Rapidamente os dias de serviço foram se passando. O que antes mais encontrava dificuldade em realizar, no caso, navegar pelo sistema computacional da livraria, agora já tinha certa tranquilidade no domínio, raramente pedia ajuda a alguém mais experiente. Aos poucos deixava sua timidez de lado, o que fez com que se aproximasse cada vez mais de seus colegas, adoravam falar mal do gerente quando ele não estava à espreita, criticavam constantemente o baixo salário e as condições precárias de trabalho. Mas entendiam que o coitado também estava no mesmo barco que eles, só ainda não tinha consciência disso, talvez nunca quisesse ter. Apesar disso, nosso protagonista o admirava, impressionava-se com a quantidade de livros que conhecia e que já tinha lido, além de serem os únicos que estavam sempre animados e ansiosos para a chegada dos novos lançamentos.
Ah, os lançamentos, estes que geram sentimentos tão diversos para aqueles que trabalham em uma livraria. De um lado, há a constante sensação da descoberta que se desperta sempre que algum título interessante é manuseado pela curiosidade daqueles que o veem, de outro, há o maldito acúmulo dos ditos Best Sellers que chegam a quantidades exorbitantes e que no máximo são vendidos cinco exemplares ao longo de um semestre. E tem aqueles que de fato vendem muito, mas ninguém aguenta mais ficar olhando para a cara deles, mesmo sendo bons livros, o ranço sempre vem quando mais uma pessoa vem à sua procura. Tem tanta coisa para se ler na vida, mas somos guiados por aquelas que atraem multidões. Se tudo isso de gente leu e gostou, é porque deve ser bom. Talvez um desses escritores midiáticos nunca tenha a real noção do tanto de trabalho que ele exige dos pobres livreiros. Sentado em sua torre de marfim, vê sua obra sendo resenhada e recebendo prêmios, enquanto as mãos que a carregam sempre são esquecidas. A dor nas costas, a fadiga, nunca nada disso é levado em conta, pois o que dói mesmo é a mente do grande artista.
Mais engraçado ainda é quando recebe-se a visita de uma dessas personalidades. Que normalmente vem apenas para ver se suas obras estão bem localizadas nas estantes ou em pontos chave da loja, como na mesa principal, que normalmente é preenchida com os lançamentos e os livros mais vendidos da semana. E ainda tem aqueles que adoram se oferecer para autografar alguns exemplares, valorizando mais o próprio produto.
Um dos interessantes casos que foi vivenciado pelo livreiro, foi quando ele deparou-se com um desses livros que chegam a milhões e são vendidos unidades, mas que lhe chamou atenção por ser de um gênero que pela primeira vez tinha sido entregue tal quantia. Poesia. Ninguém lê poesia nesse país, fora os que também querem escrever as suas próprias. Ao menos é gerada uma venda em pirâmide, não como as do Egito, e mais como aquelas que as crianças gostam de colocar na boca. E aí, curioso, pegou aquele livro para dar uma lida, foi passando poema por poema, e parecia que só piorava a situação desta arte milenar, era um mix de autoajuda com poesia de instagram, e que se você se esforçasse muito, ela ainda conseguia piorar um pouco. Nunca tinha ouvido falar na autora, mas depois descobriu que ela era filha de um cara famoso.
Até que certo dia, a tal figura resolveu dar o ar da graça naquela livraria. Sem dizer nada, chegou perguntando aos livreiros se tinha algum interessante de poesia que poderiam indicar a ela. O livreiro cuidava da sessão e foi chamado para que pudesse ajudá-la. Indicou os livros que mais gostava, mas ela não se interessou muito e acabou perguntando sobre a própria obra. Sincero, disse que não gostou muito. E explicou os porquês. Conversaram por um bom tempo, ela reagiu de uma forma bem madura, mas não perdeu a oportunidade de questioná-lo.
E por que os seus livros não estão aqui?
No sentido primário do fazer artístico
caminho agora em uma nova etapa
escrever esta obra
talvez seja vivenciar os diversos saberes da mente de um indivíduo
em suas nuances
das mais peculiares
até as mais banais
aquelas que compõem o olhar atento de cada um
ser imortal em seu próprio tempo
está a cargo de poucos indivíduos
saber se espalhar entre mundos e eras
enquanto a carne viva pulsa em seu curto espaço
é o fardo da mente que se esforça para ser comprida
a ideia de gênio
é mera recriação
do temor em não se ver
como um objeto especial
de sua própria vida
(talvez seja o que nos faça crer na imaginação humana)
quando imagino uma idade
um tempo
uma vida inteira
tudo se passa pelo olhar alheio
pela fertilidade do pensamento de outrem
o presente como tempo histórico
o passado como literatura
sabendo disso
posso eu mudar as peças da minha própria biografia?
monto passo a passo como se pudesse voltar e fazer de novo
cada verso ou estrofe torta sempre podem ser corrigidas
aqui não é o mundo em que nos encontramos
ninguém se lembrará de você.
