Pela janela do expresso que do alto serpenteia a avenida principal, as mulheres ainda sonolentas, estranham o negrume do céu, embora as luzes dos postes já estejam apagadas. No balcão da Padaria Vitória, o suor do café com leite na borda do copo americano anuncia o início de mais um dia. Ali perto, nos trailers estacionados ao lado do terminal, comerciantes dispõem fatias de bolo e salgados na estufa de vidro puído, e penduram um cartaz, onde se lê escrita à mão, em letras garrafais, a promoção do dia: R$ 1,50 qualquer salgado. Dois atendentes arrumam as poucas mesas distribuídas pela calçada e enquanto um aroma adocicado de café exala das bancas improvisadas junto ao meio-fio, a ausência do funcionário encarregado de monitorar o acesso ao terminal é percebida. Todo dia, exatamente nesse horário, ele abre a porta lateral, desobrigando da catraca os idosos portadores de cartões especiais e aqueles que, discretamente, solicitam sua cumplicidade, seja por uma eventual falta de crédito ou puro hábito.
Há um desassossego nesse dia que começa atrasado. A movimentação de trabalhadores que chegam de diferentes bairros do entorno se intensifica. Um vento frio insiste em balançar as lonas das barracas de frutas, ainda fechadas, e pulveriza uma espécie de angústia, a sensação de algo não nominado prestes a irromper.
A vida é luta, pensa Epifânia enquanto avança lentamente pela calçada irregular, tentando poupar os saltos do sapato recém comprado. Mas também não há dor que não tenha fim. E a vida não é isso: um eterno sorrir e chorar? O pastor havia sido enfático culto do domingo: não há mal que dure para sempre. As coisas só podem melhorar, conclui.
Os vultos dessa noite estendida evocam os tempos de criança, quando toda a casa despertava ao som do motor do caminhão do vizinho. Depois, o arrastar lento das chinelas da mãe na cozinha, o pai bêbado de sono tentando ainda salvar mais uns minutos na cama. Irresistível acordar a irmã e correr para o melhor lugar na janela. Pela fresta, a rua vazia. Quem seria a primeira pessoa a passar em frente à casa? Um homem, uma mulher? Da direita para a esquerda ou o inverso? A disputa durava até o retorno da mãe ao quarto. Ainda hoje, há dias em que, em silêncio, ela repete o jogo infantil na fila do ônibus: se a primeira pessoa for uma mulher, o dia será bom; se a placa for ímpar, o pedido de adiantamento vai dar certo... uma infinidade de micros crendices de nexo aleatório. Depois, dizer para si mesma que essas apostas solitárias são meio heréticas, crer para valer, só em Deus mesmo. E quando a censura interna se intensifica, repete para si mesma, que tudo não passa de um hábito dos tempos de menina, difícil de mudar. Deus, com certeza, perdoa.
Na parada no semáforo, o som insistente de estacas sendo marteladas a desperta de um sono fugidio. Com a cabeça encostada à janela do coletivo, ela olha a cidade em construção. No terreno da fábrica de refrigerantes, as vigas de concreto recém-instaladas dividem o espaço com paredes carcomidas pelo tempo. No chão, vestígios de um anúncio impresso sobre uma placa de metal revelam o rosto de uma mulher de vastos cabelos loiros. Ela sorri para a câmera e segura na mão uma garrafa de refrigerante. Mais acima se lê: “original do Brasil”. Um batente emoldura o vazio e nesse espaço despovoado, seu olhar se detém, como que se ao firmar os olhos, pudesse ainda ver a longa fila dos operários entrando para o turno da tarde. Havia os que, sentados na calçada, palitavam os dentes, entre causos. Outros faziam a sesta deitados rente ao muro, fugindo do calor impregnado de um amarelo seco, sufocante. O tecido sintético de sua camisa cola-se às suas costas, sob os raios mais intensos do sol e em uma empatia silenciosa, quase ritualística, imagina o calor do brim do uniforme daqueles homens tão simples, tão alheios a ela.
Não percebe o ônibus avançar e somente quando a bolsa que carrega cai ao chão, se dá conta de que está prestes a descer. Tenta manter os olhos abertos e se arrepende do colo solidário oferecido aos embrulhos de uma outra passageira. Desejo de estar de livre das coisas alheias. Nesse percurso, que estende o sono não dormido à noite, o movimento repetitivo das acelerações e freadas evoca um sonho recorrente. Nele, uma onda lentamente se forma. Enquanto ela assiste a massa de água se agigantar, o impasse inútil e fugaz, correr ou estancar diante do baque eminente. Só há tempo para soltar o corpo no arremesso frenético, e bailar desarticuladamente, braços e pernas a esmo, como uma folha arrastada no meio de um vendaval. O ar de dentro do peito é pouco e quando finalmente consegue emergir, desperta exausta. Entre o susto e o alívio, a lembrança de uma sequência antoniana vista na adolescência: o balé aéreo de um saco plástico em uma corrente de ar.
