Maura Lopes Cançado: 

Anatomia de uma escrita indócil 

[Ana Pavla]

1 PRIMEIRO MOVIMENTO 

Marcha completando o pátio, o fim da linha sendo justamente o princípio da outra, sem descontinuidade, quebrando-se para o ângulo reto. Não cede um milímetro da posição do corpo, justo, ereto. Porque Joana julga-se absolutamente certa na nova ordem. Assim, anda de frente, ombro direito junto à parede. Teima em não flexionar as pernas, um passo, outro e mais, as solas dos pés quentes através do solado gasto. Agora o rosto sente a quentura do muro, voltado inteiramente, quase roçante até o fim da linha; onde junta ombro esquerdo e marcha de costas, na retidão da parede. Finalmente acha-se na metade da quarta vez, todo pátio contido no âmbito do olhar parado. Anda certo, costas deslizantes como lâminas, na proteção de seu tempo: o muro. Repete sentindo a certeza da quarta vez. Mais e mais – porque cumpre um dever.

Quantas vezes Joana marcha rigidamente de ângulo a ângulo?

Ninguém sabe. Nem Joana.

Vê-se parada imaginando o quadrado das horas. (...)

(Cançado, 2016: 15, grifo meu) 

Parecem os primeiros passos de uma coreografia. Talvez Pina Baush, de camisola branca, corpo em rigidez catatônica, também com braço colado à parede, deslizante em Café Muller (cena coreográfica no café, também um espaço cerrado, facetado, quadrado), estreante, em maio de 1978, em Wuppertal, cidade industrial na Renânia.

Mas não. Outros passos:

Abertura da página 15 do livro O sofredor do ver, de Maura Lopes Cançado. Área retangular amarelada onde se encenam os primeiros movimentos do conto No quadrado de Joana. Publicado em 1968, no hemisfério sul, Rio de Janeiro, uma década antes do espetáculo que acabo de citar.

O quadrado de Joana… O quadrado das horas. O quadrado dos muros. O quadrado das páginas. O quadrado de um palco?

Coreografia: arte ou prática de desenhar sequências de movimentos de corpos físicos.

Coreógrafo: quem cria coreografias.

Maura coreografa (enquanto escreve).

Leio-releio O sofredor do ver. As páginas são espaço de dança. As letras espacializam: partitura de movimentos.

Indício 1: dança, essa palavra. Surge explicitamente, assim, com todas as letras, como nome ou verbo, em metade das doze narrativas curtas desse livro, classificadas pela autora como contos. O dançar, no entanto, percorre todo o livro, ainda que de forma indireta. Por exemplo: no conto intitulado Pavana — que por sinal é uma dança de corte renascentista —  não se lê a palavra dança, mas o movimento coreográfico, a descrição dos gestos no espaço, está lá. Dança também não está grafada em O espelho morto, outra narrativa. Talvez porque, nesse conto, a personagem revela o medo de ver-se “eternizada em bloco de pedra” (ibid: 27). Ali está latente o pavor da imobilidade. A protagonista da narrativa está encolhida em seu apartamento. Ainda que mínimo e contido, o movimento ainda é tema, com o corpo estacionado, em circulação interna. Coreografia de um corpo estático sobre cenário.

Indício 2: além de dança, há outra palavra, marcha — que também nos remete a passos, movimento — que entra e sai, exibindo-se, repetidamente, por diversas narrativas.

Indício 3: a palavra corpo. Está em todos os contos do livro, menos em um — é, de novo, naquele mesmo O espelho morto. No entanto, nessa ficção, apesar de não haver menção ao corpo, em sua totalidade, o rosto e o olhar ganham foco.

Seria ainda pouco para afirmar o corpo em movimento, deslizante pelo espaço, desenhante, como força viva e central na obra de Maura Lopes? Então mais: os gestos. São onipresentes. Transcorrem e se sucedem, linha a linha, no deslocamento dos personagens anônimos.

