IN LOCO –

EXTREMO ESCRITO E PERFORMADO

(Mauricio Salles Vasconcelos)

Em continuidade à reflexão iniciada no texto “Atos de Teoria/Cenas de Literatura”, publicado aqui no LÁPIS, quero ressaltar o fator performativo norteador de muitas das pesquisas em curso no âmbito dos Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Teoria (Linha de Pesquisa da Pós-Graduação em Estudos Comparados/FFLCH, Universidade de São Paulo). Assim como é conduzida toda uma linha de trabalho disseminada em outros núcleos escriturais concebidos sob a forma de Oficinas que venho coordenando desde 2012.

DEPOIS DO NORMAL, REINVENTAR O REAL – 1º Encontro de Produção Literária em Oficinas (realizado de 23 a 26 de agosto de 2021 através da Plataforma StreamYeard, acessível no Youtube em seus 4 dias de apresentação) trouxe para um grande público as atividades crítico-teóricas indissociáveis dos projetos de obras narrativas e poéticas em elaboração.

O sentido essencialmente experimental dos Laboratórios de Criação visa a uma liberdade propositiva desvinculada das demandas editoriais em vigor, no contrafluxo do que se formou entre imprensa e instituições de valoração do “literário”. Sempre se fundamenta em investigação desenvolvida em vários universos epistêmicos, estéticos e culturais. Algo fundamental para o erguimento de projetos conceitualmente embasados, em sintonia com a complexidade e a diversidade de signos, saberes, situações do estado das coisas na arte, na política e na vida social (desdobrando-se aqui alguns propósitos condutores de Foucault em vários escritos, especialmente na síntese feita no ensaio “Linguagem e Literatura”).

Lucas Miyazaki, por exemplo, tem como núcleo de sua dissertação – composta (como ocorre na mencionada linha-de-pesquisa) por uma narrativa e um ensaio – o caráter performático da literatura hoje. Muitas das linhas já em teorização do seu projeto de pós-graduação se traduzem em atos reveladores do que concebe como o caráter não-comunicacional da literatura. No texto “Derrelição-Prosa”, publicado neste site (veja-se na seção Teorias), Miyazaki, com base em Derrida, aponta o descarte de um a priori do espírito humano no campo escritural. Justo, onde se trava uma “ação oblíqua”, um novo idioma que se constrói nessa performatividade real e construtiva entre leitura e escrita”.

Ler/escrever/ler – O processual e inapartável liame que se trama entre quem escreve, porque leu e assim o faz num andamento criador sempre multiplicado em suas dimensões intercambiantes, pode ser apreendido na cena “Narrar, ato performativo”.

Munido de um didatismo concentrado no plano básico de uma lousa (quadro-negro) riscado/retraçado com giz, o muito jovem ensaísta e escritor exibe uma exposição sobre o performativo na teoria e nas artes numa intensificação capaz de quebrar qualquer uso simplesmente citacional de sua matéria reflexiva. Entre Debord e os filmes situacionistas do cineasta Tiago Mata Machado – diretor de Quadrado de Joana e Os residentes –, vemos um ato imersivo em sua concretude mais provocativa. O universo referencial e conceitual em que se move (tal como acontecia com a apresentação já comentada de Felipe Souza, Godard comparece mais uma vez e, certamente, Beuys se revela bem presente) vai ganhando uma estatura impressiva, em toda sua propulsão gráfica, inseparável do que emite um corpo em exposição enquanto corpus, enquanto linguagem.

Assistimos, de novo, em “Lindas delícias de moças – Safo, Maura, Chytilová” (ato concebido por Ana Pavla), à dinâmica entre confinamento e virtualidade – subjacente na apresentação de Lucas Miyazaki pelo sentido expositivo, instrucional de uma emissão realizada à distância em um lugar demarcado (uma sala de aula, de onde, aliás, derivam nossos espaços de escritura, nossos eventos). Pavla deixa bem explícita a conjuntura real, histórica, em que se desenrolou o Encontro Depois do Normal – Reinventar o Real. Traz, contudo, um senso de percurso interno nos diâmetros do lockdown, ao realizar um trânsito entre apartamento/elevador/terraço do prédio onde reside. Ao alcance do ar livre que acaba por tomar os sentidos – cabelos em esvoaçamento/gestos de fomentação liberadora – da artista/autora/pesquisadora.

