Sobre o intento de quebrar cabeças

(Abilio Godoy)

Passatempoemas. Carolina Zuppo Abed. São Paulo: Quelônio, 2020.

Sobre o intento de quebrar cabeças

Abilio Godoy



“Que metro serve

para medir-nos?

Que forma é nossa

e que conteúdo?”


Carlos Drummond de Andrade,

em Claro Enigma.




A princípio, dois enigmas.

Primeiro: o que a esfinge do mito edipiano, o Gollum d’o Hobbit e o Charada dos quadrinhos do Batman têm em comum? Segundo: qual é a maior diferença entre esses três personagens e o eu-lírico de Passatempoemas de Carolina Zuppo Abed? A primeira advinha é fácil; a segunda, mais difícil; mesmo porque o volume de poesia saiu há pouco pela editora Quelônio e ainda não conta com fortuna crítica. Em todo caso, esta resenha convida os que já leram o livro e os que ainda não o fizeram, para uma ponderação lúdica desses dois enigmas, a partir dos quais pretende propor, à maneira divertida da autora, uma análise sem spoilers da sua obra.

Resolução possível do enigma fácil: a semelhança entre os três vilões consiste em que todos poderiam ser designados com o nome do Charada nos quadrinhos estadunidenses, Riddler, ou, em português, charadista. Todos os três são propositores de enigmas, que portam como armas contra os heróis das histórias que habitam. Todos os três, de algum modo, desafiam os protagonistas com as famosas palavras: decifra-me ou te devoro, ou destruo Gothan City. E é interessante como na tradição da ficção ocidental, ao longo de todo o contínuo que vai do popular ao erudito, encontra-se profusão de semelhantes charadistas. Da esfinge, que, no mito de Édipo, acossa viajantes nos arredores de Tebas, à porta mágica que desafia os alunos de Corvinal nos volumes de Harry Potter; dos enigmas proféticos de fadas e magos com que se defrontam os cavaleiros da literatura medieval ao robótico porteiro de Castelo Rá-Tim-Bum; a imaginação humana parece ter sempre se povoado dessas figuras desafiadoras, que não raro tomam a forma de guardiões implacáveis e parecem servir como representação do deparar-se tenso do eu com o claro enigma da máquina do mundo.

Trouxeste a chave?, perguntam as palavras, com a voz do eu-lírico de Drummond em “Procura da Poesia”, ao aprendiz de poeta quando este se aproxima delas. Trouxeste a chave?, indaga o mundo ao sujeito que busca entendê-lo sob pena de ser devorado em caso de resposta negativa. E, com efeito, essa mesma tensão já se nota em “jogo dos erros”, que abre os Passatempoemas. Qual será, afinal, a aposta do leitor com essa primeira esfinge? Serão os erros que ele busca mera incongruência entre dois textos, ou terá a palavra um sentindo mais profundo? Quais serão as consequências de não se ter a chave, ou, pior, de se trazer a chave errada, que destranca o caminho que não se quer tomar? Questionamentos semelhantes trazem “fact-checking”, cujo título e cujo formato de caça-palavras parecem remeter à busca pelo grão cotidiano de verdade no enorme celeiro da informação duvidosa; “reforma agrária”, cujo sistema de redistribuição hermenêutica de recursos semióticos ataca os alicerces gastos de estruturas socioeconômicas vigentes; e “horizontes”, em que a interação do eixo vertical com o horizontal incentiva o leitor a mergulhar nas palavras, para, quem sabe, atingir maior profundidade no sentir e no pensar.

E aqui é provável que já se tenha reunido pistas suficientes para resolver o segundo enigma. Se Carolina Zuppo Abed tem em comum com aqueles três vilões sua vocação de charadista, coloca-se no polo oposto quanto ao efeito dos seus quebra-cabeças. Em vez de ameaçar, ela convida. Em vez de se postar como guardiã de um caminho proibido, chama antes o leitor a percorrê-lo a seu lado, a recriar o movimento dos seus dedos enquanto reescreve o poema transformado, com muito cuidado e sem qualquer sadismo, num bonito labirinto. É como se o eu-lírico quisesse ser Dédalo e Ariadne ao mesmo tempo e, ao terminar de edificar a charada, entregasse o fio condutor na forma do lápis com que o leitor parte, ligando os pontos de “o outro”, ou preenchendo os círculos de “padrões dos descobrimentos”, em busca não só do caminho que leva ao minotauro – esse outro que, no conto de Borges, sonha com seu duplo enquanto espera por Teseu – mas também do caminho de volta desse encontro ao ponto de partida.