Leio/assisto a essa montagem corporal.

Sim, também é visual.

Como num cinema? Parece que não. Cinema é sem profundidade. A tela é plana. Bidimensional. Maura é não-euclidiana, pós-Einstein: altura, profundidade, largura e tempo. Maura é quadridimensional. Escreve em meio a novas concepções mecânicas. Cria labirintos e desenha espaços apenas possíveis nos corredores labirínticos da palavra escrita. Talvez, se insistisse em comparar esse palco de linguagem: a narrativa desenvolve-se mais como números de dança.

“Movem-se ao seu redor. Sente que querem forçá-la. Joana, sem se virar, marcha de costas dois passos, para sentir-se hirta, ainda antes da queda” (ibid: 19). Aqui, o conto No quadrado de Joana está perto do fim. A protagonista marcha de costas, enquanto enfrenta olhares impacientes, antes de uma palavra nova, que a despertará. Na frente de Joana, o presente. Atrás, o futuro. E ela faz o giro. Experimenta a dorsalidade. Dorsality[1]. É preciso ver o que há atrás.


1.1 DEVIR-COREOGRAFIA

Por que não se dedica ao teatro?

                                  Por que não?

Não                   Não

                                                     Não

Estou caindo

                          indo

                                                    indo

(Dormindo talvez morra)

                           NÃO

Emerjo............................  (ibid.: 09)

Maura ensaia passos de dança no pátio do hospital psiquiátrico. As palavras são no texto-palco, desenhando movimentos no espaço. Maura performa. Dança-encena-anota. Depois reescreve, em um trabalho de linguagem — o texto, materializado, ganha corpo.

Em Hospício é deus: Diário I, o primeiro livro de seus únicos dois, ela escreve: “Para não morrer de tédio trepei no muro, alcancei o telhado do galpão, rasguei meu vestido de lado, dancei lá em cima mais de uma hora. Julgo-me muito sexy. Quando danço, sou deveras insinuante” (ibid: 179).

      Meu orientador nesta pesquisa, o poeta Mauricio Salles Vasconcelos me apresentou os biorrelatos de Maura Lopes Cançado em 2016, início do projeto de pesquisa, um ano após o relançamento da obra da autora. É dele o ensaio Poética documental: a quadratura do novo cinema em que observa a dimensão coreográfica, o poder mapeador e espacializante e a força do ato corporal que se expressam na obra da autora.

Trata-se de uma contística construída como plano, através do alinhamento — linhas narrativas que se sobrepõem elaboradamente, na composição geométrica de um desenho de figura de linguagem e corpo em desordem — formador de um quadrado coreografado por passos e, simultaneamente, atravessado pelos insights intempestivos de temporalidades e espaços concebidos em extensão (Vasconcelos, 2014: 87).

Isadora Duncan, pioneira da dança moderna, no início do século passado livrou o corpo do bailarino da crueldade das sapatilhas e espartilhos. A dança acadêmica, diferentemente da dos camponeses, foi codificada na corte absolutista de Luís XVI pelos melhores mestres a partir dos movimentos do exército. A origem do balé — e desse adestramento do corpo —, portanto, é militar[2]. Maura, em um devir Isadora, busca a soltura do corpo, das palavras e do pensamento, numa escrita sem forma nem imitação. “Perceptível, no livro de Maura L. C., o ato corporal dos personagens se dá indissociavelmente de uma radicação em posturas de mensuração e corte, de esquadrinhamento e linhas de fuga”, escreve Vasconcelos (ibid: 88).