Tudo culmina no topo de um edifício onde seu texto, embasado em acirrado diálogo entre Maura Lopes Cançado/Michel Foucault propõe a princípio uma inusitada parceria, mas obtém exatamente um foco mapeador da contemporaneidade que liga a escritora brasileira e o filósofo francês à época em que construíram seus projetos. Especialmente, quando se observa o papel fundante desempenhado pela leitura foucaultiana da literatura moderna para erguimento de sua arquigenealogia dos saberes e dos poderes disciplinares definidores do que se entende como humano.

Pondo em jogo a espacialidade (eixo exemplar de Foucault como pensador), Pavla alude a uma eletricidade cinemática impossível de se dissociar de certas concepções fílmicas de Chantal Akerman. Na quadratura bem delimitada do “tableau” virtual propiciada por canais/programas de streaming disponíveis na atualidade, a cena se desenvolve com a liberdade de quem lida com o cinematismo daí advindo no compasso mais imediato de quem atua no âmbito da domesticidade (em todos os quadrantes de um habitat). Realiza, enfim, um elo inovador entre teoria, escrita e o midiático, tornando robusto um manancial de referências para testemunho de experiências da instantaneidade, sob o signo do vírus e do isolamento.

“Brilhante.Clítoris – Fragmentos”, a outra peça verbal-virtual que Ana Pavla apresentou, inteiramente centrada na narrativa inédita recém concluída – Brilhante. Clítoris –, cria um dispositivo plástico tecido em torno de paisagens e estradas (ambiência que plasma seu texto de ficção) orientado por Kraut Rock. Uma ligação estonteante, envolvente, vai se formando entre a música sideral-délica de que parte e as imagens que ladeiam o rosto da autora em leitura. Algo propulsor de sensorialidades e sentidos crescentemente reveladores dos lugares e das potências do literário quanto mais se fractam na constelação de suportes e configurações audiovisuais aparentemente contrastantes com a arte de escrever.

(O escrito não se torna filme depois de inscrito)

(Não se trata, entretanto, de livro para virar filme).

Uma vez que a inscrição é feita num decurso – nada apriorístico, frisa-nos Lucas Miyazaki em embate derrideano com o gramatológico, o não-logofônico potenciados pela escrita – capaz de reconceber o lugar de letra, livro, em sintonia com regimes de signos que se entrelaçam indecidivelmente. Em tal andadura, o cinema, por exemplo, não se mantém apenas como arte da imagem, porque se indissocia do que se legenda, narra, verbaliza em montagem multidimensionada para lá de um entretenimento reservado aos olhos.

Hotel Monterey (1973), de Chantal Akerman

Por outro turno, a esfera do legível se figura pela mobilidade de circuitos visuais, cênicos, coreográficos, gestuais, sônicos, inerentes ao que está escrito: não cabíveis numa simples trama narrativa, nem na dicção datada de um “eu lírico” (reportável à soberania autoral, à mestria de um ubíquo ausente). Há um extra, um off linguístico da literatura avessa à antecedência de uma inscrição em nome de juízo/ratio/princípio (não subsumível ao lingual, à sintaxe idiomática, à retórica de gêneros concernentes a uma concluída disciplina com seu domínio técnico específico a ser regimentado por Oficinas de Escrita)


Diagrama/Scope



Uma peregrinação pelos cômodos de uma casa dá base para os atos e cenas de Tiago Cfer. O escópico é diagrama de uma tópica, parecem-nos legendar suas duas apresentações.

Legendar o performativo. Conceitualizar a escrita enquanto se faz.

Cfer começa sentado, plugado ao computador. Passo a passo se lança ao dimensionamento de uma escrita na cama, formulada a partir de amplo repertório (de Rousseau a Preciado, de Kafka a Osvaldo Lamborghini). As vertentes de seu atual trabalho, trilhadas na composição de um estudo de pós-doutoramento em torno de tecnologia doméstica e dissolução do elo familiar, através da imagem nuclear da mãe morta, presente em romances do século XX ao XXI, também se projetam no próprio romance que finaliza, Gradiente Spectrum. Arma-se, nesta narrativa, um périplo concentrado nos referenciais já vintages da sci-fi do último milênio, traduzido gradativamente para os embates hiper-reais de uma realidade tecnoglobal estampada a cada ingresso na imediata realidade, sem mais recurso de qualquer projeção/antecipação.

