OFICINA ORBITAL 

JOSÉ VICENTE

  À Sombra do Inferno –


         Escrita em 1975 e nunca encenada, a peça do grande dramaturgo, atuante dos anos 1960 aos 90, talvez se apresente como seu texto mais provocador e incisivamente contemporâneo nessa incursão pelos subterrâneos da vida brasileira em face do underground americano do Norte. Uma dimensão desregrada de ser, sobreviver e morrer na História não apenas localizada na grande cidade do Capital se faz profusa nas mutações das individualidades, das sexualidades, e nas disposições interculturais. Algo que atinge com violência e alto grau de poeticidade os valores nacionais, típicos de um País que sublima a guerra (onde, de fato, nunca ocorreu nenhuma, diz o texto de José Vicente) para mantê-la como violação cotidiana de todos, em todas as áreas de vida e criação, sob a constituição de uma arraigada fisiologia composta de governança de elite e mercado financeiro predatório.

Talvez por tal propulsão nada comportada, nunca compartimentada em discursos retilíneos e pontos-de-vista coesos, em conformidade com o gosto do meio teatral e a bolsa de lugares-comuns estéticos, a peça inédita do autor de Hoje é dia de rock não tenha sido viabilizada até hoje em ato cênico. Várias tentativas fiz para traduzir esse rito infernal, multicultural, tanto para o vídeo e para o palco, tendo em mãos um escrito teatral poderoso, concebido para as voltagens mais vastas do presente milênio, desconhecido por aqueles que guardavam o arquivo do dramaturgo. Tanto é assim que À Sombra do Inferno não foi incluída entre as peças publicadas em 2 volumes pela Imprensa Oficial em 2010, reunindo as obras completas do autor.

Fica aqui um breve registro da peça, a começar de suas páginas iniciais, ainda datilografadas, como que esquecidas no interior do imenso acervo da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, onde há mais de 40 anos adquiri o texto quando realizava pesquisa sobre dramaturgia brasileira durante meu mestrado (Faculdade de Letras/UFRJ). 

Mauricio Salles Vasconcelos

À SOMBRA DO INFERNO


                           (1975)


                              Farsa Trágica    de        José Vicente

________________________PERSONAGENS

INÊS -  Aristocrata. Branca, descendente de portugueses. Cabelos negros. Classe dominante. Herdeira de um dos maiores jornais em São Paulo. Como mulher, Inês é a síntese da mulher aristocrata brasileira e ela representa esse papel, com convicção, embora na vida real ela seja apenas uma professora universitária.


GABRIEL – Uma espécie de príncipe africano, nascido em Minas. Jornalista e escritor, conseguiu sua ascensão social através de Inês, com quem se casou.


LADY TROPICAL DISEASE – Travesti carioca em Nova York. Está além do Tropicalismo. Poder-se-ia dizer que ele é o Tropicalismo que adquiriu “realidade”, em Nova York


AÇÃO________________________

A ação dessa farsa se passa no quarto cinzento de um hotel em Nova York, onde Inês e Gabriel estão de férias.

O “realismo” estrito é necessário para que o “delirante” adquira a matemática da metáfora. Qualquer introdução de um elemento “surrealista” ou algo do gênero, como o “fantástico”, destruiria o interesse que essa farsa trágica poderia ter.

   J.V.

CENA 1                       


(BLACKOUT. EM BLACKOUT, OUVE-SE A VOZ DE INÊS, DEBATENDO-SE NUM PESADELO. GABRIEL E INES ESTÃO NA CAMA).


INÊS

           Não estou dormindo!

Não estou dormindo!

          Ninguém pode me provar que estou dormindo! Ninguém!

Não estou dormindo! Não estou dormindo!


     (GABRIEL ACENDE A LUZ. INÊS ABRAÇA-SE A GABRIEL)


GABRIEL

               Pronto, acordou...

    Agora você está acordada...


INÊS

     Toda noite, o mesmo pesadelo. 

  Desde que chegamos a esse hotel.


GABRIEL

  Ainda?


INÊS

          Ainda...


(PAUSA. TÉDIO. GABRIEL DESFAZ-SE DE INÊS. LEVANTA-SE E COMEÇA A VESTIR-SE. GABRIEL TIRA O PIJAMA E VESTE UM CONJUNTO ESPORTE, JEANS AMERICANO E CAMISA ESPORTE)


GABRIEL

              São quase sete horas. Vou descer e tomar o...o breakfast!