      As relações entre corpo-escrita destacam-se na pesquisa de Kuniichi Uno, filósofo que traduziu Deleuze e Guattari para o japonês. De acordo com Uno, em um dos ensaios de A gênese de um corpo desconhecido, “essa experiência do corpo é primordial para entender o que se passa não somente nas artes performativas, mas também na escrita e no pensamento” (Uno, 2014: 59). Assim, Uno analisa a escrita de Hijikata Tatsumi, coreógrafo fundador do Butô e renovador da dança no Japão nos anos 1960. Para Uno, as experiências e pesquisas de Hijikata giravam o tempo todo em torno da questão corpo, e sua escrita seria um traçado desse itinerário. “Ele descreveu, sobretudo, as lembranças do corpo da criança que ele foi. Redescobriu e reviveu esse corpo infinitamente aberto a tudo, vento, luzes e trevas, respirações e olhares, a vida dos insetos e dos animais, o odor e o bolor” (ibid: 54). A escrita de Maura também se faz com seu corpo-criança, as lembranças que o compõem e os acontecimentos que se sucedem: “Ele hoje não veio; estou seriamente deprimida, às vezes sinto ímpetos de correr, agarrar-me a alguém. Quando criança, via-me acometida a esses acessos: corria para papai e mamãe, fazia-os acordar a todos de casa, não sabia explicar o que sentia” (Cançado, 2015: 178).

Uno observa que Hijikata podia ser mais livre em sua escrita do que na dança. Na escrita, afinal, seria possível deformar e distorcer palavras, fragilizando sempre seus limites. “Não se pode arriscar o corpo da mesma maneira”, conclui (Uno, 2014: 58). De fato, parece muito mais seguro quebrar uma palavra do que uma falange. No entanto, por que, ainda hoje, arrisca-se tão pouco na escrita?

      Susan Sontag, em entrevista à revista Rolling Stone, afirma não ter paciência para ensaios que usam argumentos lineares. No entanto, ela também admite não conseguir pensar numa maneira melhor de leitura do que a sequência de páginas: “a natureza da leitura na forma de página é que você começa do lado esquerdo, desce pela página, passa para o topo do lado direito, desce de novo e depois vira a folha” (Cott, 2015: 61). Se não temos, na linguagem, a fragilidade do corpo orgânico, há decerto outras limitações. A limitação do sentido da linha, da linearidade ocidental, está entre elas.

É possível sair da linha? Ou, em outras palavras, desalinhar? Em seu percurso, qualquer escritor encontra contra si, contra a espontaneidade de sua escrita, pelotões de leis de linguagens, regras gramaticais, estruturas ancestrais. Porém, onde há limite há também um convite à transgressão. São essas leis, muitas vezes invisíveis, de tão aderidas ao corpo, sobre qual o ato de escrita de Maura, de um corpo desafiador em teste, que se coloca em risco, avança, em busca de frestas. Seja escalando muros, escorregando pelos corrimões ou equilibrando-se, nu, sobre o telhado. Maura é Ofélia numa cachoeira fria:

Loucos sim. Andei quebrando copos e agredindo enfermeiras presunçosas. Até que chegou a tarde da cachoeira. Oh! (Estou rindo molequemente.) Pelo menos dei trabalho. Mas começou a chover fininho e joguei Shakespeare na correnteza. Bonito. Ofélia afogada de novo, com que veracidade. Devagar cheguei ao meio da pedra, firmei-me numa reentrância, e sentei-me, sentindo frio. Quase senti vergonha? Não. Por que me achava ali, exatamente? Alimentei o rancor e continuei forte, suportando o frio, a dureza da pedra. Enfermeiros gritavam fazendo sinais. Ameaçava atirar-me quando se aproximavam. Mantinha-os distantes. Indignados espectadores (Cançado, 2016: 12, grifos meus).

1.2 O CORPO POLÍTICO

Tarde de quinta-feira. Prédio das Letras. Disciplina: “Literatura e Teoria no Século XXI”. Durante a aula, anoto falas do professor:

Riscos — Nomadismos — Disfunção — Inacabamento — Potência.

“A literatura está em relação com a vida e com o corpo”, Mauricio diz.

Registro ideias. Colo-as na pesquisa.