Introjetados nas bases do corpo social, esses vírus disseminam a ideia epidêmica de que a espécie humana guerreia e se reúne para conquistar uma unidade que garantiria sua conservação.

Este trecho, integrante do artigo “Existência sem papel – Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico”, publicado no Lápis (seção Teoria), põe à mostra as vinculações conceptivas de suas análises no campo da escrita e da crítica cultural. Revela-se, assim, mais acirrada a investigação sobre o contexto em que nos movemos sob construtos operacionais de guerra, cientificismo, engenharia social, demarcações territoriais próprias de uma geopolítica orientada majoritariamente por uma devastadora hegemonia econômica a todo custo, em detrimento de pactos com a socialidade. Todo um panorama topológico capaz de incidir no concentrado de ditames e discursos que também compõe o aparentemente autoimune aparelhamento das Humanidades e das Artes, transformadas em arenas de controle e palavras-de-ordem corporativas, indesligáveis da logística da legibilidade, do fácil trânsito comunicacional para academias do gosto, do consenso.

Em lugar da escrita administrada, agenciada por porta-vozes da carreira, de um pretenso profissionalismo em bases monolíticas, culturalizadas, tudo enfim engenhado para o alinhamento aos nichos tematológicos reconhecíveis, ao tratamento clean das vias-mestras do adestramento mercadológico-jornalístico-universitário acerca do que significa Literatura, a situação da autoria na cama viabiliza uma espécie mista de diagnose e incursão. Ao modo de Nietzsche e, mais contemporaneamente, de Avital Ronell, escanaia-se com o contrapolo direto das presenças em tempo real (para fora do âmbito estritamente funcional, tecnificado, da webesfera) o espaço de contágio, eminentemente virótico de um sistema de informação (segundo Kittler) em que se inserem as Letras – quando não adstritas ao “belo” da Estética, mostram-se munidas para dualistas contrafacções através de palavras-chave da boa-consciência e dos engajamentos instituídos.

A escrita está em coma, além de estar na cama (eis o que indiciam o texto e o ato de T Cfer). Contraria os empenhos da inserção e da legitimação (característicos de um triunfalismo consensual, em diferença com os embates de uma época agônica, proliferada em guerras incessantes de gradações variadas). Daí podem se articular desbravações de uma viagem imóvel (como propunha Deleuze em sua leitura de Beckett) na contracorrente do roteiro tematológico-turístico dos tours eivados de ação/reação, anichamento/alinhamento do literário em vigência no auge da pandemia planetária.

Projeção dos olhos de quem escreve juntamente com imagens da natureza –

O continuum da vida confinada se dá traço a traço, precisamente em espaço aberto. No plano de quem escreve e depois vê, ladeado por anti-slides numa espécie de comentário nada ilustrativo ao andamento de um potente poema em leitura (voz autoral off), desentranhado da Language Poetry e dos procedimentos performers da atual literatura norte-americana.

O escrito vai, então, palmilhando (como se surgisse no instante de sua leitura) linhas de concretude e consistente concepção verbal colhidas em áreas as mais heterodoxas: fotografia, ciência, geografia, história cultural, diário íntimo, jogo de palavras cruzadas. A autora Carolina Zuppo Abed não deixa revelado seu rosto enquanto apenas seus olhos e sua voz se entremeiam na gradação poemática. Por mais que haja visualização, o que se lê não é igual ao que se lê, mas um cruzamento da premissa autoral com o desencadeamento de um construto verbal feito de alíneas que se desnorteiam.

Decorre de tal quadro – em primeiro plano visual-vocal e, também, ao fundo de uma problemática de elaboração escritural em evocação de experimentações com a natureza – um longo poema investigativo dos baralhamentos de cognição e sondagem dos limites do humano.

No plano da teoria, o performativo, engrenado por Carolina no ato “A criança estrangeira (notas sobre a linguagem literária”), vai se situar nas relações menos visíveis de língua/literatura extraídas das confrontações entre infância e história (Agamben), entre linguagem e voz, a partir das imagens da criança e do estrangeiro. Um compósito de ilações muito argutas, desenvolvidas sob a forma de aforismos, se mostra capaz de estreitar pontos entre as teses deleuzeanas da condição estrangeira do escritor em dada língua e o aprendizado das engrenagens verbais/intelectivas dispostas por Wittgenstein em Investigações filosóficas: tudo o que propulsiona a lida com a construção da literatura muito próxima do idioma (de cada falante, de cada autor) sempre a ser reescrito, repensado, pela condição de infans irremovível do alcance de uma voz, de um ingresso na intelecção produtora de linguagem.

