AS ESTANTES DE UM LIVREIRO (Lucas Oller)

AS ESTANTES DE UM LIVREIRO


Rapidamente os dias de serviço foram se passando. O que antes mais encontrava dificuldade em realizar, no caso, navegar pelo sistema computacional da livraria, agora já tinha certa tranquilidade no domínio, raramente pedia ajuda a alguém mais experiente. Aos poucos deixava sua timidez de lado, o que fez com que se aproximasse cada vez mais de seus colegas, adoravam falar mal do gerente quando ele não estava à espreita, criticavam constantemente o baixo salário e as condições precárias de trabalho. Mas entendiam que o coitado também estava no mesmo barco que eles, só ainda não tinha consciência disso, talvez nunca quisesse ter. Apesar disso, nosso protagonista o admirava, impressionava-se com a quantidade de livros que conhecia e que já tinha lido, além de serem os únicos que estavam sempre animados e ansiosos para a chegada dos novos lançamentos.

      Ah, os lançamentos, estes que geram sentimentos tão diversos para aqueles que trabalham em uma livraria. De um lado, há a constante sensação da descoberta que se desperta sempre que algum título interessante é manuseado pela curiosidade daqueles que o veem, de outro, há o maldito acúmulo dos ditos Best Sellers que chegam a quantidades exorbitantes e que no máximo são vendidos cinco exemplares ao longo de um semestre. E tem aqueles que de fato vendem muito, mas ninguém aguenta mais ficar olhando para a cara deles, mesmo sendo bons livros, o ranço sempre vem quando mais uma pessoa vem à sua procura. Tem tanta coisa para se ler na vida, mas somos guiados por aquelas que atraem multidões. Se tudo isso de gente leu e gostou, é porque deve ser bom. Talvez um desses escritores midiáticos nunca tenha a real noção do tanto de trabalho que ele exige dos pobres livreiros. Sentado em sua torre de marfim, vê sua obra sendo resenhada e recebendo prêmios, enquanto as mãos que a carregam sempre são esquecidas. A dor nas costas, a fadiga, nunca nada disso é levado em conta, pois o que dói mesmo é a mente do grande artista.

      Mais engraçado ainda é quando recebe-se a visita de uma dessas personalidades. Que normalmente vem apenas para ver se suas obras estão bem localizadas nas estantes ou em pontos chave da loja, como na mesa principal, que normalmente é preenchida com os lançamentos e os livros mais vendidos da semana. E ainda tem aqueles que adoram se oferecer para autografar alguns exemplares, valorizando mais o próprio produto.

Um dos interessantes casos que foi vivenciado pelo livreiro, foi quando ele deparou-se com um desses livros que chegam a milhões e são vendidos unidades, mas que lhe chamou atenção por ser de um gênero que pela primeira vez tinha sido entregue tal quantia. Poesia. Ninguém lê poesia nesse país, fora os que também querem escrever as suas próprias. Ao menos é gerada uma venda em pirâmide, não como as do Egito, e mais como aquelas que as crianças gostam de colocar na boca. E aí, curioso, pegou aquele livro para dar uma lida, foi passando poema por poema, e parecia que só piorava a situação desta arte milenar, era um mix de autoajuda com poesia de instagram, e que se você se esforçasse muito, ela ainda conseguia piorar um pouco. Nunca tinha ouvido falar na autora, mas depois descobriu que ela era filha de um cara famoso.

Até que certo dia, a tal figura resolveu dar o ar da graça naquela livraria. Sem dizer nada, chegou perguntando aos livreiros se tinha algum interessante de poesia que poderiam indicar a ela. O livreiro cuidava da sessão e foi chamado para que pudesse ajudá-la. Indicou os livros que mais gostava, mas ela não se interessou muito e acabou perguntando sobre a própria obra. Sincero, disse que não gostou muito. E explicou os porquês. Conversaram por um bom tempo, ela reagiu de uma forma bem madura, mas não perdeu a oportunidade de questioná-lo.

E por que os seus livros não estão aqui?

 

No sentido primário do fazer artístico

caminho agora em uma nova etapa

escrever esta obra

talvez seja vivenciar os diversos saberes da mente de um indivíduo

em suas nuances

das mais peculiares

até as mais banais

aquelas que compõem o olhar atento de cada um

 

ser imortal em seu próprio tempo

está a cargo de poucos indivíduos

saber se espalhar entre mundos e eras

enquanto a carne viva pulsa em seu curto espaço

é o fardo da mente que se esforça para ser comprida

 

a ideia de gênio

é mera recriação

do temor em não se ver

como um objeto especial

de sua própria vida

(talvez seja o que nos faça crer na imaginação humana)

quando imagino uma idade

um tempo

uma vida inteira

tudo se passa pelo olhar alheio

pela fertilidade do pensamento de outrem

 

o presente como tempo histórico

o passado como literatura

 

sabendo disso

posso eu mudar as peças da minha própria biografia?