No ensaio “O nascimento da biopolítica”, de Judith Revel, a especialista em pensamento francês contemporâneo contesta a compartimentação tradicional em períodos que dividiriam os temas pesquisados por Michel Foucault para, enfim, ligar, de modo inusitado, o literário e o político por vezes apartados nas leituras de sua obra; ao fazê-lo, no entanto, Revel evita a sistematização da obra foucaultiana, um trabalho, segundo ela, “incessantemente relançando” (Revel, 2014: 50).

Antes de seguir com Revel, convido também para a conversa o filósofo italiano Antonio Negri, que distingue três Foucaults, três temas principais aos quais o filósofo teria dedicado sua atenção. Nos anos 1960, em primeiro lugar, estaria o estudo das formações das ciências humanas. Nos anos 1970, na sequência, estariam os estudos da relação saber-poder, das formas disciplinares e o desenvolvimento do conceito de soberania da modernidade. Derradeiramente, nos anos 1980, estariam as análises dos processos de subjetivação (Negri, 2016: 16).

Interessa aqui, neste momento, o conceito de biopolítica, desenvolvido na última década de vida de Foucault, que faleceu em 1984. O tema foi inicialmente apresentado no curso “História e Sistemas do Pensamento”, lecionado por Foucault em 1979, no Collège de France. No entanto, a questão do liberalismo e da evolução do pensamento econômico, essenciais para a compreensão da biopolítica, acabou se alongando e ocupando todo esse ciclo de lições, que, posteriormente, resultaram no livro Nascimento da Biopolítica. Tamanha atenção dispensada ao liberalismo não foi exagero, uma vez que a sociedade contemporânea teria sido englobada pelo capital, num processo de submissão total da vida às regras políticas. De acordo com Negri

O poder investiu a vida. Foucault nos explicou, em suas obras fundamentais, como o poder soberano foi transformado em biopoder nos séculos da modernidade. Biopoder é um conceito que investe as dimensões do econômico, do político e da consciência — biopoder é um conceito que representa a síntese do moderno enquanto racionalidade instrumental da ação econômica que determina uma progressão cada vez mais abrangente do domínio capitalista, e, enfim, enquanto ação comunicativa eficaz que afeta consciências (ibid: 157).

Se o biopoder se investe sobre toda a vida, também se investe sobre o corpo. Assim, dessa forma de controle nem a literatura escapa, uma vez que a escrita é liberada do corpo.

Voltando à Judith Revel: para a filósofa, a biopolítica é um dos conceitos mais complexos de Foucault. Ela mesma reconhece o quão paradoxal poderia parecer pretender vincular esse conceito derradeiro aos estudos literários e linguísticos das décadas anteriores. Poderia parecer paradoxal, também, a princípio, ligar o conceito de biopolítica à obra de Maura Lopes Cançado. Então, para esclarecer, nas pegadas de Revel, retomamos a genealogia dessa biopolítica nos estudos sobre o discurso (do qual a literatura seria uma subcategoria).

“Há na obra de Foucault dois diferentes status de linguagem”, explica Revel (2014:  51). O primeiro estaria ligado ao estruturalismo, às leis e regras da linguagem e à gramática geral, que formariam uma “massa discursiva” por um lado e uma “arqueologia” por outro. O segundo constituiria, por sua vez, um “esoterismo estrutural”, uma “literatura esotérica” que estaria “fora”, recusando essa análise linguística e arqueológica, opondo-se, portanto, a ela. Assim, o primeiro estaria ligado à ordem do discurso. O segundo, se relacionaria a uma desordem da fala. A obra de autores como Raymond Roussel — escritor ao qual Foucault dedicou um livro inteiro, lançado três anos antes de As palavras e as coisas —, e Maura Lopes poderia ser aproximada desse segundo status, desse eixo da desordem.