Instigante, se mostra ver/ouvir, reconceber o que faz liga entre a leitura de um texto e suas modulações variáveis. Incisivas potencialidades já presentes em seu desenho conceitual de língua/linguagem, que se expande a partir de recursos audiovisuais para realização de atos de teoria e cenas de literatura.

Os projetos elaborados por escrito não parecem os mesmos quando configurados nos quadrantes visuais/virtuais. Na verdade, o trabalho literário produzido nos Laboratórios de Criação se compõe de elementos de pesquisa e experiência em diversos graus de conhecimento e existencialidade como motrizes de concepções ainda não dadas. Essas que se formulam da combinatória entre os universos das teorias e o plano de singularidade que cada produtor de escrita aciona em seus processos simultaneamente fabulatórios e cognitivos, imaginários e referenciais.

Tal intensificação de sonda intelectiva se vê acrescida do trabalho sobre si. Eis o que consta das premissas da Carta do Visionário, escrita por Rimbaud no auge da Comuna de Paris. No auge da ideia-índice de revolução em sua descontinuidade há mais de 150 anos, do século XIX até esse insurgente momento, gritante é o modo como a pauta rimbaudiana desfaz a mecânica operação de uma escrita de si (da escrita igual a um eu). Justo, a que se exibe engendrada por uma identidade fixa, consolidada sobre a soberania do sujeito e a disciplinarização da literatura em seus gêneros monopolizadores de tendências nomeadas como auto ou bioficção, formatadas que são pelo aplainamento dos trabalhos dos corpos, em sua multivariação, como bem podia contrargumentar Kathy Acker.

Desponta no Encontro Depois do Normal... o dado de que o traço performático só pode transcorrer como intervenção, presentificação, a contar de um empenho já existente no espaço da escrita em tal propulsão de ato, no desenrolar de um propósito escritural-conceptivo. Algo advindo de uma busca, de uma cartografia, de uma geografia de letras e signos, referências e pontuações, redesenhadas com senso amplificado de historicidade (marcas epocais jamais ocorridas antes, senão agora, no momento em que se passa a escrever). O que não é condizente com nenhum outro corpo a não ser aquele/a de cada autoria em experimentação, em estado contínuo de descoberta. Para lá de uma assentada biografia, de uma almejada ocupação de cadeiras reservadas pelas academias do “literário” (mesmo aquelas aparentemente “à margem”, em luta pelo poder centralizador das “boas causas”).

Escrever literatura diz respeito a um trabalho. Trabalho sobre si (tal como legado por Rimbaud e atualizado no fim do século XX por Kathy Acker em Bodies of Work). Tal voltagem se impõe como um dado constitutivo inamovível de qualquer projeto de escrita. Uma autoria não se mantém por moldagem aos valores em curso sobre persona e papel do escritor no mercado, na conjuntura insulada de uma “atividade artística”, sempre a serviço da administração de corpos concretos e bens simbólicos.

Indesviável, a mutação daquel@ que escreve ao compasso de cada escrito, na linha indagadora que se plasma gradativamente a exigir do scriptor a aventura real de se reinventar, de reconceber autoria, teoria e literatura, sob influxo de intempestivas e irrefreáveis reconfigurações estéticas, subjetivas, políticas, históricas. Ao ritmo do livro por vir (avesso à assinatura abrigadora nalguma estância instituída).

Ao transcurso de vida-devir. (Só pode existir, após suas anunciadas mortes, seus imperceptíveis ressurgimentos, a literatura como acontecimento). Especialmente, agora. No interior do Mundo-Imagem, em ativação da escrita-postagem: seja na Rede, seja na Real com seus endereçamentos previsíveis, tautológicos, ao compasso confinador, imobilizante da Ordem e de uma insertiva, “estrutural” Contra-Ordem. Do real como norma ou do fabulativo como referência reconhecível. Da duração naturalizada enquanto decurso de dados reportáveis/fatos noticiados.

Tal como se lê, tanto no literal quanto no lítero limiar 2020-2022. Desde quando –



Depois da Imagem-Literatura – Post Escrita-Postagem



Ruídos da rua confluem com encruzilhadas de uma narrativa sobre o tempo.

