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VIRGENS VIAGENS DA HORA

 

(Mauricio Salles Vasconcelos)

Não mais se desligaram desde jogos no play-ground (enferrujado, por vezes emperrado, de brinquedo a brinquedo) pertencente à ala de recreação do Conjunto Mobiliário onde residiam.

Na passagem para a adolescência, de repente começaram a se considerar presas. A tudo (Cidade, Família, Ideia de Futuro). Veio daí o hábito de troca de confidências a partir de anotação em diários. Garotas criminosas só pelo fato de estarem já crescidas. Presidiárias a cada volta-retorno pelos quadrantes do Conjunto, pelo ar aberto. Interpretavam esses “papéis” por força de um fotonovela detetivesca multicolorida, lida depois das provas ginasianas, protagonizada por meninas malsãs irrecuperáveis, incorruptíveis, enxotadas por toda sorte de instituto correcional.

Na encolha, elas riem uma para a outra. Pois essa é a ponta de uma imensa fantasia. Porque tais figuras associadas ao malefício são também acrescidas de um contorno fabulista. Algo que torna aquele par de criaturas uma espécie de aventureiras intergalácticas jamais identificadas pela origem de um possível asteroide desviante responsável por lançá-las no meio de tudo, no ermo dos mundos.

Até o momento – metade de seus quarenta anos –, residem no mesmo prédio (Conjunto dos Empregados do Estado). Os pais de ambas estão mortos. Uma delas, adotou o garoto mais indesejado das ruas. A outra, abortou, desistiu de casamento, confiante na amizade da única amiga (na real, a peça restante e sempre surpreendente do que se chama família).

Omera e Horéstia. Os nomes algo estranhos das duas se estendem ao que os moradores daquele lugar – desde a infância até o momento (muitos mortos e substituídos por semelhantes seres curiosos pela inalcançável vida alheia, vizinha) – costumam designar. Mulheres Fora-de-Esquadro.

A ponto da expulsão da Quadra, da Quadratura de aps pequeninos amontoados uns nos outros.

Porque próximas de portas, mantêm um caloroso elo, embora vivendo praticamente sozinhas, sem contar a presença do homem já adulto (Toni) e problemático, filho adotivo da primeira, a primeira mulher (única, na realidade legislada e documentada por denúncias de toda ordem/hoje-em-dia) a fazer tudo por alguém do gênero masculino, ferrenhamente autoritário e preguiçoso. Nada adianta falar a respeito. Trata Toni como um bebê, sempre montado ele está em roupas de couro e numa motocicleta toda remendada, pura reciclagem de uma época estampada em novelas de fim-de-noite (entre o escancaramento de Nostalgia e HiperAção da Hora que passa). Bem assim, aquele homem barbado é nutrido como alguém em princípio de vida a se refestelar em um titubeante triciclo.

Não estão na Internet. Gostam mesmo de concentração na roda do que escrevem num único lugar e passam a relatar uma a outra (feito o sussurro mais físico).

Horéstia cursa filosofia online, não obstante o desinteresse em divulgar o que pensa e vive através de redes – Páginas (ou Colunas?) Sociais

Veja –se um dos traços saídos de um dos cadernos

 

          Teste/Tese Quiz

 

No terreno, o voo a conferencia o traslado só se dão para um confim/confluência (a multidão ausente)

 

Sou definida por um buraco de espaço e tempo. Nenhum cientista ou metafísico será capaz de me nomear.

 

   Omera assim se endereça a Horéstia, que adiciona notas de filosofia colhidas no ar dessa irrepetível década (sempre apontada para o cúmulo da crise do fim

 

      De Humanos e seus interlocutores psicomentais)

 

    EMANAÇÕES da Terra como Planeta Presente não sondado, mas intervindo nos intervalos do q se pensa e logo passa a acontecer – (A despeito da não-noticiação firmada por fontes saturadoras de reportagens e locutagens ao longo dos canais fechados, quando não, públicos até o mais precário populismo, sem se falar nos Tubos de Transmissão Web Adentro/Afora)

 

   Uma minúcia de dados, fraseados antecipatórios, fábulas projecionais agora em congresso neomnemônico a refazer o memorial perdido sobre o que se passará exatamente nessa hora 