Ela termina de polvilhar açúcar de confeiteiro em um bolo em cima de uma bancada e confere no celular o saldo de sua conta. Deduz que o vale não cobrirá o valor do plano de saúde. O cheque especial vai salvar mais uma vez, pensa. Pelo menos para pagar a prestação do mês passado. Uma mulher de cabelos curtos, se aproxima inspecionando sua movimentação na cozinha pequena, mal arejada.
– Você já finalizou as encomendas?
– Falta o último.
– Quando terminar, me avise. Preciso conversar contigo. Vamos tomar um café na copa.
Ela caminha pela rua, resmungando para si mesma sobre a asma insistente que a deixara sem fôlego durante o trecho mais íngreme da subida. Hesita em entrar no mercadinho, mas se lembra de que a geladeira está vazia e não há nada para comer em casa, com exceção de umas bolachas esquecidas em um pote no armário. Na fila do caixa, uma colega de trabalho a encontra:
– Não te vi esses dias. Tá tudo bem?
– Tudo bem.
– Tua cara não está boa. O que aconteceu?
Constrangida pelo olhar curioso do funcionário que registrava suas compras, sinaliza para conversarem do lado fora da loja.
– Eu não trabalho mais lá. Ela me demitiu.
– Como assim? Você era a melhor confeiteira.
– Corte nas verbas.
– E você? Disse alguma coisa?
– Foi tão de repente, que eu ainda estou tentando entender. Nunca faltei, só em caso de saúde. Sempre cheguei no horário.
– Poxa, ainda mais agora, no final do ano.
– Estava contando com o 13.o, mas fazer o quê? Bom, vou descer que já está tarde. A gente se vê.
– Olha, fico triste por você, mas daqui a pouco, pinta coisa melhor. Tudo se ajeita.
O terceiro sinal acabou de soar, discreto, porém audível. Ouço o apresentador subir as escadas da coxia, pisando com descrição nos degraus de madeira, que rangem chorosos sob seu peso. Ele sabe que quando surge o desgastado no batente marrom, falta pouco para entrar em cena. Finjo não perceber o vaivém frenético das dançarinas, cada uma buscando sua posição. Nessa hora, quase posso ouvir meus batimentos e imagino meu sangue correndo, chegando nas extremidades, licoroso e quente. Em silêncio, sorrio dessa inutilidade em um corpo frio.
A figurinista se aproxima e ajeita uma lantejoula, que havia encontrado no chão. Elas sempre caem, por conta de uma película licorosa que insiste em vazar dos poros. Ouço a última passagem de som e o frenesi dos dedos sobre as teclas do piano, me fazem pensar na casa cheia. Gosto desse teatro justamente por ser antigo, embora a empresa que recentemente o adquiriu deseje lhe conferir um ar mais contemporâneo. Um olhar mais atento na história que pulsa no centro da cidade perceberia o branco vibrante e deslocado das intervenções arquitetônicas recentes, em oposição aos arabescos antigos na parede. Delimitado por dois novos conjuntos residenciais, é uma espécie de oásis cultural em uma cidade permeada por lojas de conveniência de procedência e pronúncia duvidosa.
O apresentador me anuncia.
Mandei fazer uma amarração
Pra te pegar, meu amor
Galo d'angola já te cercou
Com o cordão do tarô
A cartomante me garantiu
Quando o baralho se abriu
Que você vai me pedir perdão
Com o joelho se arrastando no chão
A mãe-de-santo já me deu miniatura de você
Desse tamanhinho
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter, numa panela de dendê
E toda noite eu esfrego no meu corpo uma pitada de você!
Há tempos não sentia essa película de luz preguiçosa se espraiando no corpo. Brinca de fechar os olhos bem firmes até enxergar tudo laranja. Ela gosta de ficar um tempo assim, ouvindo as ondas se desmancharem na areia. “Desmanchando na areia” é clichê, mas no momento não me ocorre outra construção. Espuma, borbulha, vinho branco que preenche a boca, estalando na língua. Quem sabe, um caminho mais poético aqui.
