ANELITO DE OLIVEIRA
Da produção do autor, reunida em Desforra (2023), dá-se aqui destaque a textos reveladores dos vários sentidos de uma poética em plena sintonia com o percurso de um escritor e intelectual multiforme, pesquisador incansável das várias frentes abertas pela literatura na atualidade. Em compasso com as políticas contemporâneas da negritude no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa, que constituem matéria de estudo e atuação internacional, Anelito de Oliveira expande a compreensão unívoca passível de se depreender no âmbito do africanismo, não obstante um empenho imprescindível, uma manifesta radicação. Pois realiza um mapeamento estético e cultural nada adstrito a um único, restritivo “ponto-de-vista”, como se observa no seu itinerário dedicado ao ensaísmo, à escrita de ficção, ao trabalho como editor de livros e sites, a contar de um arcabouço plural de crítica e criação. Como se lê em Desforra, a problemática racial se faz de forma tão insurgente quanto polivalente. Produz uma abrangência de prismas mobilizantes, linha a linha, nos quais finitude e futuridade se articulam. Vida-morte na história e na linguagem conjuga um eixo inseparável da multifocalidade da palavra, com a obtenção de uma ritmia contagiante, vinda de uma construtividade básica direcionada à potência politizadora de uma dicção abrangente, amplamente convocadora.
MSV
A agonia
Limite
Certa noite numa rodoviária
Abandono coletivo
A questão da coisa
Da movência
Uma compreensão
O mundo
O morador do corpo
O indomável nos doma
Tudo incorporado
Toda distância é longe
Está prestes a não poder
Diante do que resiste
O arvoredo
Contra ele
Não o outro
Isso está
Vazio aberto
Depois de
Onde desaparece
Fora do nome
Como um invertebrado
Não se afoga
Em si
Como quem ama
Uma aversão
Aquilo que era
Forma de mar
A ânsia
Sem poder sair
Dormes no degredo
O esquecido
Mais fechava-se
Com alguém dentro
Sem distância
Um desmanche
A ausência
Um bicho
Onde não estamos
Apenas os ossos
O arvoredo
Um lugar
Escuro eu
A nascer
Poemas perdidos
Adieu Mallarmé
Cemitério de carros
Crônica de um corpo triste
Paráfrase daquele sol
Transretrato
Os peixes na tarde
Estranho espaço
A clausura do nada
Sobre H
Dentro da dor
Isto
Talvez
Minimal park
Aos curiosos
Paisagens
Fax de Minas
Despeça em um ato (pensando em Denise Stoklos)
Jogo de olho
O relógio
Dias
Cão
Crepúsculo
O branco
Ruídos
Dardo
Solto
Quase Borges
O fundo
O azul
O ouvido
Fachadas tradicionais coloridas
Circulação
Passar
Sousândrade revisitado
Écoutez-moi
Colorações
Asteriscos
Metamorfone
Coup d´oeil
Burnout
Intempestividade
Constatação
Noire
A lua
Castro Alves revisitado
Fiat lux
Atos
Minhafísica
Silêncios
Se olhasse
Dialética
O que é solidão
Qualquer palavra
Barulho
Coisa-qualquer
Sombra
3 por 4 de GR
Olvido
Anhos
Mallarmorte
Cuidado
Mínima valéryana
Teatro Nô
Metamemória
O nada
Pesagem
Mínima filosófica
Semiologia do invisível
Sufoco
Outro
Litania das flores
Estrelas
Epitalâmio de inverno
A coisa-Mundo
Há que se viajar para saber
Que o mundo não tem sentido.
Há que se viajar para desvelar
O mundo como contrassenso.
Há que se viajar para ver
A ausência do próprio mundo.
Para saber que a falta de
Sentido, que o contrassenso e
A ausência constituem a
Realidade-Mundo.
Há que se viajar.
Cada gesto de desprezo,
Cada gesto de descaso,
Cada gesto de racismo,
Cada gesto humilhante
É o mundo a se objetivar
Por toda parte para além de
Uma mera ideia sobre o mundo,
O mundo como Coisa-Mundo
Estúpido
Intolerante
Monstruoso
Insuportável
Há que se viajar por toda
Parte, transpor fronteiras a
Pé, de carro, de avião, de
Navio, a cavalo, de comboio,
Há que se viajar pelo mundo
Para saber que o mundo é o
Mal em si, que a destruição
Do bem é o seu modo de ser,
Que a produção de ódio, de
Doença e morte é uma questão
De lógica de funcionamento
Da matéria-Mundo.
Há que se viajar para
Perder qualquer ilusão
Sobre a possibilidade de
Um Mundo justo e abraçar
O mundo como ele é, com
Toda a sua fúria negativa,
Para tornar-se mundo também,
Para deixar de insistir em
Ser o contrário do mundo,
Em ser deserto, como pensava
Arendt, o deserto não fará
Do Mundo um outro mundo,
O deserto não existe para o
Mundo assim como o Mundo
Não existe para o deserto.
–
Existir é a realidade
Intramundana que o próprio
Mundo desconhece, e que
Conhecemos lá dentro
Do mundo –
O mundo é pequeno
O mundo é angustiante
O mundo é desértico
O mundo é distante
1.
Afinal, só restam o homem e sua mãe.
Tudo, que um dia esteve aberto, fecha-se de repente
e ficam, no lugar, um homem e sua mãe.
Sentados na tarde pobre, imersos numa sombra frágil,
Desamparados no mundo, lançados no meio da indiferença do
mundo shopping center, ele, o homem, e sua mãe.
Nenhum amigo, nenhum irmão, nenhum pai,
tampouco filho, nenhum internauta, ninguém mais agora,
Apenas ele, o homem, e sua sempre, sempre, sempre mãe.