Não haveria, para Foucault, portanto, uma unidade do campo linguístico. Esse pensamento objetivo, regulado, padronizado, que se impõe como dominante, não seria absoluto. Não haveria linguagem, mas linguagens; não haveria um e único sistema estrutural, mas vários. Porque, em contraposição a uma suposta hegemonia padronizadora da linguagem, haveria “um uso de palavras (uma estrutura esotérica) que não se dobra às regras comuns do pensamento e que, porque ela provoca a crise, abre a brecha em uma ordem que se achava absoluta” (Revel, 2014: 61).

Essa identificação de uma “literatura esotérica” poderia levar à percepção de uma literatura transgressora, disposta a ultrapassar limites, que estaria “fora” da linguagem. Mas atenção, cuidado: “(...) estamos sempre no interior. A margem é um mito. A palavra de fora é um sonho que não cessamos de reconduzir”, concluiu Foucault (ibid: 59).

Revel comenta o “modelo de transgressão” de Raymond Roussel, de acordo com a análise de Foucault, e afirma que

O funcionamento é simples: não há limite que não evoque transgressão, isto significa que não há espaço que não seja também, imediatamente, designação de sua própria exterioridade. Porque um limite é sempre um ato de divisão, isto esboça, ao contrário, de sua própria função de contenção, a possibilidade do gesto que a nega: ele é, pois, simultaneamente, aquilo que refuta “a passagem ao limite” e aquilo que a funda (Revel, 2014: 54).

Dentro e fora estão em permanente e inevitável contato[3]. Dessa relação, nasceria a figura da dobra, que Foucault pega emprestado de Merleau-Ponty. Deleuze explica bem essa dobra: é “o tema de um dentro que seria apenas a prega do fora, como se o navio fosse uma dobra do mar” (Deleuze, 2013: 104). A partir da leitura de Deleuze, Revel conclui que essa imagem da dobra

É a única suscetível de anular o círculo vicioso dentro/fora – que é, na realidade, tão dialético quanto o par limite/transgressão, porque a dobra é literalmente o dentro do fora e o fora do dentro, (...) o dentro e o fora ao mesmo tempo, separadamente e simultaneamente (Revel, 2014: 59).

Revejo anotações no caderno[4]:

●       Biopolítica - as políticas reguladoras da vida.

●       Disciplinarização do corpo.

●       Tornar o indivíduo dócil e produtivo.

 

De acordo com Kuniichi Uno, por meio da biopolítica “o corpo biologizado transforma-se em substância cada vez mais analisável, explorável, permeável, normalizável, e esta transformação acontece em nome da preciosa vida humana” (Uno, 2014: 110). Ainda de acordo com o mesmo autor

Nossa vida humana, rica, complexa, e múltipla é estranhamente – e cada vez mais – reduzida a uma sobrevivência biológica, minuciosamente vigiada. É assim que nossa vida biológica se torna mais e mais competição pelo jogo de poder que funciona através das instituições, das informações, das indústrias (ibid: 110).

Para Uno, o cinismo do biopoder seria duplo e dissimulador. “Ele diz: você é homem, seja digno, e eles lhe tratam como animal, vida biológica, puro ser orgânico. Uma filosofia da vida diz o contrário: você se torna animal e será a vida, o corpo sem órgãos, digno da vida” (ibid: 110).

A biopolítica visa extrair dos corpos todas as forças úteis. E se a biopolítica penetra todas as coisas, ela também se impõe sobre o fazer literário.

 

*

 

A poeta Ana Cristina César, que escreve mais intensamente entre a segunda metade dos anos 1970 e o início dos anos 1980, foi leitora tanto de Maura Lopes Cançado como de Michel Foucault. “Subitamente me ocorre que é preciso reler urgente Maura Lopes Cançado” (César, 1993: 171), escreve. Em uma carta, ela conta: “A apostila que você queria era Foucault, What is an author, depois peço pra alguém que tenha ficado no curso — mas só vai pintar ano que vem, esse ano é só marxismo.” (id, 1999: 38). Não por acaso, Ana Cristina também tinha “ganas de falar subjetividades” (ibid : 32). 