A praia está cheia por conta da temporada. A sequência se abre assim, com a música do Tom Zé. Cabe essa trilha para a boleira? Essa ideia de “passar no corpo uma pitada de você” é irresistível. Tom Zé tropicalista, pisca para Oswald, antropofagia, essa mania nossa de querer engolir o outro. E a boleira, que insiste em ouvir o pastor todo domingo, me deu essa liberdade, de abrir a cena com esse respiro anárquico e baiano. Ela merece, ainda que não saiba.
O mar para Epifânia é sempre um respiro. Fica por longos tempos olhando para os pés pisando a areia escura, molhada. As diferentes texturas, um fragmento de papel de bala, um palito de picolé, ela abstrai. Areia fofa mais quente, areia firme, mais fria. O sol fica mais intenso e caminha em direção ao canto do forte. Busca o carrinho de praia que frequenta desde a adolescência. Tanta coisa mudou na cidade, alguns lugares fecharam, outros tiveram vida curta e há os que trazem novas placas em velhas fachadas.
Ela gosta de coisas com marcas do tempo e sente um desconforto, especialmente em restaurantes sem identidade. Ela cultiva rituais, e um de seus preferidos tinha lugar no PASV, afeto antigo em São Paulo: em um silêncio respeitoso, pedia um chope e aguardava no balcão, ser atendida pela Maria – a garçonete com mais de quarenta anos de casa – que a reconhecia, mesmo quando ficava meses sem aparecer. Depois, observava a diversidade da clientela enquanto o “espanhol” preparava os assados, em plena Avenida São João. Quando descobriu o fechamento, chorou em silencio. Um de seus templos sucumbira à crise financeira, que também é de gostos. Ela repele a lógica impessoal fast-food, ifood e intui que sua aversão, de algum modo, se relaciona com a arte de enfeitar bolos, o cuidar de cada detalhe.
Uma noite, de madrugada, em um trecho de uma entrevista, uma palavra compacta e sonora, daquelas que ecoam dias em nossa cabeça, chamara sua atenção – “território”. Não era um termo comum em sua rotina, mas ali, sonolenta no sofá, a palavra reverberou. Falavam sobre violência entre adolescentes, algo que ela sempre associara a “Armagedon”, “fim dos tempos” e mais uma porção de lugares comuns.
O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e reduz a outros é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais.
Desanimou um pouco com a pesquisa no Google, achando meio complicado isso de práxis. Lembrou então da professora que sempre encomendava bolo para as festas na escola próxima à confeitaria. Quando chegava mais cedo, pedia para ver Epifânia confeitar. Na cozinha, o silêncio entre essas duas mulheres foi aos poucos cedendo espaço a conversas curtas, permeadas por um termo ou outro que a boleira pesquisava depois, instigada pela curiosidade que a outra lhe despertara. Ela, com certeza, saberia lhe explicar essa tal de “práxis”.
“Nem sabia que você tinha saído de férias”, Epifânia dissera a ele (que é amante, mas ainda não tem nome nessa narrativa) depois de se ajeitar no banco mais próximo ao do cobrador. Ele parecia feliz por reencontrá-la. Por meio de uma amiga, soubera o motivo da ausência no 4020-A, que todos os dias, às 5h45 da manhã, a levava para o trabalho, no centro da cidade. “Nem deu tempo de te falar direito. Fiquei dias com o celular ruim. Só agora que voltei, mandei arrumar”. Ainda que não houvesse de sua parte o desejo de uma relação mais séria, essas desculpas a incomodavam pela presunção de uma certa idiotice de sua parte. O sexo era razoável, não dos melhores, mas o gozo vinha mais pelo prazer da transgressão, mal o dia começara. Gostava de sair de casa, arrumada para o trabalho, sabendo que do encontro na padaria, iriam direto para um hotel nas imediações. Nessas ocasiões, fingia não perceber o telefone dele no modo avião.
Enquanto o dia se espreitava pela janela do quarto, ele a penetrava às 7 horas da manhã. Com a imagem dos colegas de trabalho assinando o ponto, ela sorria. Marotamente.
Maristela Sanches Bizarro é natural de São Paulo. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, pesquisa as personagens femininas no romance de 1930. Sua formação acadêmica, voltada ao estudo de linguagens, é marcada pela interdisciplinaridade entre as áreas de Comunicação, Cinema e Letras. Na produção audiovisual, desenvolveu diversos projetos, com destaque a direção do documentário “Imagem Mulher” de 2011. Atualmente ministra aulas de redação nos ensinos fundamental e médio da rede particular de São Paulo e de Língua Portuguesa para refugiados. Desenvolve projeto para seu primeiro romance.