 

monto passo a passo como se pudesse voltar e fazer de novo

cada verso ou estrofe torta sempre podem ser corrigidas

aqui não é o mundo em que nos encontramos

 

ninguém se lembrará de você.

 

Eugênio pula de mente em mente pactuando com aqueles que entendem a brevidade de cada dia

 

O ato de escrever lhe era muito cansativo

o desejo intrínseco de tornar-se imortal debatia-se frequentemente com a necessidade ou não de passar a própria consciência adiante

de que adiantaria mover-se para fora de seu tempo enquanto este o consumia dentro da essência do seu existir

ser a mera carne que se decompõe o afligia mais do que qualquer outra coisa

pensava constantemente no valor de saber que nada sobrará de seu corpo

os prazeres que este lhe deram serão lembranças desfeitas de um sangue que um dia pulsou

 

mas a ideia da real necessidade que tudo isso o impunha

nunca deixou os seus pensamentos

pois era no momento exato

quando mente e corpo entravam em plena sincronia

que a sua consciência atingia o seu ápice

viver algo inenarrável é para poucos

fundir-se com o outro faz com que nos questionemos mais uma vez:

 

O que viemos fazer nesta vida? 

 

Apoiou-se na janela do décimo oitavo andar

na beirada do seu altar visualizou um horizonte que lhe indicava o destino de sua primeira publicação

sabia que o tempo que lhe restava era curto

tinha pressa para escrever

e mais pressa para publicar algo novo

não importava muito o quão ruim poderia estar o livro

o que mais desejava era ter aquela obra posta ao mundo

 

sua ideia era lançar-se dos céus assim que tudo estivesse pronto

partir cedo seria a forma mais rápida de encontrar a própria imortalidade

 

 jovem escritor é encontrado morto no térreo de seu prédio

ele acabara de publicar uma obra prima

um clássico da modernidade

era isso que os jornais diriam

poupar-se-ia dos próximos anos angustiantes do seu viver

poupar-se-ia do medo de não tornar-se infinito

mas nada o é

 

o curto tempo que lhe resta

é longo em seu sentido

 

estava tudo preparado como deveria ser

a obra fora lapidada minuciosamente

acatou o que lhe fora dito daqueles que eram de sua confiança

corte alguns trechos do começo

o texto deve ser mais seco

acrescente cenas ao final

está muito corrido

parece que você estava com pressa de terminar a obra

eu mudaria aquele detalhe da página cinquenta e oito

está muito explícito

dessa forma o que você quis dizer não terá o seu devido charme

 

foi de editora em editora torcendo para que alguma aceitasse um escritor desconhecido

e como todo autor  iniciante

caiu em um grandioso golpe

a ânsia por uma publicação faz com que não analisemos pontos fundamentais do contrato

mas para ele

isso de nada importava

afinal

não estaria ali para presenciar o prejuízo financeiro

não estaria ali quando começassem a tirar sarro do livro pago

só conseguiu porque pagou

escritor de verdade recebe pelo trabalho

o amador não

 

na verdade escrever não é trabalho

quem eu estava querendo enganar

 

a função editorial em um país de não leitores consiste em tirar o máximo possível daqueles que alimentariam o próprio ego com uma publicação em vão

 

aparentemente engrandece o indivíduo que diz ter um livro seu

assim pensava o nosso jovem autor

agora eles me respeitarão

agora minha voz se fará presente

minha presença será marcante

e o mundo ao meu redor para sempre me admirará

para sempre olharão para mim com orgulho

com desejo de serem como eu sou

 

e o jovem autor sempre cai na falácia do gênio

a inocência de ser o que os antepassados pintaram-no

e o jovem autor é iludido pela cultura europeia do texto escrito

e o jovem autor perde-se facilmente dentro de seu ego infantil

e como todo bom jovem autor

ele conta os dias para se matar

 

a morte

a morte como passagem

a morte como finalidade

 

Com uma corda no pescoço

Eugênio padeceu

e pelos últimos tremores de seu corpo

um romance em versos se construiu

sobre sua vida, aqueles minutos o percorreram

pelo caminho do laço

que amarramos em nós mesmos

 

Nonato era o seu sobrenome

mas de nada vale isso quando o que era vivo

já se foi

pois era um gênio não nascido

daqueles que se criam na ficção

a arte como um meio

o suicídio como destino

.

Do que adianta falar sobre alguém que jamais nasceu? 

 

Quando a primeira corda se desenrolou do meu corpo

eu vim ao mundo.

Lucas Augusto Dâmaso Oller do Nascimento, nasceu em 12 de outubro de 1998 na cidade de São Carlos. É graduado em Letras: Português – Francês pela Universidade de São Paulo (USP). Em 2021 publicou o livro Raimundo, poema inspirado nas epopeias clássicas. Atualmente é mestrando na mesma instituição e tem como tema de sua dissertação a novela O Físico Prodigioso, do poeta português, Jorge de Sena.


Publicado em 13/03/2024