“Você achava que os santos eram anjos.”
Marta me envia essa mensagem na noite em que está de plantão. Hoje leu no ouvido de um paciente em coma, a carta enviada pelo filho. Colocou a boca muito próxima à orelha. A orelha de um velho é sempre comprida. Cabelos, nariz, unhas, pelos, orelhas: crescem para sempre.
Meu avô queria ser escritor. Era analfabeto. Copiava as letras do calendário de Jesus. Escreveu um livro sem ler.
Antes de sair para trabalhar nessa noite, Marta lavou a louça. É seu principal compromisso. Pela janela cumprimenta a vizinha. Qual seria a casa mais escura? A mais vazia? Nunca viu ninguém passar por lá, além da velha, sempre pontual no ritual diário de olhar para o prédio da frente. Esquadrinha os andares de cima a baixo, com rigor nos olhos condena os varais e aparelhos de ar-condicionado pingando. Nunca nenhuma sombra passou atrás dessa mulher. Tampouco seu rosto se virou para trás, como quem conversa com uma visita. Menos ainda, foi vista andando com um celular na mão, em uma chamada de vídeo. Ela não tinha nenhuma companhia. Sua casa parecia suja. Dava para sentir o cheiro de corpo, talco e preguiça. A velha também sabia de Marta. Sabia que que em seu congelador havia uma carne crua há três anos, que rasgou o isopor e deixou escorrer o sangue, que hoje está duro, espesso, escuro. O sangue se misturou ao gelo, invadiu o cano do refrigerador, que range o zumbido do tédio das madrugadas da cidade.
Marta faz questão deste encontro. Tornou-se habitual esse cronograma do dia. Aperta a bucha contra o prato plástico e esfrega a sujeira que nunca saiu da mão da filha que acenou para a mãe, que estava sendo levada no leito, pelo elevador do hospital. Estava indo ser entubada. Esfrega a sujeira da mão do pai que apareceu nas notícias erguendo as cruzes espalhadas pela praia. Desconhecidos denunciavam a chacina pandêmica em um protesto contra a morte, quando desavergonhados derrubaram as denúncias. Este homem carregava no bolso a foto do filho e ergueu uma a uma, cada cruz que negaram existir.
Foi chamada no quarto 312, para trocar a sonda do senhor que parecia uma marionete, sustentado por fios que lhe ligavam à vida. Estava lúcido. Era fumante. Sobre seu pulmão se espraiou uma sombra, a sombra que cobria o parque onde brincávamos quando crianças. O sol caía e nós sabíamos que teríamos poucos minutos antes de sermos recolhidas para vestir um casaco. A sombra se deitava sobre o parque feito uma mulher lânguida, dobrava a esquina, escorrendo do vão dos morros que acolhia o sol. Cobria os casarões do sanatório abandonado, a praça, a capela, a nossa senhora dentro da gruta, as galinhas que deixavam penas por onde passavam – eram sempre coloridas – e as pedras, que no anoitecer tornavam-se pretas, tal como a terra e a grama, tudo ficava indiferenciado. Fugíamos da sombra, como quem se esconde do relógio, não queríamos o fim da brincadeira, disparávamos na cauda da luz, e observávamos sempre o último ponto perder a cor. Um descascado da mureta da varanda, sobre a qual girava um saquinho com água, para espantar as moscas. Ele girava no ar, sustentado por um fio de náilon e produzia a divisão prismática do último raio de sol. Ainda podia erguer o braço e segurar uma cor na palma da mão, por um instante, enquanto rodava calma a bolsa intumescida, para, na sequência, ver a sombra tomar tudo, até os olhos de nossas mães que gritavam pela janela, que era necessário vestir um casaco. Essa sombra tomou o pulmão do homem do quarto 312. Ele se levantou e abaixou a calça. Tirou a fralda. Marta viu o pinto de seu
pai. Mole. Viu o pinto de seu pai antes mesmo de ver seu rosto, atrás da máscara, atrás dos fios, atrás do prontuário. Não se viam há seis meses.
“Você achou bonito que os santos não podiam voar. Eram gente.”
Renata Conde, psicanalista, graduada em psicologia pelo IP-USP. Mestranda pelo PPGECLLP - Letras/FFLCH-USP, na linha de pesquisa Laboratórios de Criação, sob orientação de Maurício Salles Vasconcelos. Tem pós-graduação em formação de escritores pelo Instituto Vera Cruz. Autora dos livros de contos "Sol a Pino" (Editora Caravana, 2022) e "O dia em que a noite chegou mais cedo" (Editora Libertinagem, 2023); e organizadora do livro de ensaios "Misoginia e Psicanálise" (Editora Larvatus Prodeo, 2022).