Entre os dois, sussurra a força simples de todas
As fraquezas, o sentido indestrutível das coisas
mais modestas, quase imperceptíveis.
Entre os dois, reluz tudo que não precisa ter razão
para existir, que existe porque existe,
Que é suficiente em si mesmo.
2.
Afinal, só restam o homem e sua mãe
no fim, aquele que veio e aquela que o estava esperando,
aquele mesmo que não veio e aquela mesma que ficou ali esperançosa,
Aquele que continua vindo a cada instante a pé, de ônibus, de
bicicleta, de trem, de navio, de carro, de avião, no pensamento,
e aquela que o espera ainda com a mais sincera alegria
A cada instante.
Os dois que sempre estiveram na iminência de se encontrar
e se desencontrando nas esquinas de uma mesma cidade
Sempre construída e destruída a sua volta.
Definitivamente encerrados num mesmo gueto,
Ei-los encontrados agora.
Os dois, o homem e sua mãe,
Solitários na estação que sempre foi sua vida viandante,
com seus pertences sem valor de troca – eles mesmos.
3.
Eles mesmos, duas faces de uma mesma verdade,
o homem e sua mãe, quedam sem saber para onde ir,
Com a certeza de que não há mais caminho.
Sozinhos, no deserto infinito da vida,
o homem e sua mãe sabem o que foi a vida, o que é o mundo,
como são as coisas, as pessoas
E que nada foi, seria ou será um dia diferente
Do que é, apesar da luta, do sofrimento, da morte,
E só lhes resta contemplar o mútuo entardecer.
O homem e sua mãe não têm dúvida de que
Quase nada mais é possível, de que todas as possibilidades estão agora
Fadadas à impossibilidade e que viver alcança
Algum sentido apenas nesse silêncio vivo que se interpõe
Entre os dois numa tarde qualquer de um lugar qualquer
que já não é mais a casa de ninguém.
EuCarolinadeJesus – [A cidade
Quando penso na cidade, penso na infelicidade do mundo, ou melhor: na infelicidade como mundo.
Posso não saber ao certo o que falo neste instante em que não sei ainda o que é estar bêbado.
Talvez tenha passado a vida a procurar entender o que é um estado de inconsciência, que implica entender o que é a consciência.
Ó a produtividade capitalista dos conceitos, ó os lucros exorbitantes dos laboratórios internacionais, dos médicos e das farmácias!
Não sei o que é estar bêbado tanto quanto não sei o que é estar lúcido tampouco o que é estar drogado por qualquer droga.
EuJamesBaldwin – [A animalidade
Bêbados, fumantes, baderneiros, que povoaram minha infância, eu sabia ali que não poderia estar jamais na sua constelação, que não poderia atingir tamanha animalidade.
Admito minha incompetência para sair de mim – e fico pensando agora naquela dona dizendo se jogue na noite – não sei me jogar.
Hoje, enquanto anoitecia, pensava em Sá de Miranda:
“Comigo me desavim”.
Ao longo da vida, assim me vejo:
esse “comigo” é o mundo –
Talvez bêbado, morra comigo.
Afrohamlet
A Adyr Assumpção
Não sou o personagem, mas sou também isso, mais que isso e ainda isso: o personagem. Não deixo de ser isso, algo mais além de mim, mas ainda assim sou eu. Não posso ser apenas isso, como gostaria de poder! Não ser, ser, mais ainda: ser apenas o personagem.
Pressentimento possível
talvez estejamos mortos / talvez não saibamos disso
/ talvez esteja nisso nossa loucura
– talvez estejamos mortos
O desfazimento dos sentidos
dez anos desfazem os sentidos que em trinta se construíram /
em vinte anos não restarão mais provas contundentes do que foi
/ um dia /
mais trinta anos e tudo será decididamente um caso de
/ possibilidades /
todavia ainda há o excesso de carne no dia a dia /
ilusões se fabricam como escudo na guerra contra a guerra /
ossos se movem agressivos no fundo de uma história /
a insanidade / feroz /
respira no animal suicida
Anelito de Oliveira nasceu na cidade de Bocaiúva, região norte de Minas Gerais. Estreou em livro impresso de poesia em 2000, quando publicou o poema-livro Lama pela Orobó Edições Na sequência, foram editados Três festas: a love song as Monk (Orobó Edições, Anome Livros, 2004), Transtorno, Mais que o fogo e A ocorrência (Orobó Edições, 2012), Traços: poema-andante (Patuá, 2018), Degredo: poema-fronteira (Sangre Editorial, 2019) e O desgraçado Sr. Humano & Outros poemas anticínicos (Lobo Azul, 2022), todos de poemas. São também de sua autoria O iludido (Páginas Editora, 2018) e A menina chinesa (Páginas Editora, 2019), narrativas ficcionais. Acrescenta-se a estes, Os acampamentos insustentáveis (Kotter Editorial, 2019), registros híbridos em prosa e verso. Publicou os ensaios A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila (Inmensa-Fapemig, 2012) e Do sigiloso: escritos sobre a poesia de João Evangelista Rodrigues (Loope Editora, 2021). Atualmente, Anelito de Oliveira está à frente da Revista Sphera Habitações do Encantado, periódico digital que criou em 2021 ao lado da poeta Andréia Carvalho Gavita, do Canal Revista Sphera, onde coordena o programa de debates “A partilha do poético”, do Canal Diário Negro e do Podcast “Fanon Blues”, produtos que criou com a finalidade de combater o racismo. No espaço acadêmico, desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão no campo das literaturas africanas de língua portuguesa na UFMG, o que o tem levado a constantes interações com o continente africano.