CONTOS DE SÉRGIO JOSÉ CUSTÓDIO

Sérgio José Custódio é autor do livro O Caminho da Universidade (Editora Assahi, 2006). Escreveu o ensaio "Eu acuso: os ovos da serpente", (Jornal Brasil de Fato) e o artigo "Among four hotels: anti-racist public policy in Brazil", (SocArXiv Papers, Cornell University), publicado em 2021.

Doutourou-se pela FFLCH-USP.



AS TRÊS TORNEIRAS


A água pingava nas três torneiras no fim do corredor, depois das salas de aula do primeiro andar. Sede. Água normal de beber em escola pública da periferia num sábado de sol.

Todo mundo bebeu?

Nada demais, de errado, não?

Não é água do rio Tietê, aquela parada e fétida, afinal.

É a água da escola, de ontem, do mês passado, do ano passado, do ano que vem.

Bebe-se a água como se come o pão com a salsicha. Sabe-se da água o que se sabe do pão, da salsicha. Há uma garantia de ordem escondida em algum lugar, uma garantia de que aquela água é água.

Da água, das torneiras, há uma narrativa aguada, não se sabe muito como não se sabe muito do poder da água na seca, da água benta, da água da morte dos alagados, da água-bucho-de-gente-descarga-canos-rio-drenagem-filtragem-cloro-água viva de novo, nas torneiras, água de beber de bucho de passagem de água.

A história aguada era um cinema pulp fiction de sangue e cachorro quente ensanguentado de catchup, uma água que corria na torneira da escola que corria para dentro dos buchos, fazia água nos olhos do professor que queria chorar água de verdade e fazer história de verdade num tempo aguado demais, batizado demais.

O professor bebeu a água.

A água da torneira tava batizada? Era água benzida?

Bebo não. Disse o guarda que zela pelo prédio público com seu uniforme aguado de azul do céu.

Ali era o CEU. Lugar de Educação.

Que será? Perguntou o cego com a bengala que saiu atrasado do intervalo e foi o último a chegar nas três torneiras a tempo de pegar o muxoxo da troca de plantão dos guardas.

Sangue na água? Quedê?

Não se vê nada.

Pra um cego não faz diferença;

Bebo não.

Algo aconteceu na mente do cego que trava o gesto de levantar a mão aberta em copo até a boca, até a torneira.

Instinto estranho instinto.

Bebo não, saiu de fininho o guarda. O cego não bebeu.

No domingo, dia de cursinho popular naquela escola de periferia, na hora do intervalo das dez da manhã um zum-zum-zum cresceu, cresceu e algumas pessoas vomitaram das beiradas do corrimão em frente às salas do primeiro andar.

Um corpo de um jovem morto fora deixado na caixa d’água do CEU na sexta-feira à noite, lá no alto, bem escondido, ninguém viu.



NOITE DE PLÁSTICO


A noite chegou como dois homens, um de máscara de pandemia, outro sem máscara.

Não fez alarde a rua. A rua dormia.

Faço noite todo dia, disse um.

Uma noite de plástico, medida, engoliu o corpo da casa e saiu com ele, sem rosário, sem mãos atadas, sem cerimônia. Silêncio burocrático.

A morte não morre na cidade grande, há uma multidão de máscaras.

Digitais, pvn-5, reais.

A morte não comove a vizinhança.

A morte fica escondida na cidade, não se fala nisso.

Se as mãos sem vida falassem, diriam que fez belos vestidos com palha de milho em bonecas de cabelos de milho, bonecas de espigas de milho. Diriam que sangraram na tábua de lavar roupa na beira do rio. Sangraram no cabo da enxada para vencer o eito. Sangraram para puxar para o chão feito chuva grãos secos de folhas ásperas, duras, grãos de café que choviam do alto do pé de café para as ruas de café asfaltadas de lona de pano cor de mostarda.

Se as mãos sem vida falassem os calos diriam ai.

Ter calos é trabalhar.

As ave-marias, a procissão, o mundaréu de gente, os padre-nossos, tudo sumiu na noite de plástico da cidade.

Prenderam a morte.

A morte sumiu e isso que é o perigo.

O sumiço da morte dos olhos do cão, do gato, do catador de latinhas transforma a cidade num faz de conta que ninguém morre. Uma senha sedutora e autorizativa para a morte. A morte mais cruel. A morte que bêbada pede passagem nas asas da imaginação das armas. A morte escondida que chama por mais morte no faz de conta que não se vê.

A campainha soa estridente. Cem homens armados, cinquenta com máscaras, cinquenta sem, cada um com um caixão de plástico. Vieram matar.