Aliás, ando fascinada com o ‘estritamente real’ — diários, cartas, biografias, Sussekind — queria, se eu pudesse, trabalhar neste sentido. Leio com fascínio a biografia de Virginia Woolf que Ana Cândida me mandou, escrita por um sobrinho dela, Quentin Bell - é um livro belíssimo e interessantíssimo, vale a pena, e tem essa qualidade que eu ando desejando, contra minhas garras formalistas - a despretensão literária (que pode acabar dando em literatura). Descobri também o gênero biográfico, que eu nunca tinha lido. Na casa nova da Marilda (um apartamentinho conjugado muito bem transadinho) descobri um livro que estou a desejar, vê se você encontra: Revelations: Diaries of Women, ed. Mary Jane Moffat e Charlotte Painter, Vintage Books, Random House, N.Y(Ibid: 124).

E ainda:

Depois da Emily Dickinson, estou em fase de Katherine Mansfield, leio tudo, inclusive biografias ordinárias (que leio arrepiada, I must confess que para dizer a verdade estou achando cartas e biografias mais arrepiantes que a literatura) e fico sonhando com essa personagem. Também escrevo um caderno, quero fazer um livro que é prosa, que é quase um diário, que conta grandes coisas se passando nos quartinhos (ibid: 281).

As relações entre vida, escrita e poder perceptíveis tanto em Maura como em Foucault, portanto, também transpassam o pensamento de Ana Cristina Cesar. Nesse sentido, em Escritos do Rio, ela questiona a noção de utilidade da literatura, até mesmo da vida. “Platão expulsou o poeta da República”, escreve. Isso porque o poeta seria um inútil que

não governa, não legisla, não guerreia, não fabrica utensílios para a felicidade cotidiana, não faz serviços de interesse público nem dá aulas de virtude. O poeta é arredio ao pensamento racional e à verdade. O poeta é um sedutor. Um homem que fabrica simulacros. Prove-se a utilidade da poesia e ela será admitida na ordem do progresso e do Estado (id, 1993: 97).

Para ser útil, a literatura teria que imitar a vida; do contrário, seria “inútil”. Na predominância da literatura útil, que circula entre as pessoas, o comércio e a produção de lucro se sobressaem. De acordo com Ana C, os escritores que se rendem a essas leis de mercado “não fazem apenas colocar narrativas e poemas no papel: produzem produtos que são incluídos num esquema de comercialização em que a lei imperante é a do lucro” (ibid: 99).

 

*

 

Tal sentido de utilidade da vida é capturado pela disciplinarização do trabalho. A escrita como atividade laboral é incentivada de forma insistente durante a internação, conforme relata:

Não me importaria entrar para um convento, onde pudesse escrever, se tivesse cama e comida. (Até rezaria, se disto dependesse minha sobrevivência.) Os planos do dr. A. são puxadíssimos: devo colaborar no jornal, escrevendo contos, trabalhar na novela que comecei, a frequentar cursos de datilografia, taquigrafia, inglês e, mais tarde (daqui a três meses), empregar-me como secretária. No princípio continuarei morando no hospital por não ter dinheiro para pagar uma pensão.

Ouço falar tanto em trabalho. E não tenho disposição para coisa alguma, a não ser escrever (Cançado, 2016: 153).

*

 

Existiria, assim, um poder que atua sobre a vida, orientando-a, padronizando-a, buscando extrair dela toda utilidade possível. No entanto, por outro lado, a vida também é um poder. O corpo é uma potência. Também tem o poder de afetar, e não apenas de ser afetado. De acordo com Uno[5], Espinosa foi o primeiro filósofo dessa tradição voltada inteiramente para defender a vida contra os poderes e as instituições da morte.

