MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (PARTE 5)

ROMANCE COLAGEM:

MEMÓRIA EM GUERRA


Tiago Cfer

Com o livro Minha mãe morrendo e o menino mentido, Valêncio Xavier apresenta para o leitor um espelho preto e branco de sua vida de escritor (ficção), um amplo panorama em bandas de histórias em quadrinhos expandidas. Romance mise en abyme, inicia com a aspiração da infância do narrador pelo grande olho da mãe. O autor constrói a memória de um menino – que teria sido ele – capturado pela tela, afetado ao longo da existência pela incessante morte da mãe. Uma vida indissociada das realidades simuladas pelos meios de transmissão de imagens e informação.

A narrativa de V. Xavier, composta por três romances gráficos – Minha mãe morrendo, Menino mentido Topologia da cidade por ele habitada e Menino mentido – que são montados com técnicas de colagem de registros os mais diversos, procedentes de mídias populares em preto e branco – jornal, revista, TV, cartazes, publicidades –, inova o sentido da colagem dado pela literatura de William Burroughs, como na trilogia cut-up dos anos 60: o de mover uma guerra, uma revolução eletrônica contra a opressão das sociedades de controle.

A mãe morre, mas antes de desaparecer sequestra os olhos do menino, arquivado em seu olhar. A memória do corpo morto, indesejadamente visto pela última vez sob mortalha fúnebre, viria assombrar a imaginação do garoto por toda vida. Assim, sua arte de escrever romances consiste numa permanente luta contra os fantasmas que gravitam a morte da mãe inerente. Técnicas de colagem, edição de memórias, simulação de realidades que ganham plastia novelesca são maquinadas pelo escritor para apagar os traços do defunto matriz. Traços que, no entanto, dão o tom das maiores obsessões de sua literatura: morte, tragédia, crimes, desastres, pânicos coletivos. O mundo sem-mãe, passado por uma vontade louca a um filme de terror em branco e preto sem fim.

Minha mãe morrendo e o menino mentido

Contudo, a arte de Valêncio Xavier, apesar de aterrorizante, nada tem a ver com o terror imobilizado em culto. Pelo contrário, seu noir desenvolve-se sob um erotismo das imagens muito específico, a contar da imagem por onde essa literatura entra em órbita, mãe morrendo = Vênus sempre ressurgente das águas do horizonte. Essa espécie de cena primitiva converte-se em moto-contínuo da formação sexual do narrador. A partir dela sua copulação com o universo das máquinas e mídias aciona-se em uma excepcional produção artística, existencial. Vem do corpo da mãe morta a paixão, a força combativa do escritor às doenças da memória – doenças criadas nas próprias instituições de controle da memória, como a família, escola, o hospital, museu, meios de comunicação oficiais etc. A arte do romance em Valêncio Xavier implica uma permanente e mutante criação de correlações entre imagens e pensamentos, na produção de memórias futuras – sempre feitas de materiais – restos – extraídos do passado.

Minha mãe morrendo e o menino mentido

Cinema pop, romance gráfico


A colagem no romance de V.X. tem efeitos e propósitos muito próximos à colagem praticada em um filme de Jean-Luc Godard como O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965): em sintonia com a Arte Pop dos anos 60, em seu modo de misturar “grande arte” com elementos da “baixa cultura”, o cineasta vale-se da parataxis para escapar ao definhamento das hierarquias culturais. Em relação serial/sideral com as manifestações artísticas ditas “menores”, JLG enfrenta a ameaça de desintegração da arte, o desaparecimento das grandes narrativas e a conversão do autor em marca – sob longa sequência de guerras mundiais culminadas numa Guerra Fria contínua –, com uma produção fílmica baseada em procedimentos diferenciais característicos das séries. Entre diversos gêneros, de histórias de amor a aventuras, filmes de terror, gangster, comédia, O demônio das onze horas põe em relação disjuntiva palavras e imagens que passam a constituir um espaço fronteiriço, intersticial, por onde a ação do filme, movida por liberdade e revolta, realiza-se.


Pierrot le fou

O que se passa entre filmes, reportagens e propagandas, imagens de rua e épocas, transmissões televisivas, história, memória biográfica – revocados segundo critérios dispersivos e irrestritos de recepção e organização adotados pelo autor? A coleção de colagens, ampliada a cada página de Minha mãe morrendo e o menino mentido, distribuída segundo uma lógica de investigador obsessivo, cheio de manias detetivescas, vem liberar no leitor uma movimentação imaginativa peculiar, pois o resultado desse encontro depende muito de sua própria experiência. De todo modo, as páginas deste livro concentram diferentes perspectivas e planos, formas e matérias em enquadramentos icônicos que funcionam como vetores eletrizantes de disseminação de espectros temporais insufladores de memórias ainda não vividas. Independentemente das habilidades do leitor, são cápsulas de tempo e viagem da memória.

Minha mãe morrendo e o menino mentido

A radicalização fabuladora de Valêncio Xavier, testemunhada em seu modo de recriar o espaço onde viveu em São Paulo, na República, durante a infância, e os anos de aprendizagem “científico-religiosa” no colégio São Bento da década de 1940 em conflito com uma forte carga de erotismo capaz de ficcionalizar um massacre sanguinário nos corredores do colégio; a iniciação de uma imaginação sexual em contato com programas de TV, propagandas, exasperada em sua relação com a prima também criança, etc. Enfim, o modo como o autor faz a “topologia da cidade por ele habitada”, quando menino, vem dar existência a uma outra memória que não a daquele garoto Valêncio Xavier que viveu em tal época. Cria uma outra experiência de infância, meticulosamente montada e observada pelo autor em sua maturidade. Anacrônica e atual, essa memória expande o olhar presente tanto do autor como do leitor. O livro podendo ser definido como conglomerado de arquivos, memórias vivas em disseminação, metamorfoseadas a cada leitura.

Trata-se de demonstrar que a história jamais encerra-se em uma – mesmo que desejada – neutralidade; de apreendê-la em seu movimento contínuo, revolto e sem volta. De conceber o tempo como matéria e memória para sempre inoculadas com os efeitos do vivido.

Assim, na mesma medida em que V. X. se apropria da cidade onde viveu, também concede a ela uma nova vida. Talvez pudéssemos traçar relações entre Minha mãe morrendo e o menino mentido com My Winnipeg (2007), “doc-fantasia” de Guy Maddin. A contar de sua experiência terrestre sempre associada à imagem materna, mixada, reprocessada, passando por todas as variações possíveis da imagem/linguagem – do lixo ao luxo e à luxúria. Uma experiência que mescla "história pessoal, tragédia cívica e hipostatização mística". Ou também relacioná-lo com as imagens heterotópicas de Blood for Dracula (1974), filme dirigido por Paul Morrissey e produzido por Andy Warhol. Imagens que orbitam a inquietação de um Drácula em guerra com sua memória saturada, ávido por virgindade feminina. A mutação do olhar e a circulação sanguínea das imagens – sede de vida... Mas por enquanto, isso são apenas conjecturas para parágrafos ainda não escritos.

My Winnipeg

Blood for Dracula

Minha mãe morrendo e o menino mentido