OVO DO SONHO


As crianças procuram as brincadeiras de corrida de saco. Saco de estopa até a cintura, equilíbrio, o arrastar, pulo de sapos, de rãs, ovo na colher, criança-juiz que apita na largada.

O ovo do sonho está na colher de novo. O apito dá a largada. As crianças estão dentro do saco. E salta, vai, arrasta, segura, salta, leva adiante o ovo do sonho.

Uma foi na diagonal, na esquina do silêncio pegou-lhe o tiro na cabeça, o sangue, o ovo saltou da colher, não quebrou, está na rua.

Teimosas as crianças não desistiram da corrida de saco, uma nova criança entra na corrida. Foi marcada nova largada para dali a uma semana. Choravam, sem arrastar, sem saltar, sem sair do lugar.



SEGUNDAFEIRA


Segundafeira trabalhava sobre o texto impresso do jornal.

Entrava duas da manhã, saia às dez. Dia sim, dia também.

Lia, sublinhava, recortava, juntava, copiava, montava pacotes, conforme os pedidos dos clientes.

Os pacotes chamavam clippings e atendiam os gostos.

Havia pedidos de clipping de todo tipo, o ortodoxo, o heterodoxo.

Ele trabalhava sobre a primeira fornada dos jornais do dia, jornais de toda fama, Brasil afora, papel quente, alguns dias vinham revistas também.

Havia clientes interessados em pacotes sexuais de poderosos, outros em fotos apenas, alguns interessados numa palavra só. Segundafeira era o caçador de palavra.

Com o passar das madrugadas, semanas, meses, anos, Segundafeira tinha em casa uma gigantesca coleção.

Com a chegada do computador sua coleção perdeu o fermento.

Segundafeira foi despedido.

A empresa faliu.

As pegadas daquele trabalho de anos ficou na coleção particular no fundo de sua casa, ao lado do banheirinho. De cada clipping, ele guardava um exemplar consigo.

Olhava o quarto do fundo agora e chorava desempregado.

Passou a fotografar e publicar em rede social toda sua coleção.

Era a prova de que vivera.

Houve um grave problema com a publicação na internet de sua coleção de pacotes sexuais de poderosos.

Começou a sofrer perseguição nas redes sociais e ameaças de morte.

A danação foi uma postagem da foto antiga de dois poderosos jovens na calçada com a placa de uma sauna ao fundo.

Um tinha virado Senador.

Era piada pronta.

Segundafeira era na prática retalhador de mundos sem ser canivete, tesoura, novela, série, escritor, montador de filme.

Tinha animalescamente desenvolvido um faro.

Um faro para saber do vento dos poderosos, da direção de seu sopro, de seu logro.

Com esse faro desmentia o escritor argentino, o político da oposição, a universidade, a opinião pública, a casca que veste o mundo de segunda a segunda.

Dos militares aprendera que a prática sexual aberta e franca era a regra. Que a orgia romana era a regra entre soldados que sempre valorizavam a boa amizade masculina. As cascas de banana jogadas aos olhos da rua não enganavam seu faro profundo de caçador de palavras, de colecionador.

A extrema direita quer a guerra e não se importa com a questão sexual, apenas em como lançar cascas de banana para olhos lerdos.

Hitler era a orgia.

O cheiro do poder atrai gente de tudo que é tipo por onde passa.

Com a inteligência artificial, a máquina faz o trabalho de Segundafeira, caça bajuladores para a reprodução no poder, com o faro de Segundafeira: loucos, sãos, doidivanas, transviados, santos, assexuados, convertidos de araque, famílias, soltos. Há o grande olho de Segundafeira, o grande nariz, as grandes mãos, de tudo juntar, separar, recortar, bater no liquidificador e beber, beber o elixir do poder que gera ilusão de que a paisagem crescente de desigualdade faz parte da natureza. O licor que enlouquece.

Segundafeira foi dispensado, engolido, comido por todos os poros, roubaram-lhe o faro ao poder, o faro, antes do ato, antes da marca, antes da performance.

O faro que organiza a obediência universal, sádica, cínica, onde cabem como fregueses os adoradores de Sade, não há o que não caiba, é plástico, é o agora, está aí.

Assustado, o personagem do filme mexicano queria voltar para o útero da mãe, reverter, reverter, ir para o escuro.

Segundafeira foi morto na rua de madrugada, vinte tiros, no fim da Augusta, centro de São Paulo, em instantes sua foto saiu na rede social, morto, rede social que tinha o mesmo nome do jornal de antigamente.