Assim concebe Priscila Gontijo um romance – seu terceiro, ainda sem título, conduzido mais uma vez pelo critério da polifonia como noção basilar da escrita no gênero.

A apresentação do arsenal teórico que ergue, conjuntamente com a arquitetura ficcional, dá destaque ao espaço onde ela escreve, inseparavelmente envolvido pela captura de sons percutidos através da janela (o celular atua como radiograma de escuta, visão, palavra).

Seu ato, referente a um momento do processo de construção narrativa, acompanhado de uma proposição ensaística, busca materializar os vazamentos de um núcleo romanesco por força de um entorno ruidoso, cortado por toques eletrônicos, vozes urbanas, rumores inimagináveis, típicos de uma cidade como São Paulo, que não cessa sua condição de canteiro de obras. No mesmo movimento em que SP incita e desaloja populações.

Tela de computador/janela – O romance se engendra como plano fronteiriço, aberto à porosidade de registros vocais desdobrados de cápsulas subjetivas acionadas imediatamente pelo corpo em escrita, logo amplificadas em um maciço de coletividades contíguas a qualquer modo de habitar uma metrópole, especialmente essa (referencial na América Latina) feita de vizinhanças multitudinais não de todo sondadas.

O novo romance de Priscila Gontijo ganha gradações inesperadas da geografia global incidida nos menores pontos em que alguém se localiza. Tal problematização galga a encenação dos atos e das páginas da autora. É o que se traduz no quadrado virtual em que ela lança o propósito de fazer literatura, na sintonia do conjunto de outros autores reunidos em Oficina. Um andamento muito próprio se impõe através do misto de leitura/digitaçãoestenografia e o ruidoso aparato da polifonia (colhido em Bakhtin e remapeado por Deleuze, quando propõe o fabulativo como projeto de emergências comunitárias, na ritmia de um infindável elenco de figuras, seres, imagens, afluídos no esgarçado, entretanto cada vez mais consistente, universo do romance).



Estar em casa/fazer literatura – Ellen Amaral descortina seu locus doméstico, logo permeando-o de páginas que se abrem para um encontro com suas teses sobre Valêncio Xavier. À medida da narrativa feita de fragmentos, fraturas, fissuras, que ela vem compondo.

O que ainda se compreende como dimensão interior acerca da literatura logo expõe seu exato avesso. Em grande sintonia com as análises das autorias realizadas por Foucault (sinalizadas, aliás, pelo cerrado diálogo com o escritor/filósofo Blanchot), Ellen Amaral leva à cena da leitura uma fiação de referências teóricas acoplada aos gestos comuns de quem se encontra em casa num momento de privação do contato coletivo.

Em casa (sobre o solo concreto do confinamento sanitário-político operado pelo governo brasileiro como redobro perverso da fragilidade dos corpos em estado-de-vírus, em Estado-de-Vírus). A literatura (depois da moderna perda de aura e da sua mesclagem pós-aurática com os signos da posterioridade timbrados ao fim do último século) não atende a apelos de ordem terapêutica, teleológica que seja, por força de sua valoração ante os conglomerados multimidiáticos.

Deixa de se processar, em laboratórios de criação como o nosso, por obra de Criatividade (nomenclatura sistêmica pré-orientada), sob modelação de exercícios visando a uma recreação segmentada, preparatória para preenchimento de demandas mercadológicas, desígnios da Imprensa-Empresa. Desprende-se da ideia de obra, do empresariamento de autorias palatáveis a reciclados padrões do tempo. (Des) continua sem o ditame da comunicabilidade. Não cabe num escrito-postagem.

Ellen não para de abrir livros sobre livros, imagens dali decorrentes, quando não leituras diretas desprovidas de uma evidência coesa, como quem ganha sustentação pelas vias vivas de pensamento e arte no instante em que se montam sob uma heterodoxia de conexões. Um tudo exterior, contrário ao décor-biblioteca de um mobiliário familiar. Casa tomada (refigurando Cortázar sem o concurso do fantástico).

Fazer literatura – Acionar folhas volantes, compostas por referências, dicções, emissões no interior de uma casa inteiramente tomada por livros, linhas para vivos. Ressoa um pacto com o não-familiar nessa transmissão destituída das teorias pratos-feitos típicas dos congressos e das palestras academicistas.