 

ERA BEM TARDE DA NOITE, quando H fez o relato do curso filosófico para sua amiga. Ambas, dividiram o resto de torrada que havia na lata em casa de O. A manteiga Toni deixou de comprar. Ele agora está na companhia de um de seus amantes, um garoto pálido que costuma deixar uma flor no centro da mesa, em sua chegada. As amigas roem o pão compacto tocadas pela sombra violeta-grená (vaso em giro) deixada pelo punhado florido vindo das mãos do garoto que entoa, nesse instante, uma balada pegajosa aprendida no asilo para jovens onde sempre viveu, curando-se da orfandade sociologicamente dramática de nossa Pátria e de um estado-de-nervos capaz de transformá-lo num violador de casas trancafiadas.

 

Serena era a Tarde In Loco

Eu jamais me toco em querer saber quem

 

Sou e vá lá dizer

Porque tudo é por assim dizer

 

Não à toa, a voz vem, ressoa

O que bem quer – pátina de musgo nas marquises

Andorinhas senis jamais mortas

 

Sempre haverá um portal na mínima residência

Na menor das existências para receber a plenos

Pulmões o cantarolar por qualquer motivo, melodia

Repetitiva, obcecada tão simplesmente pelo som no ar

 

Ao sopro de alguém jamais suposto

 

Esse aqui presente em uma toada

Ao longo da vida, por mais que o cantor

Tenha já partido, entre um refrão

E um respiro

 

 

As duas escrevem ao mesmo tempo na tentativa de capturar pedaços da letra que Jasper entoa. Curiosamente, a transcrição um tanto fragmentada da canção emitida dentro do quarto de Toni, compreendida como clara exaltação do quanto se entendem os dois em moradias tão pequenas, representou o fecho de um Ciclo de Cadernos.

Omera foi até o armário protegido com cadeado e lá armazenou numa pilha de 20 blocos-de-desenho e caligrafia aquela temporada com o amante-cantor de Toni ao redor delas. Como sempre acontecia, na assinatura final de cada ciclo/caderno, a moradora da Ala 19-D tenta imprimir uma gravura, legenda atrativa, final, em seu supercromatismo, sobre o recém-anotado (rabisco psicotécnico mesclado com proliferação de arabescos).

Aquele material ia aos poucos sendo encaminhado para um Núcleo de Investigação sediado em Faculdade de Humanidades  nada longe dali. A cada semestre, recebiam uma quantia como autoras anônimas, contribuintes para o incremento de diferentes Ciências não apenas Humanas. Uma vez que a compactação de experiências postas, desde o fim-da-infância, pela ponta-do-lápis suscitava a demanda da sondagem acerca do que faz a escrita mais direta, minuciosamente cotidiana. Um pool perquiritivo em torno do que são os viventes, as mais disparatadas frações de História, os circuitos contidos num casulo habitacional, tudo o que pode gerar o consórcio entre as Disciplinas e a formação de educadores de toda Natureza.

Paralelamente ao fornecimento dos cadernos, Omera e Horéstia copiam sua biblioteca formada por anotações as mais impulsivas, entre as quais se pontuam momentos reflexivos dignos de um pós-drama em infinitas páginas romanescas. Guardam na estante, que toma toda a área-de-serviço no ap de Horéstia, um avolumar de xeroxs onde se leem de modo claramente reproduzido os textos direcionados ao crivo do Núcleo Universus.

Com o custeio de todo um arquivo produzido há anos, as amigas nunca antes vistas naquela região de forma tão devotada, inseparável, passam a observar em bibliotecas [1] o resultado dos estudos feitos sobre suas notas. Elas inspecionam, de um modo indireto, embora intenso, a vida dos que controlam o significado-súmula da Ciência, do Cotidiano, do Sentido escoante em existências como as delas. Resulta daí um livro secreto em que se revelarão as verdadeiras autoras de tudo que se processa nos vãos daqueles escoadouros de gentes.

Os cientistas, sendo o foco da investigação, tomarão o posto de observados. A contar dos registros compilados delas mesmas em seguida convertidos em matéria bibliográfica diversa espalhada pelas Universidades de um Só País.