Nesse sentido, uma das descobertas importantes de Foucault foi a de que o poder, ao impor “limites”, insurge-se como possibilidade de resistência. Assim, além de um papel meramente repressivo, o poder também exerceria um papel produtivo. Assim, se existe um poder que se exerce sobre tudo e também sobre a linguagem, ele também pode ser lugar de uma resistência radical para a produção de subjetividade. Resistência então poderia significar uma vida mais ampla, mais ativa, mais rica em possibilidades. “O super-homem nunca quis dizer outra coisa: é dentro do próprio homem que é preciso liberar a vida, pois o próprio homem é uma maneira de aprisioná-la. A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como objeto a vida”, escreveu Deleuze (2013: 53).

Portanto, se há regras que atuam sobre a linguagem, definindo uma linguagem absoluta, hegemônica, onipotente, por outro lado, há também possibilidades para resistência a essas regras, por dentro dessa própria linguagem. Por mais que uma linguagem fascista se coloque como único caminho, é sempre possível a invenção de novas formas linguísticas, estruturas e códigos ainda não publicados. Ou, como resume Revel: criação. “O que fascina Foucault dez anos depois na ideia de biopolítica é que um poder sobre a vida pode responder ao poder da vida: outra maneira de dizer que não terminamos de criar”, escreve (Revel, 2014: 69).

A experiência literária que fascinaria Foucault, deste modo, segundo Revel, seria aquela em que o uso de palavras não se dobra às regras comuns de pensamento e provoca crise. Maura não se dobrava. Como escreveu, não estava “comprometida sequer com a literatura”. E gerava crises.

Deleuze escreve que é “preciso então rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições para extrair delas os enunciados, como fazia Raymond Roussel, inventando o seu procedimento” (Deleuze, 2013: 61). A escrita de Maura, que começa linear e progressiva, aos poucos, se fragmenta e começa a se libertar da representação do real.

No prefácio de A palavra e as coisas, Foucault indica que essa sua obra teria nascido de um texto de Borges que cita “uma certa enciclopédia chinesa” e outros signos que só teriam lugar no imaginário, onde “perigosas misturas seriam conjuradas” (Foucault, 2016: X).

Assim é que a biblioteca chinesa citada por Borges e a taxinomia que ela propõe conduzem a um pensamento sem espaço, a palavras e categorias sem tempo nem lugar mas que, em essência, repousam sobre um espaço solene, todo sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações; haveria assim, na outra extremidade da terra que habitamos, uma cultura voltada inteiramente à ordenação da extensão, mas que não distribuiria a proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear, falar, pensar (ibid: XV).

Segundo Revel

Esta impensável enciclopédia chinesa é, paradoxalmente, perfeitamente dizível: posta em palavras, sem para isso ter aceitado ser constituída em objeto — o que significa que há um uso de palavras (uma estrutura esotérica) que não se dobra às regras comuns do pensamento e que, porque ela provoca a crise, abre brecha em uma ordem que se acreditava absoluta. (Revel, 2014: 61).

Assim, esse uso subversivo das palavras, que resiste às regras, com construções rachadas que abrem possibilidades para o infinito e onde o impensável se insurge como dizível, também aparece no Diário I de Maura, quando, ao arquivar os dias, ela se desprende da referencialidade dos fenômenos verificáveis de uma vida.

Visitei-me no futuro: a memória não tem culpa.

Sou a desocupada no tempo, a não fixada.

Gota a gota esvaiu-se sangue róseo: estou branca, confundível.

Perdi meus pés na areia — e choro os sapatos roubados.

Não importa a estação — amoras machucadas ameaçam tingir-me os dedos.

Esta grinalda de cerejeiras não tem pátria: o Japão está ali, onde meu braço alcança.

Entrei num salão de festas, dancei ao lado de um rei. À meia-noite saí (brincava de Cinderela).

O pintor para quem posei desistiu das linhas, abandonou as tintas:

Meu retrato é uma tela branca (Cançado, 2016: 142).

