e destronadores exemplos legados em nove tomos de poesia para mundos em correspondência sob o construto techno englobador de um pretenso pacto transnacionalizado, universalizante. Em tal conjunção presente, esplendem, mais e mais na passagem de épocas entre um e outro milênio, inumeráveis concepções de história, arte, política inseparável de uma indagação radical de existencialidade, deixando vir à tona a imponente e insurreta forma de viver e fazer literatura segundo João Vário, um autor ressonantemente africano.
Exemplo 1
Exemplo Geral
EXTRATO
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Por certo deve o homem cegar os olhos
e ensurdecer os seus ouvidos
para que não morra fora do seu tempo
e não arruíne os seus dias de contentamento
e todas as coisas sejam igualmente boas
ao seu tempo de vivo.
Porque de tudo nos ficou esse dom de não o sentir,
de ficar com ele só quanto seja
a coisa que não rememoraremos.
Temor dos caos oblíquos, oh cumplicidade,
que transmigramos na vida, ao fugir de vida, sem vida.
E aqui somos, réprobos e mínimos,
os corpos mutilados, que repudiamos,
criando em um fingido amor,
que este veemente desejo exalta
de negar, de gritar, de blasfemar, de matar.
Porque sobretudo o desânimo, a má fé, o gozo pobre,
o horror e a danação, a raiva e o medo,
janeiro e julho,
o aplauso e a aposta, o tempo
de morte e o tempo de morrer,
tal a velhice da casa, o aumento dos ossos,
a resposta e a garantia
para a ossada e as fezes, os ossos e os benefícios,
porque sobretudo o tempo de morte e o tempo de morrer
são uma solenidade que temos para conosco, tanto
ou tal a facilidade nos torna legítimos.
Porque a morte é ato
de posse e ato de legitimidade.
E não se fala de desígnio, de vicissitude,
de escusa, de solicitude. Não se fale
de pausa, de simplicidade, de pouco dom.
Que pressa, que evangelho ou
magnífica história
cairá sobre o rosto absorto?
Nenhuma imortalidade é boa para a alma
e tudo de antemão sabe que não nos amamos.
Tal a morte é a nossa única grandeza,
assim celebramos o remoque, a hilariedade, o ganho macabro,
o remoque, a estupefacção, a coragem, o remoque,
a humilhação, o socorro e a punição.
Amizade do meio-dia, pó e generosidade, pó e criatura,
amizade sem condenação e conclusão, amizade
de março, de ano findo, com
a ancestralidade, o dinheiro e a estupefacção
com que se gasta um deus, despesas de seu ser e de seu tempo.
Ser e tempo. O termo, a generalidade, o grão especioso, a série.
E, enquanto instituímos os signos
e nos louvamos nos mortos imortais,
os que guardam os outros em seus crânios dobrados
para o resto que ficamos e o rosto que enchemos
ao pé deste mundo, regressando à morte,
na terra, no chão, na lousa, regressando à casa,
no sono, no soma, na saliva,
que ninguém enche de gravidade
ou da história dos avós, fitando o giz,
enche de veemência o que coligimos com eles,
tal enchemos de terra o que não é
da morte ou do tempo,
mas do discurso dos erros, o relógio e o sangue não sendo já
instrumentos ou rumos ou rodeios.
(Vário, 2000: 28-30)
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
VÁRIO, João. Exemplos. Livros 1-9. Mindelo, Cabo Verde: Pequena Tiragem, 2000.