Três poemas de Marcelo Ariel

“Somos disfarces. Inclusive, eu não vejo distinção entre o rouxinol e a árvore (…) Eu acredito — eu acredito não, eu sinto, porque tem a questão da BIOS e de tudo que envolve a BIOS — nos disfarces. Eu imagino que não há mais gênero”, declarou o poeta Marcelo Ariel no evento O homem tematiza o homem, que reuniu escritores para falar sobre a escrita masculina no século XXI, realizado pelo Lápis em fevereiro deste ano (o vídeo está disponível na íntegra aqui).


A seguir, apresentamos três poemas selecionados de Ariel, em convergência com sua participação no referido Encontro. Os dois primeiros são excertos de “Como Ser o Negro ou a Matéria Escura” (integrante de Com o Daimon, no contrafluxo, 2016) e o terceiro está no livro Tratado dos Anjos Afogados, publicado pela editora Letra Selvagem, em 2008.

1.

só existe uma rosa formada por todas as rosas

onde você tentou estar

a rosa negra

multiplicada pela matéria escura

isto deveria se chamar nascer

nascer ou se dizer

os três cérebros ofuscados por usarmos apenas um

não posso com essa linearidade dos massacres

ela, a vida fala agora , a língua da extinção

Marcelo Ariel tem quatro anos

e entra em qualquer casa qualquer mulher é sua mãe

o mundo em sua infanceanoessencialidade

no sobrenatural: eis onde realmente começamos

a vida é essa outra vida

nenhuma palavra vai entrar

nela

nenhuma divisão

nenhuma dicotomia

nenhum dualismo

O sono da linguagem

O lugar se chama Sete anos, o asteroide se chama

O Agora e rege a aparição dos postes batendo em nossa cabeça

A morte é o instante-já congelado, o tempo é o instante-já derretendo

lentamente o Iceberg-Eternidade

as bombas de nêutrons no mar de neutrinos

imune aos setes anos

O pólen negro descolando da Flor do Eterno

no transe do vento para os campos do interexterno

depois desenvolvi um comportamento cênico

por desconfiança

do mundo

onde não há vida, apenas sonho

estamos nele para que ele conheça a vida eterna

memória gravada nas coisas

desconfiança do mundo criado pelas palavras

desconfiança do mundo criado pelas máscaras

desconfiança do mundo encoberto pelas capas

Assim jamais será possível nascer ,

entre no paradoxo

do túnel fora do feminino infinito

para sentir depois a violenta saudade do feminino infinito

Myriam ou Eva são o Angélico

Estão dentro, com o Arcangélico, o Querubínico, o Daimônico

Enquanto aqui fora lentamente me transformo em um vapor cênico

girando em torno do inalcançável

empenhado em expor

sempre para si mesmo

uma esterilidade

facilmente adquirida

graças ao senso comum

caminho pelas ruas de cabeça baixa

como a maioria dos moradores de Cubatão

com uma fidelidade essencial

ao próprio obscurecimento

com uma camada enfraquecida de autodefesa

por dentro do cinza do ar

sou alguém que se descobre

infindávelmente negro ou seja

que descobre sua singularidade

seu pacto com a matéria escura

como uma matiz escura

da energia luminosa

e além desta destinação

tenho um outro acordo interno

com a invisibilidade, mas não com a nulidade

por isso este livro

a imunidade poética

2.

Agora estou vivendo em um dobra do tempo, eu todos os assassinados.

Estou numa espécie de Congresso Nacional de Indígenas

e ele declararam que todos os pardos

são índios

olho para meu reflexo

no espelho do banheiro

e vejo o jaguar-orquídea

e através da matéria escura

ele me vê.

3.

O Menino orquídea

Para Gil Veloso e Caio F.

que o corpo é uma floresta

por dentro

há corpos jardim ?

sim, como uma canção

O seu é uma orquídea

Descobri isso

quase no fim

do não entendimento

Descobriu o quê?

vamos voltar

para o começo

do poema

É para isso

que servem

as flores

que nascem

pelos caminhos

Para que?

Voltar

E no instante

fora do tempo

tudo ficou nítido?

o verdadeiro corpo

não nos abandona

jamais

Vocês estavam certas

Gertrude, Clarice, Hilda

era a orquídea

me dizendo

que só existe

uma alma

para tudo o que existe

está vendo agora?

Sim


Marcelo Ariel é poeta e ensaísta. Autor de Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem), Com o Daimon no Contrafluxo (Patuá), Ou o Silêncio Contínuo poesia reunida 2007-2019 (Kotter Editorial), Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020) entre outros. Participou como ator/roteirista no filme PÁSSARO TRANSPARENTE de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente, coordena cursos de filosofia e escrita em São Paulo e prepara o livro de ensaios A hiperinclusão-processos de cura da ferida colonial e a novela A Vida de Clarice Lispector.

*Nas próximas edições, o Lápis apresentará fragmentos das obras de Lucas Miyazaki, Felipe Souza e Mauricio Salles Vasconcelos, autores que também participaram do encontro