Fiação

(Carolina Zuppo Abed)

por Carolina Zuppo Abed

(Poeta, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos

Comparados/Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Teoria)






Os olhos não cansam se deixamos a vista vaguear com o correr da estrada. Mas, se focamos em uma árvore específica e tentamos acompanhar, o olhar vai e volta e se retorce e sentimos os nervos oculares cansados. É, talvez, nesses momentos, a única circunstância em que lembramos que temos uma coisa tão específica quanto nervos oculares.


A deslizante luta contra o sono traz os repertórios mais inusitados. O dedo rola na tela.


Figuras de Lichtenberg. Descargas elétricas em superfícies planas com alguma acidez e alguma umidade abrem caminhos ramificados, multidirecionais. O choque percorre a matéria (p. ex. uma tábua de madeira ou a pele humana) desenhando árvores sem folhas.


O Google me disse como funciona, mas ainda não sei o que quer dizer. Sei como se forma, sei por que acontece, mas o que isso provoca em mim ainda me escapa.


É no fim do dia, quando nada mais é dito, que o indizível das coisas se avoluma e cria sucessivas imagens por trás das pálpebras já fechadas.


Pense numa estrada vicinal. Ao redor dela, pasto rasteiro. No começo você busca por um lago, um riacho, uma cerca. Árvores variadas, plantações, algum relevo. Fica à espera de qualquer curva que modifique a paisagem. Depois relaxa os ombros, um pouco frustrada, um pouco contente. Acostumada à extensão infinita da grama, indistinguível.


A insistência das figuras recortadas no escuro dos olhos cerrados.


Ao longo da BA-052, dando as costas para Salvador, as palmeiras cedem lugar a cactos interessantíssimos: altos e largos, começam por um caule, único, grosso, que se desdobra tal como galhos, de modo que, vistos de longe, poderia se pensar mesmo que se trata de árvores secas e gordas. Mais curioso ainda: o tronco central se resseca, racha, perde os espinhos e se traveste todo de casca marrom.


O tempo tem outro andamento quando estamos de olhos abertos?


Criar um circuito de alta voltagem com um transformador, fio de cobre e dois terminais, um de cada lado de uma mesa rústica de madeira. As figuras que a eletricidade esculpe no tampo não chegam a se encostar. Essa é a metáfora perfeita – e, portanto, invariavelmente cafona.


Quanto da existência se transforma ao atravessar uma noite bem dormida? O sono do adulto é diferente do da criança, acho.


Ao cacto comestível chamam “palma”, e no paladar é algo como comer um pimentão refogado no dendê. Há mais de 350 espécies conhecidas de plantas alimentícias não convencionais que não frequentam os nossos pratos. É difícil dar espaço para o que não sabemos nomear.


Os olhos enxergam melhor abertos ou fechados? Ver na memória, ver na retina. As diferenças são óbvias; a resposta, não.


Evgen Bavcar, fotógrafo cego, perdeu a visão de um olho por vez, em dois acidentes ocorridos num curto espaço de tempo. O esquerdo foi perfurado por um galho de árvore, o direito foi atingido por um detonador de minas. O artista só conhece seu trabalho pela descrição dos outros. “Narciso morreu afogado porque não compreendeu que entre ele e a imagem existe a água. Eu sei que entre mim e a imagem há o mundo, há a palavra dos outros, uma grande distância.”


A privação voluntária do sono – será uma forma de passar o tempo ou de capturá-lo?


Quando criança, rabiscava árvores com galhos secos e raízes imensas que se confundiam pela página toda. Eram apenas riscos ondulados se ramificando e espraiando para cima e para baixo, em diagonal a partir do centro, onde um tronco mínimo amparava todo o emaranhamento.


Às vezes nos esquecemos de piscar. Em geral, diante de palavras ou imagens em movimento. Nesses casos, ou em situações de choro, fazem-se pequenos veios vermelhos no branco dos olhos. Recomenda-se: colírio, parcimônia ou o álcool potável favorito, conforme seja o caso.


Muitos cegos de Lisboa não têm olhos, conservam apenas suas cavidades. O motivo disso permanece tópico de especulação.


Minha arteterapeuta me disse que a árvore representa a vida: as raízes sendo a sustentação, aquilo que nos nutre; a copa como forma de se relacionar com o mundo e o tronco fazendo o meio de campo entre uma coisa e outra.


Com frequência leio textos dos quais só entendo cerca de 30% e tenho a sensação de que o resto nunca parará de ser lentamente absorvido até o dia em que eu perder a capacidade cognitiva.


Recentemente aprendi que as árvores são tão grandes para baixo quanto são para cima: se não encontram espaço para aprofundar as raízes, também não se aventuram demais para o alto.


- bicho geográfico

- rachaduras na parede

- pés rompidos como um solo agreste

- o solo agreste

- filete de água num leito seco OU na praia, após as chuvas vemos o caminho das poças para o mar

- rizoma: botânica/filosofia

- o reflexo luminoso na superfície ondulada de uma piscina (não está imóvel)

- neurônios


Faz pouco tempo que descobri o pássaro da madrugada. Toda noite, por volta das três horas, ele canta na minha janela, talvez sabendo que eu estou acordada.


A mata atlântica é cíclica: as suas árvores vivem mais ou menos 500 anos e então tombam, porque encontram um solo de pedra que impede as raízes de se aprofundarem (mas continuam crescendo fora da terra). Floresta de Ícaros verdes. Assim me contaram.


O que pode o sono diante da profusão da linguagem?