DIGITE ANGST PARA ESCREVER

Mauricio Salles Vasconcelos

Em sintonia com a série Encontros, constante como seção deste Site Lápis – iniciada com Escrita e Ansiedade, sob coordenação de Carolina Zuppo Abed –, faço este escrito.

Existe necessariamente ansiedade na escrita? Pode-se conceber uma escrita da ansiedade? O ato de escrever requer uma ansiedade essencial? (Foram estas as indagações mobilizadoras do evento realizado on-line, registrado, arquivado aqui).


Existencialidade e Impessoalidade em um só momento


A existencialidade, presentificada e posta à prova na sempre primeira sessão de escrita (por mais que alguém atravesse épocas em tal atividade), faz emergir uma dinâmica disposta entre certa blocagem interna e a modelação do “literário”. Acaba por criar uma ansiosa meta, ao mesmo fazendo despontar uma espécie de “trava”, tendente a ser perene – uma vez que deixa à mostra a cena do psiquismo em face da transmutação exigida pela escrita, sempre permeada pelo universo da pessoalidade trazendo o denso referencial de quem escreve. Vem inclusive daí, de tais marcas sobrecarregadas, em impasse, o motivo, como também o rumo, da criação.

Por outro lado, o surgimento de tais elementos são os indícios mobilizadores de processos tornados procedimentos imprescindíveis para a vitalização da escrita. A narrativa de tais enfrentamentos ganhará contorno reflexivo e propositivo à medida que põe o pensamento, as sensações de quem escreve num exame mais e mais desgarrado de uma recorrência personalista por força mesma da fabulação, do andamento frásico especial do poema, do dialogismo inevitável de um texto teatral.

Em The Language of Inquiry, Lyn Hejinian, grande poeta contemporânea, muito conhecida pelo livro híbrido por natureza, intrigantemente intitulado My Life, expõe de modo arguto como a escrita envolve algo de si, no mesmo movimento em que deixa plasmar a linguagem-questão desentranhada daquela/daquele em desempenho escritural. Fica, então, sinalizada no ato cada vez mais afirmativo das mãos sobre papel/tela digital uma forma de jogo entre o que/quem quer escrever e a configuração nascente de uma alteridade irrefutável impressa pelas dimensões textuais que passam a compor o que se entende sobre si, sobre arte, simultaneamente. À gradação de quem é pensado – para lá do único ponto pessoal – quando alguém pensa por meio da linguagem.

Irrompe, então, uma espécie de relato interno – capaz de render a narratividade de um projeto, a musicalidade sequencializada de palavra em poema, o encadeamento de cena-fala-diálogo no âmbito de teatralidade – a todo escrito acerca da dinâmica instaurada por alguém que passa ser objeto do material em composição. Já apontava Starobinski, em L’oeil vivant: chega-se ao ponto em que o escrito nos vê e passamos a trabalhar (a nos trabalhar, como induzia Rimbaud na Carta do Visionário) em função do que cada texto exige.

Há uma espécie de depuração, superação, “cura” (como bem diz Deleuze, em Critica e Clínica) no que se relaciona ao aprendizado da convivência com os dínamos desenrolados no escrever. Ninguém se encontra, de fato, insulado numa problemática instransferível quando tem em pauta a pauta (caderno/caderneta/folha volante, página líquida informática). Porque a ânsia para pôr em palavra o vivido, o não-dito, o jamais dialogável, o puramente imaginado, não deve ser descartada, obstruída, abstraída. Muito ao contrário:

Disque Angst para escrever –

A literatura pregnante não se abstém da urgência, do traço pulsional colhido no mais físico quadrante de um corpo com seus nervos, seus feixes irresolvidos, finitos, em angústia e agonismo –

Trata sempre de um embate, de certo combate, o empreendimento da escrita.

Só se realizando com todas suas fissuras, não-acabamentos, linhas de estranheza e entranhamento, o texto integral das forças em afluência e atrito possibilita a inteireza do que se chama literatura. Uma arte, sem nenhuma dúvida, inseparável, porém, do gesto em bruto de plasmação e formulação sucessivas. Algo que acaba por revelar a inexistência de forma ideal, modelo soberano, para o que se entende como literário. Pois as inevitáveis técnicas, os modos de viabilizar maior impacto nas concepções dessa arte de escrever vão se impondo sem supressão da ansiedade essencial (o que se reporta, a princípio, ao pequeno eu, como diria Allen Ginsberg num poema, aquele grão de pessoalidade onipresente, tantas vezes problemática, por isso mesmo produtora de andamentos escriturais para lá de uma demarcação estritamente personal).

Através de tal dado contingente é que a agonística, a chamada e a charada da escrita se põem em campo. Ninguém consegue chegar à ressonância de um escrito capaz de mobilizar leitores na difusão mais plena de criação e experiência conjuntamente enlaçadas, se não passar pelo universo único, irrepetível, daquela/daquilo/daquele ansiosamente lançado à arte de escrever.

Uma narrativa – extensa ou breve (sem delimitção precisa onde termina o conto mais longo se tornando novela ou outra denominação para romance) –, os alinhamentos ondulantes de um poema, os picos e as pausas da voz em cena teatral: em qualquer modalidade, se desencadeia a mutação imperiosa do que é ansioso, inerente, imanente a cada escritor em ser-de-linguagem indistinguível, insidioso, a estampar um nome subterrâneo e sedutor vindo daquele ali/de quem precisamente anseia por escrever (algo já sem nome).


Data da publicação: 16/07/2022