Agamben, recorrendo a Deleuze, defende que o ato de criação nas sociedades de controle é um ato de resistência. Resistir significaria liberar uma potencialidade de vida que estava aprisionada. “É preciso penetrar na intimidade da língua e combatê-la”, diz Mauricio, em aula.

      A escrita que resiste é um ato de criação. Revel aponta que o que fascinou Foucault na ideia da biopolítica foi

A noção de que um poder sobre a vida pudesse responder à potência da vida: outra maneira de dizer que não se pode parar de criar, e que se o homem é uma figura sobre a areia, destinado a desvanecer progressivamente, esta produção do ser está aqui para nos fazer descobrir outras margens, biopolítica, produção de subjetividade, atualidade – tantos nomes que, podemos apostar, sem dúvida não descontentariam Raymond Roussel (Revel, 2014: 69).

Assim, ao escrever, Maura usa a vida para fazer política e literatura: “Daí a tripla definição de escrever: escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar, “eu sou um cartógrafo...”. (Deleuze, 2013: 53).

[1] Em Dorsality - Thinking Back through Technology and Politics, publicado por David Wills em 2008, tradutor de Jacques Derrida, repensa a natureza humana antes de todas as tecnologias. Para Wills, o ser humano não seria algo natural que desenvolveria tecnologia, mas um entrelaçamento entre natureza e máquina que começaria com um giro, um giro pelas costas, fora de nosso campo de visão.

[2] No ensaio A perpendicularidade da sociedade. Soldados, dançarinos, carrosséis e danças da corte, Pierre Lascoumes aborda a pesquisa sobre as técnicas disciplinares de Michel Foucault e sua influência normativa sobre o corpo.

[3] Gilles Deleuze apud Foucault: 127.

[4] Curso “Literatura e Teoria no Século XXI”, ministrado pelo prof. Mauricio Salles Vasconcelos, no primeiro semestre de 2017, no programa de pós-graduação da FFLCH-USP.

[5] Cf. Uno, 2014: 55.

REFERÊNCIAS

 

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CESAR, Ana Cristina. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.

 

COTT, Jonathan. Susan Sontag: entrevista completa para a revista Rolling Stone. Trad.: Rogério Bettoni. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

 

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

 

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FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.: Salma Tannus Muchail. 10 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

 

FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. (Ditos e escritos: III). 2 ed. Trad.: Inês Autran Dourado Barbosa; org. Manoel Barros da Molta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

 

FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica. Trad.: José Teixeira Coelho Neto. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

 

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Trad.: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.

 

FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Trad. Manoel Barros da Mota e Vera Lucia Aveliar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

 

NEGRI, Antonio. Como e quando eu li Foucault. Org. e trad.: Mario Antunes Marino. São Paulo: n-1 edições, 2016.

 

OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema. Trad.: Tae Suzuki. São Paulo: n-1 edições, 2016.

 

PELBART, Peter Pál . Vida capital - Ensaios de biopolítica. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2003.

 

REVEL, Judith. O nascimento literário da biopolítica. In: ARTIERES, Philippe. Michel Foucault, a literatura, as artes. Trad.: Pedro de Souza e Jonas Tenfen. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. p. 49-69.

 

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VASCONCELOS, Mauricio Salles. Poética documental: a quadratura do novo cinema. In: CARELLI, Fabiana; BUENO, Fátima; CUNHA, Maria Zilda da. (Org.). Texto em Tela: ensaios sobre literatura e cinema. 1ª ed. São Paulo: FFLCH/USP, 2014. p. 87-102. Disponível em: <http://200.144.182.130/estudoscomp/images/Texto-e-Tela.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2016.

 

WILLS, David. Dorsality: thinking back through technology and politics. Mineapolis: Univerty of Minnesssota Press, 2008.


Ana Pavla é escritora. Doutora em Letras pelo Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Participa do Lápis - Laboratórios de Criação Escrita de Literatura e Teoria. Coordena oficinas de bioescritas em São Paulo - SP.