A radicalidade estética de Manifesto Contrassexual: um texto-dildo


(Oliver Olívia)

Por Oliver Olívia

(Ator, performer e diretor de teatro, transgênero não binário, bacharel em filosofia pela Universidade de São Paulo)



O que é preciso fazer é sacudir as tecnologias da escritura do sexo e do gênero, assim como suas instituições. Não se trata de substituir certos termos por outros. Não se trata nem mesmo de se desfazer das marcas de gênero ou das referências à heterossexualidade, mas sim de modificar as posições de enunciação.

(PRECIADO: 2017, p. 27)



Manifesto contrassexual é um texto de 2017 do filósofo Paul Preciado. Meu primeiro contato com esse texto foi em 2019, em uma escola de formação técnica teatral. Todos os alunos se reuniram para ler o texto em aula. Sua recepção foi bastante confusa e polêmica para a grande maioria. Eu fui extremamente tocado pela agressividade do texto, em sua maneira incisiva de afirmar um novo paradigma de gênero e sexualidade muito radical. Guardei Preciado como uma referência. Dois anos depois, decidi adquirir um exemplar do livro: algo que lembrava ser da ordem do espanto e do fascínio, de uma escrita que não pede licença e simplesmente se anuncia. Quando terminei, estonteado, me lembrei desse momento em que o li pela primeira vez na escola de formação teatral. Naquele contexto, não lemos o texto inteiro, mas breves fragmentos provenientes do começo da obra, e isso, como identifiquei após ler o livro como um todo, fez toda a diferença, pois a forma atípica do início se amplifica frente ao todo da obra e tem uma razão precisa de ser no que concerne ao que Preciado se propõe. Nesse ensaio intento refletir sobre os mecanismos estéticos presentes na estrutura do texto, compartilhar uma leitura de Preciado na qual se defende que o desenho de Manifesto Contrassexual pensa a experiência do leitor como mecanismo filosófico. Tal desenho não é um simples capricho estilístico, mas uma estruturação estética que potencializa o gesto da obra: a desmistificação da hegemonia cis hétero binária patriarcal através da identificação de sua artificialidade, como uma prótese.

Ilustração presente no livro Manifesto Contrassexual (p. 62)

Começo pensando a relação manifesto/filosofia: um manifesto geralmente é uma materialidade cujo gesto é decisivo, um posicionamento nítido que se consolida na verticalidade da escrita. É necessário que um manifesto tenha uma força afirmativa para que ele instaure a proposta que defende. A filosofia, por sua vez, é um exercício que propõe o debate, busca mover seu interlocutor a pensar por ângulos fora do senso comum, tende a fomentar perguntas. Desse modo, não é trivial o uso da estrutura do manifesto para um texto filosófico, mas um gesto provocativo: é a convivência do convite à reflexão realizada em uma afirmatividade contundente. Com isso, não quero dizer que a proposição filosófica e a ação de um manifesto são antagônicas, mas que é justamente dessa fusão que emerge a radicalidade do texto.

Esse jogo entre reflexão e acertividade está materializado nas seções iniciais: Primeiro, uma suposta explicação do que é a contrassexualidade, dada por um conjunto de afirmações nada banais sobre sexualidade e gênero, carregada de termos oblíquos e misteriosos como “tecnologias de inscrição”, “mecanismo de produção sexo-prostético”, “estruturas eróticas de poder”, os quais Preciado aparentemente não se preocupa muito em justificar, apenas os deixa ali, como um labirinto enigmático e brutal de um código novo. Depois, os “princípios da sociedade contrassexual”: treze artigos – nomeados dessa maneira, “artigo 1”, “artigo 2”, etc. – em que são elencados os preceitos da então sociedade contrassexual, escancarando essa concretização de uma outra lógica, literalmente postulada aqui para o leitor. Por fim, Preciado puxa o interlocutor para dentro do jogo, o convidando – ou, até, o desafiando, talvez – a fazer parte dessa lógica presente nesse manifesto: nas próximas páginas, está o “contrato contrassexual (modelo)”, com espaço para que o leitor preencha com seus dados, seu nome, a data e sua assinatura. Ao final, vem a seção “teorias”.

Na época, na escola de teatro, havíamos apenas lido alguns itens da seção “artigos”, e recebemos uma cópia do “contrato contrassexual”. Se lendo o livro na sua inteireza, a estrutura da obra já causa estranhamento, imagino que termos recebido apenas esses trechos, de maneira descontextualizada em relação ao todo da obra, apenas intensificou o efeito de incômodo que o texto traz. Lembro-me de um comentário me marcou bastante: uma mulher disse que o texto com certeza havia sido escrito por um homem, pois os homens são impositivos e violentos tal qual aquele texto era. Identifico nessa fala a sensação crucial que habita o leitor de Manifesto contrassexual: por que o texto é exposto dessa maneira? Qual a necessidade gestual dessa assertividade radical?