Afinal, se o encontro do eu com o real é campo fértil para quebra-cabeças, ainda mais enigmático pode ser o encontro do eu com o minotauro que por vezes aparece no espelho. Se é difícil pensar o funcionamento do mundo e buscar formas melhores de se relacionar com ele, não é menos complexa a tarefa da máxima délfica de conhecer-se a si mesmo. O ser humano é a resposta correta à advinha com que a esfinge confronta Édipo, que, não obstante, poderia ter respondido com o mero pronome eu. Não surpreende, portanto, que da interpretação de José do sonho do Faraó à publicação d’A Interpretação dos sonhos no despontar de um século de pesadelos; das Confissões de Agostinho a A Paixão segundo G.H., não tenham faltado tampouco na tradição literária ocidental as incursões nesses labirintos interiores de paredes refletoras. E a esse tipo de mergulho introspectivo convidam com seus subliminares segredos lógicos os poemas “cartilha” e “resolução de sistemas”.

Mas nem sempre os muros do caminho são de vidro ou metal polido. Nem sempre quer Astérion fantasiar um outro Astérion. Por vezes, a parede opaca é de fato a pele do outro e o vazio entre duas pessoas, difícil de preencher. No romance A vida modo de usar, Georges Perec, grande expoente do OULIPO, conta a história de um jovem milionário e seu inusitado projeto de vida. Por dez anos, Bartlebooth pretende ter aulas de aquarela com um pintor. Pelos vinte seguintes, planeja viajar o mundo e pintar a cada quinzena uma aquarela marinha, que será enviada a um fabricante de quebra-cabeças. Nos vinte anos finais, Bartlebooth quer remontar a cada quinzena um desses quebra-cabeças, que será então entregue a um terceiro colaborador, capaz de extrair das peças coladas a tela original, que será por fim imersa em solvente para que o processo termine como começou, com uma folha de papel em branco. Improdutivo, o projeto do rico megalomaníaco parece apontar a falta de sentido e a inutilidade últimas da vida. O que Bartlebooth esquece, porém, de equacionar, e o que gera boa parte da tensão do livro, é o papel fundamental que os outros terão no seu projeto e, como consequência, nessa vida que ele crê poder isolar e controlar. Semelhante engano não comete Carolina Zuppo Abed. Longe de criar monumentos ao nada ou joguetes sem-sentido, a poeta procura vencer em “mensagem na garrafa”, ao estender sua mão criptografada ao leitor distante, o vácuo que hoje, com telas sinistras, tanto separa o eu do outro. E, se “anotações para uma sinfonia poético-sexual” parece à primeira vista reproduzir a lógica niilista e auto-aniquiladora de Bartlebooth, é possível perceber com um olhar mais atento o quanto a forma especial do poema recupera antes o movimento ondulatório dos encontros amorosos, o preencher-se e esvaziar-se tão natural do beijo, do sexo, do abraço; a oscilação perene entre o nada e o absoluto também retrabalhada em “sobre vazios e preenchimentos”.

Mas se não são simples brinquedos, se não são portanto inúteis, se não conformam, como o jogo de Bartlebooth, um monumento à arbitrariedade da vida, para que podem então servir os passatempoemas?

Ao final, uma parábola.

Segundo uma velha lenda, o jogo de xadrez foi inventado por um sábio indiano, a fim de distrair seu jovem rei da paixão pela guerra. Entusiasmado com o novo passatempo, o monarca prometeu ao sábio qualquer recompensa que desejasse, e este pediu um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, dezesseis pela quinta e assim em diante até que se chegasse à sexagésima quarta. Surpreso com a aparente frugalidade do pedido, o rei acedeu sem hesitar, e só depois soube que a soma total de grãos devidos era de uma enormidade inatingível. Consternado, o monarca foi obrigado a solicitar o perdão da dívida, que o sábio concedeu de pronto, contente em instruir seu rei e distraí-lo de impulsos belicosos. Com um sorriso despretensioso de semelhante satisfação no rosto é possível imaginar a poeta enquanto cria para o leitor seus jogos e enigmas, desafiando-o, sim, a desacostumar-se do consumo conspícuo de respostas dadas, para aventurar-se a seu lado em busca de um conceito ampliado de poesia; mas com o intuito claro de reconstruir com ele, e nunca contra ele, a partir dos fragmentos fecundos das suas cabeças bem quebradas, soluções inovadoras e recompensas incontáveis.





REFERÊNCIAS:

Passatempoemas. Carolina Zuppo Abed. São Paulo: Quelônio, 2020.