Eugênio pula de mente em mente pactuando com aqueles que entendem a brevidade de cada dia
O ato de escrever lhe era muito cansativo
o desejo intrínseco de tornar-se imortal debatia-se frequentemente com a necessidade ou não de passar a própria consciência adiante
de que adiantaria mover-se para fora de seu tempo enquanto este o consumia dentro da essência do seu existir
ser a mera carne que se decompõe o afligia mais do que qualquer outra coisa
pensava constantemente no valor de saber que nada sobrará de seu corpo
os prazeres que este lhe deram serão lembranças desfeitas de um sangue que um dia pulsou
mas a ideia da real necessidade que tudo isso o impunha
nunca deixou os seus pensamentos
pois era no momento exato
quando mente e corpo entravam em plena sincronia
que a sua consciência atingia o seu ápice
viver algo inenarrável é para poucos
fundir-se com o outro faz com que nos questionemos mais uma vez:
O que viemos fazer nesta vida?
Apoiou-se na janela do décimo oitavo andar
na beirada do seu altar visualizou um horizonte que lhe indicava o destino de sua primeira publicação
sabia que o tempo que lhe restava era curto
tinha pressa para escrever
e mais pressa para publicar algo novo
não importava muito o quão ruim poderia estar o livro
o que mais desejava era ter aquela obra posta ao mundo
sua ideia era lançar-se dos céus assim que tudo estivesse pronto
partir cedo seria a forma mais rápida de encontrar a própria imortalidade
jovem escritor é encontrado morto no térreo de seu prédio
ele acabara de publicar uma obra prima
um clássico da modernidade
era isso que os jornais diriam
poupar-se-ia dos próximos anos angustiantes do seu viver
poupar-se-ia do medo de não tornar-se infinito
mas nada o é
o curto tempo que lhe resta
é longo em seu sentido
estava tudo preparado como deveria ser
a obra fora lapidada minuciosamente
acatou o que lhe fora dito daqueles que eram de sua confiança
corte alguns trechos do começo
o texto deve ser mais seco
acrescente cenas ao final
está muito corrido
parece que você estava com pressa de terminar a obra
eu mudaria aquele detalhe da página cinquenta e oito
está muito explícito
dessa forma o que você quis dizer não terá o seu devido charme
foi de editora em editora torcendo para que alguma aceitasse um escritor desconhecido
e como todo autor iniciante
caiu em um grandioso golpe
a ânsia por uma publicação faz com que não analisemos pontos fundamentais do contrato
mas para ele
isso de nada importava
afinal
não estaria ali para presenciar o prejuízo financeiro
não estaria ali quando começassem a tirar sarro do livro pago
só conseguiu porque pagou
escritor de verdade recebe pelo trabalho
o amador não
na verdade escrever não é trabalho
quem eu estava querendo enganar
a função editorial em um país de não leitores consiste em tirar o máximo possível daqueles que alimentariam o próprio ego com uma publicação em vão
aparentemente engrandece o indivíduo que diz ter um livro seu
assim pensava o nosso jovem autor
agora eles me respeitarão
agora minha voz se fará presente
minha presença será marcante
e o mundo ao meu redor para sempre me admirará
para sempre olharão para mim com orgulho
com desejo de serem como eu sou
e o jovem autor sempre cai na falácia do gênio
a inocência de ser o que os antepassados pintaram-no
e o jovem autor é iludido pela cultura europeia do texto escrito
e o jovem autor perde-se facilmente dentro de seu ego infantil
e como todo bom jovem autor
ele conta os dias para se matar
a morte
a morte como passagem
a morte como finalidade
Com uma corda no pescoço
Eugênio padeceu
e pelos últimos tremores de seu corpo
um romance em versos se construiu
sobre sua vida, aqueles minutos o percorreram
pelo caminho do laço
que amarramos em nós mesmos
Nonato era o seu sobrenome
mas de nada vale isso quando o que era vivo
já se foi
pois era um gênio não nascido
daqueles que se criam na ficção
a arte como um meio
o suicídio como destino
.
Do que adianta falar sobre alguém que jamais nasceu?
Quando a primeira corda se desenrolou do meu corpo
eu vim ao mundo.
Lucas Augusto Dâmaso Oller do Nascimento, nasceu em 12 de outubro de 1998 na cidade de São Carlos. É graduado em Letras: Português – Francês pela Universidade de São Paulo (USP). Em 2021 publicou o livro Raimundo, poema inspirado nas epopeias clássicas. Atualmente é mestrando na mesma instituição e tem como tema de sua dissertação a novela O Físico Prodigioso, do poeta português, Jorge de Sena.
Publicado em 13/03/2024