Alguns pensamentos sobre a razão desse incômodo frente ao texto: em primeiro lugar, não é o que se espera da forma de um texto filosófico, e, portanto, é um texto outro, estranho, e, até mesmo injurioso. Entretanto, essa experiência de choque e revolta é justamente fruto da relação existente entre o padrão naturalizado e a proposta que dele desvia. É nesse contraste, na existência do corpo estranho em diálogo com a expectativa geral e naturalizada da norma que tudo se revela, uma vez que o padrão é tal que nem é mais pensado enquanto possibilidade formal, mas enquanto única via possível, a definição direta e única de texto filosófico. Assim, a forma da obra e sua recepção já deflagra a existência de um estilo que é tomado como o estilo, e qualquer abordagem que transgrida tal estrutura causa estranhamento, confusão, e, até mesmo, revolta. Mesmo assim, é a presença dessa outra abordagem que revela a norma como um modelo, não como o natural. Pois bem, nesse mesmo caminho de transgressão da forma filosófica tradicional, em que se revela seu estatuto hegemônico e sua naturalização como norma, o gesto de Paul Preciado como filósofo que pensa os paradigmas de gênero e sexualidade vai trilhar: a explicitação da artificialidade das ficções bioculturais que habitam o escopo social, na qual o original não passa de cópia de si mesmo, produzido por tecnologias precisas e reprodutíveis, que podem ser engajadas de maneira ou normativa, ou terrorista[1], pois ambas podem ser produzidas dentro e a partir do mesmo sistema de mecanismos.

É uma empreitada complexa, pois o público da obra são em sua esmagadora maioria[2] as pessoas às quais o livro se refere e, portanto, pessoas que em grande medida o autor defende serem fundamentalmente concatenações prostéticas. A premissa do conteúdo da obra já carrega esse desafio sobre sua exposição. Como debater com alguém – como é próprio do gesto filosófico – sobre uma perspectiva possível em que o estatuto da pessoa não é gratuitamente garantido, mas tecnologicamente produzido e reproduzido? Afinal, relativizar – ou destituir – o estatuto ontológico de alguém é sempre um ato violento. Além disso, existe uma segunda camada para esse desafio, pois não é apenas uma proposição filosófica que pressupõe a destituição do estatuto ontológico do leitor, mas isso em movimento contrário a uma norma que, para além de subsistir em uma hegemonia invisível, fomenta e ampara uma deslegitimação em relação a qualquer prática desviante. Um texto filosófico sobre gênero e sexualidade, que defende a existência de um caráter artificial e prostético nas práticas sexuais e nos estatutos “homem” e “mulher”, e que tem como conceito norteador o dildo, tem sua legitimidade depreciada a priori, pois esse mesmo sistema que o autor relativiza, não obstante, existe de modo imperativo no imaginário social, e opera a fim de deslegitimar discursos que caminhem de maneira contrária à sua hegemonia. Assim, o que está em jogo é o exercício de propor um debate filosófico sobre uma estrutura que nem mesmo é identificada como tal. Ela habita a grande maioria dos leitores de modo natural, invisível, e carrega em si a impossibilidade de que um debate como esse seja estruturado. Com isso, um dos desafios de Preciado é dialogar com um leitor que, para além de receber uma proposta de destituição de sua ontologia primeira, está imbuído da negação a priori à reflexão proposta. Preciado sabe disso, e é daí que surge a organização estética da obra, sua necessidade como gesto: uma alternativa para que uma discussão, a principio sabotada, seja instaurada.

Nesse ponto, não acredito que seja o caso de dizer que o traço transgressor do texto caminha como uma imposição inflada para cavar espaços frente a um sistema que oprime sua possibilidade de existir. Pensar que Preciado aposta em uma textura agressiva e irônica pois “seria a única maneira de seu discurso ser possível” é uma perspectiva que nivela a complexidade da estruturação da obra. Não se trata de “fazer barulho para chamar atenção”, mas de plasmar no próprio texto o trajeto conceitual que ele desenvolve a partir da exploração do dildo como artefato histórico-cultural e, portanto, conceitual. Para expandir essa tese, é importante que seja trazida aqui uma breve exposição do que significa a imagem do dildo dentro da obra, e quais efeitos são produzidos a partir de sua análise.