INÊS

             Vou ficar na cama.


GABRIEL

  O dia inteiro?


INÊS

           O dia inteiro.


GABRIEL

           Mas é nosso último dia de férias!


INÊS

          Hoje eu te dou Nova York de presente!


GABRIEL

          Só minha?


INÊS

         Sua!


(PAUSA)


INÊS

           Combinado?


GABRIEL

          Combinado.


INÊS

           Você pode sair e fazer o que você bem entender!


GABRIEL

Combinado.


INÊS

É uma chance!


GABRIEL

Combinado!


(ENQUANTO GABRIEL CONTINUA A VESTIR-SE PARA DESCER, INÊS LEVANTA-SE, VAI À JANELA, ABRE A JANELA. OUVE-SE O RUÍDO DISTANTE DA CIDADE. AMEDRONTADA, OU MELHOR, EM PÂNICO, INÊS FECHA IMEDIATAMENTE A JANELA, E RECOSTA-SE NA CORTINA).


GABRIEL

Mas o que é, Inês?! O que é?


INÊS

Eles não tem esse direito! É um crime! Está havendo um crime!

Sou mulher! Sou mulher!


GABRIEL

Mas o que é? Conta! Conta o que é?


INÊS

Sou mulher!


GABRIEL

Conta. Conta o que é.


INÊS

Toda noite...

Desde que chegamos a esse hotel. Deito, começo a dormir. Então, no meio do sono, vem uma menina americana de oito a dez anos. É uma criança ainda. É claro que não se trata de uma aquariana. Ela não tem nenhuma atitude daqueles que falam de paz e amor, poluição, justiça ou revolta. Assim como seu olho é azul, da mesma forma a consciência dessa criança é determinada pela de seus pais. Ela não tem deficiência de vitamina, nem anemia celular. Seus dentes são perfeitos, e brancos, e sua boca, rosada.

Certa de sua superioridade, essa criança adotou como atitude...a indiferença!

Caminhamos juntas ao longo do Parque, onde senhores leem jornais em silêncio, e senhoras americanas passam seu tempo. Me sinto um objeto raro, para ser olhado com cinismo e desprezo por eles.  (LONGA PAUSA)

Tento ser a mãe dessa criança, mas ela ou não entende minha linguagem ou insiste em me apresentar a esses senhores e senhoras, ao longo do Parque, como...como...um objeto...para ser...investigado!

“Sou só um espelho para eles! Só um espelho! É tão terrível! É tão absurdo! E inumano!”

Então, ela começa a me pôr em questão, diante dos outros, que são cúmplices dela.

“Estou aqui de férias”, tento explicar, mas o anjo americano ou não compreende minha linguagem, ou parte do princípio irredutível de que estou mentindo!

“Mas você não tem esse Direito”, insisto, e o anjo americano zomba da minha seriedade.

“Sou branca”, digo então. Aí ela se torna maligna. Os senhores e senhoras ao longo do Parque riem, como se eu tivesse sido alguém que perdeu, e por ter perdido só merece...o desprezo!

Aí tento localizar no passado onde estava a mentira, e compreendo que no passado, em São Paulo, só houve...a dor!

E que não tenho nenhum motivo para a vergonha, e ainda mais: não há uma Lei que justifique esse julgamento arbitrário, no Parque, criado por privilegiados conscientes de seu privilégio e que veem, refletido em mim,...o Inimigo Principal.

Eu sou o juiz julgado por um tribunal culpado. Mas estou sozinha e sem a cumplicidade de um só deles. Nesse momento o anjo americano insinua que estou dormindo, que foi um engano, que tudo foi um engano, minha vida foi um engano, foi só um sonho, não fui real, nada foi real, eu estava dormindo, sempre estive dormindo, estive e estou dormindo, e ainda agora estou dormindo, e estarei dormindo...para sempre!

Desesperada, tento encontrar uma cumplicidade ao longo dos senhores e senhoras do Parque, mas o silêncio deles quer dizer a mesma coisa dita pela boca rósea da menina americana: estive e estarei dormindo.

Estive, estou e estarei...dormindo! Minha vida foi um sonho! Estou dormindo! Estou dormindo...Estou dormindo...


(BLACKOUT LENTO)

Publicação: 15/05/2023