Recorrendo sempre à noção de ethos, Ellen Amaral fornece contexto e conceito para debates tantas vezes programáticos, direcionados aos nichos de cultura e comércio. E o faz com uma base reinvindicatória, um clamor corpóreo-sensorial, capazes de demonstrar a força pregnante de todo escrito para lá dos usos confinadores do “literário” na atual Cena Brasil.

Numa espécie de repente,

Outra emissão – uma canção – se encandeia. Em descarte do formato sarau (indesejado pelos participantes de nossa linha de trabalho, pois cada texto não se concebe apenas como verbalização da parte de um autor, numa mecânica dualista) reservado à leitura de poemas.

Num só movimento, Rafael Lovisi Prado ao vocalizar um longo texto, com a participação de dois músicos (um deles é seu irmão, Marconi Lovisi Prado), escapa também da formatação rapper (tantas vezes abarcadora dos atos de fala/letra sob a batida dos electros elementos da sonoridade contemporânea). Parte para a abertura de andamentos inauditos – feitos na sintonia com a escuta, o escrito e a entourage eletrônica que o cerca –



Entre fala, leitura e cadência musical, concepções literárias e sônicas são injetadas com extensões imprevistas. Tanto no que se refere à estética e à extensão do canto falado, à metragem verbal disparada pela ginga-rap-repente. Quanto mais a escrita feita para ser vocalizada atua, também, no campo literário ao dispor de uma gramática excedida, ainda que timbrada por elaborados recursos de composição. Flui em autonomia das dicções dominantes (reguladas que são na poesia escrita no País por um toque reiterado de brevidade, quando não por uma discursividade adiposa, com visíveis marcas datadas). Canta-se – pela voz de Rafael – um poema (não se trata de uma “letra”), com toda sua carga de complexidade, em pleno impacto imagético, fazendo reverberar cesuras e dobraduras impossíveis de se moldar a um regime eminentemente melódico, musicalizável. Voltagem e voragem vocais à volta de um escrito.

Rafael Lovisi Prado se junta a membros da família (esposa e irmão) para pontuar em duas encenações modos de presentar (mais do que apresentar, de marcar uma presença) a poesia e a teoria. Ao lado da esposa, decupa a sintaxe da crítica, o teor propositivo da análise, por meio de um flagrante intimista de sua voz ladeada pelos timbres femininos, tão fluentes quanto despojados de intenção retórica. Pensar, partilhar, tal como se dá numa parceria de mentes e corpos.

Referenciais, repertórios, bibliografias – todo um manancial recolhido das Humanidades pelos campi universitários – ganha um curioso relevo, em tempos pandêmicos, quando se capta de dentro (das casas e de casais) o vitalismo de se produzir pensamento – em diálogo sempre com uma almejada “produção de conhecimento”, subjacente à atuação no ensino de 3º grau –

Tudo se eletriza de corpos atuantes, producentes, de fato. Tudo se torna elétrico – com guitarra e baixo – muito pela busca de uma literatura à altura da onda (tempo-espaço culminados no instante-imagem e no locus marinho) vinda só agora, no entanto ruidosa de ecos esparsos há tanto tempo. Tradições, traduções, travessias por vários meios. Há algo no ar e na folha de algo lido, à vibratura da mão em trabalho/no interior e nos exteriores de uma Oficina.

DAR UM CORPO ao Imaterial/Informacional (como Ellen e @s outr@s DEPOIS DO NORMAL já induziam)

Eletrificar a linha, o canto, em retomada de um gesto poético amplificador

Invés da Escrita dos Endereçamentos/outro plug do post web world indissociável do tempo real das pessoas em suas causas/casas/abrigos humanológicos, pretensamente imunológicos

Em seus dois atos (era uma vez agosto de 2021), Anderson Lucarezi expõe um apuro na tékhne das imagens-postagens, no mesmo movimento em que faz crítica de sua própria produção.

O acabamento impecável da edição aponta, desconcertantemente, para o elogio do jogo especulativo, ligado a experimentações caóides.

Potencia-se o timbre de uma apresentação quase didática (Lucarezi é um competente, elegante apresentador; veja-se o programa on-line Eletrografias, produzido por ele e Eliakim Ferreira) em sua justeza expositiva, a conduzir o mundo-imagem a uma proposição escritural tão elastecida quanto analítica das possibilidades de expandir o controle dos meios/dispositivos e o apelo a recepções imediatas. Essas facilmente inscritas num repertório previsível, totalmente contrário ao potencial de mescla, de criação infindas nos domínios da imaterialidade. Evita-se, assim, o erguimento de um simples pódio de comunicabilidade interpessoal, do trâmite político-comercial de linguagens e inserções culturais reconhecíveis. Lucarezi ultrapassa o fórum das opiniões e oniscientes formas de controle mediadas por alinhamentos-like.