O dildo é um objeto de plástico que tem uma função dentro do imaginário comum relacionada ao universo das práticas sexuais desviantes da norma cis hétero centrada. Ele é a cópia de um pênis real e, portanto, tem sua razão de ser para suplementar a ausência do pênis real em práticas sexuais LGBTQIA+: sexo entre duas pessoas de vagina, majoritariamente. Assim, nessa lógica, o dildo é a exaltação do imperativo da norma cis heterossexual, pois deflagra a incompletude da sexualidade não cis heterossexual, que precisa recorrer a uma cópia de um pênis real para se realizar, afirmando, portanto, o modelo normativo como meta generalizada que, se não é possível naturalmente, é reproduzido artificialmente. Partindo desse pressuposto comum, a inversão filosófica que Preciado realiza em Manifesto contrassexual é a de realocar os estatutos de natural e artificial, de original e cópia: em uma análise estruturante da história da sexualidade e seus dispositivos, o autor se move para a proposição de que o dildo não é uma cópia, mas uma evidência da própria construção tecnocultural inscrita na figura do pênis. Em meio à contínua concatenação de vestígios da plasticidade deixados por concepções acerca dos estatutos de sexualidade e gênero, o evidentemente artificial – o dildo – é realocado como igualmente construído, igualmente fruto de uma tecnologia advinda de uma hegemonia cis hétero patriarcal, assim como o pênis. Isso porque a fabricação do dildo em seu contexto histórico reflete como as validações da organicidade biológica do pênis são elas mesmas também forjadas e instaladas nele, apesar desse processo se passar por invisível, para que a realidade biológica do pênis se perpetue como real e incontestável. É assim que o filósofo constrói esse panorama filosófico que modifica as posições de enunciação (PRECIADO, 2017), ressituando o real como artificial, o artificial como evidência de uma realidade que historicamente se instalou como inexistente, como natural.

Ilustração presente no livro Manifesto Contrassexual (p. 51)

Com isso, o gesto crucial da obra, para além de sua relevância fundamental no debate contemporâneo sobre gênero e sexualidade, está na trajetória filosófica de elencar o artificial como força motriz de caminho para o real. Entretanto, o percurso conceitual do dildo e seus efeitos apenas é desenrolada – e de maneira mais coerente com uma estrutura textual mais habitual – na seção “teorias”, da metade para o final do livro. Então, voltamos para a pergunta central desse ensaio: qual a razão de ser daquele início estranho? Por que Preciado apenas não publicou a seção “teorias”? Ela não é suficiente para que sua proposição filosófica se concretize?

É nesse sentido que enxergo a beleza relacional entre formato, conteúdo filosófico, leitor e a consciência de sua experiência com a obra. Digo ser raso abordar o início atípco como uma mera exaltação que busca visibilidade em face à sua opressão eminente, pois defendo que sua proposição estética funciona tal qual o dildo como conceito norteador da obra. O texto inicial é chocante pois em grande medida se constrói a partir de uma artificialidade evidente: descreve e postula uma perspectiva de um paradigma sexual e de gênero que, aos olhos do leitor oriundo da lógica cis hétero binária normalizada, é obviamente uma criação, cuja estranheza advém do contraste entre sua estrutura e a estrutura natural, compartilhada e corroborada de maneira imperceptível por todos. A estranheza do texto para o sujeito fruto do imaginário normativo, desse modo, esteticamente recria a justaposição entre a figura pênis original e a figura pênis dildo prostético: o sistema de gênero e sociedade normal tal qual o leitor a compreende e o artificial sistema contrassexual que o livro postula. Assim, é a partir da recriação da contemplação intensiva do natural e do artificial que ambos se confundem, se espelham, se revelam como imagens ficcionais e prostéticas. Portanto, é necessário que a instauração manifesta da sociedade contrassexual seja recebida pelo interlocutor tal qual o dildo o é: revirando suas concepções tradicionais, causando incômodo, se apresentando como obviamente plástico e prostético, provocando sua invalidação como falso frente a uma norma hegemônica. É necessária que a proposição estética do texto seja como a do dildo, para que, assim como ele, possa se realizar o gesto filosófico crucial de revelar o real a partir do evidentemente artificial. Nesse sentido, penso que uma das genialidades da obra é se constituir de maneira quase cíclica: a primeira sensação sobre o início instaura sua recepção confusa e artificial, instaura o texto como um dildo sendo recebido pelo senso comum; a conclusão do final realiza o gesto de realocar o original e a cópia, propondo o panorama de igual artificialidade para ambas esferas; a releitura do início estabelece de maneira mais evidente o jogo de construção de um texto-dildo que é comparado com um texto-norma. A segunda leitura então acredito ser menos chocante, pois agora é se escancara o texto-dildo não em sua estranheza e invalidação, mas em sua potência como evidência da artificialidade das ficções culturais que organizam nossas experiências como indivíduos. Na segunda leitura, portanto, não existe mais um cenário imediato em que o leitor deve lidar com a artificialidade radical do texto, mas um em que ele deve lidar com a artificialidade inesperada do próprio mundo tal qual ele conhece. Nisso reside a potência desse texto-dildo.

Ilustração presente no livro Manifesto Contrassexual (p. 33)

[1] Termo que o filósofo emprega em sua obra seguinte, “Testo junkie”, descrevendo a si mesmo não como um transexual, mas como um “terrorista de gênero”.

[2] Salvo o caso de leitores que não tenham como referencial de mundo a cultura e estrutura estudadas por Preciado, majoritariamente as sociedades ocidentais capitalistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PRECIADO, P. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual.

Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro

São Paulo: N-1 Edições, 2017.