À medida que os fluxos de uma exibição clean – intencionalmente elaborada por Lucarezi –, muito bem orquestrada com forte senso rítmico, propicia um rasgo no tecimento da estriagem/estratificação da escrita enquanto leitura – da voz reflexiva (reservada a profissionais dos diferentes meios, dos teleprompters aos palestrantes de Eventos do Pensamento).

Toque-dicção feito em off pelo escritor enquanto apresentador. Algo que se mostra embasado em múltiplas recorrências crítico-teóricas – Quanto mais Anderson frisa seu caráter de mensagem.

O jovem poeta, também autor de um romance em preparação (Karaokê bar), deixa avivada – esquadrinhada por meio de imagens multimeios levada a uma vertigem de requinte plástico e refinamento reflexivo – a teia plurívoca e, simultaneamente, unidirecionada, em que a escrita enfrenta sua condição post – (tudo fica ainda mais acirrado, quando ele apresenta trechos de seu romance, em outro ato, outro “apronto” conceitualmente estimulante). Através de um polifacetado coro de vozes em entrechoque, dotado de força para redesenhar o sentido multifônico do cronotopos romanesco de hoje –

Escrever exatamente hoje expõe a confrontação com um depois do pós-moderno – depois de uma normativa pertença global – e o onipresente traço-postagem: por meio do qual os encaminhamentos do literário tendem a se dispor enquanto endereçamentos legíveis, sistematizadores de uma circulação-corrente. Ao sabor do imediato contato com um consensual, pretensamente universal, Logos telemático.

Jenny Holzer, 2020

Muito tempo depois, então, agora –

Potenciados por técnicas de emissão, edição e projeção, os escritos de/sobre literatura fluem publicamente. Contando-se com o abarcamento das forças de criação e reflexão nesse transcurso histórico, um sentido laboratorial, misto de teorias e autorias, se desenrola, se desenvolve bem além do monopólio do discurso cientificizante e do referendamento do que se faz legível/legitimável enquanto arte. Sob o influxo da intelecção colhida em vasta rede teórica. Porque se insurge de processos, projetos, teses, um traço de testemunho ao vivo (para lá do código instrumentalizado por lives).

Sempre interessa escrever em dado tempo, de modo que um estudo, um texto, não sejam mera reserva técnica, recurso autoreferendador de uma disciplina, de uma linha-de-pesquisa

É possível ver as escolhas, os pactos com poder em vez da potência, quando se trava contato com uma produção por escrito. O desenho de obra, autoria, direciona desdobramentos agora como nunca antes. (Desafiador é criar em tempo complexo, controverso, ao inverso de qualquer imediata transformação). Propostas críticas, criativas, desalinhadas dos atuais improducentes sistemas e nichos de referências, indispõem-se com a composição de um quadro de atitudes reiteradas para manutenção do que dá status, em reverência a estratos reprodutores de um mesmo tipo de escrita/escritor. Surge, bem aí, um movimento de mudança.

Quando não ocorre o elo com instante/performance de cada ser em ato, em dada arte, só há discurso de preservação do avalizado, classificado em nome de uma soberana autoria, adstrita a um domínio central, judicativo e modelador (garantida por corporações, conglomerados de edição, recepção, crítica, comercialização e pela didática regrada em workshops). Visível, se mostra a imposição de um plano hegemônico de saber, fazer e existência (em nome do literário, da entidade-escritor).

Estamos até agora aprendendo com os atos e as cenas de um Encontro com integrantes de Oficinas de Literatura: Performatividade se define pela multiplicidade em instante único, sempre último. À medida do que está escrito: logo põe em mira o próximo escritor.



Os 4 dias do Encontro estão disponíveis através dos links:



https://www.youtube.com/watch?v=hVJJK4PPOOs&t=1208s

https://www.youtube.com/watch?v=VkjxtzZkpO4

https://www.youtube.com/watch?v=3kdrvb0BFWc

https://www.youtube.com/watch?v=DPYjA8jKNzY