Certamente, Toni está ciente de que cuidará daquele patrimônio quando a vida de uma delas se interromper.

A ele ficou reservada a função de proponente-editor do acervo dia após dia reunido nas estantes das casas contíguas (há mapeamentos muito nítidos sobre a ordenação documental, mais passo-a-passo, tutorial de início-fim-continuidade das trilhas ainda em segredo entre molhos de chaves e o rumor rotineiro delas duas levadas pelo esquecimento do que virá a partir do que não cessam de fazer nota sobre nota). Como se tratasse de coisa íntima, miúda, jamais penetrada, nem conhecida, sobre qualquer pessoa corrente na torrente de tantas outras (coisas, pessoas) formou-se uma padronagem das mulheres ladeadas por azulejos da cozinha, ao fundo dos dias.

                             NOTA – O mais secreto nada quer dizer de cifra metafísica ou ultracientífica. Muito ao contrário, o que está por vir, libertado de campânulas e camuflagens interceptadoras dos vínculos de suas vidas com uma insondável multidão de criaturas ainda desprovidas da atenção para registros instantâneos [2].

 

Não à toa, o rapaz goza da maior liberdade e independência para não assumir trabalho por ora (fase única de seu trajeto vital), pois será dele o encargo de revelar tudo – bem depois desse preciso momento –

O que naquele pedaço de pedra, vidro, taco, foi vivido e se encontra escrito. Até porque a história dele terá de ser decifrada pelo mais estranho, esquivo, ao rolar daqueles dias em volta de uma nesga de Terra, no centro do seu lar.

De um ou outro modo, arquivando, lendo, editando, ele também passará a anotar. Oh!

Virgens Viagens da Hora (a hora e o lugar são os mesmos, com pequeninos pontos de passagem nunca mais despercebidos).

Está Encarregado. Aos poucos, vai sabendo que se encontra paralisado, depois de outro gozo com Jasper, numa sideração de rosto contra rosto,  ao embalo da guitarra, com o propósito gradativo de empreender busca acerca do que começa a escoar. No êxtase da “vida boa” incentivada por Omera/Horéstia,

Entra na gradação da descoberta do senso ritmado das coisas que passam e se anotam à sua revelia.

 

Severa era a Tarde por muito pouco

Pelo muito pouco acontecido, no lugar chamado

LOGO

 

Eu jamais enlouqueço por não saber quem

Sou e vá lá: uma canção precisa se repetir

 

Precisa se repetir para dizer

De novo

O que está aí à toa

Assim indômito, tornado presa de um automático

Assovio 

 

Prontamente parece impossível dizer, então,

Ser removido o que impõe ponto fixo – Plástico verde-musgo

 

 

Gosma-janela em vez

Das presenças cantantes pássaros vindouros

 

 (T acaba por notar, no intervalo de uma a outra volta da cantiga, o silêncio na casa há muitas horas. A predominância da música sobre o ruído corriqueiro do ambiente se confirma, principalmente quando por segundos a voz de Jasper dá espaço ao exclusivo dedilhar das cordas. Não sabe calcular desde quando estão sozinhos, ele e o guitarrista, a pequena morada e o interminável som)

 

 

Ao sopro de alguém jamais suposto

 

Esse aqui presente em uma toada

 

Ao longo da vida, por mais que o cantor

Tenha já partido, entre um refrão

E um respiro

[1] Chegam a fazer viagens em várias regiões de País de modo a conferir como seus relatos geram Conhecimento recopiado (tantas vezes sem menção ao Núcleo detentor de seus direitos como Redatoras-Depoentes), por mais anotados que sejam no calor das horas (talvez, por isso mesmo).

 

[2] Tudo aquilo que se move em detrimento de metas altaneiras, dispostas por legados legíveis, documentáveis por toda espécie de arquivo e aliança assinados ao modo de aval, fiança. Em indisposição ao serviço de uma nítida Primeira Pessoa por detrás (fatalmente refratária à substituição de um novo Eu a ocupar a instância de leitura e estocagem de patrimônios ambulantes, carregados nas costas de um sem-número invisível de funcionários-exegetas)

Publicado em: 08 dez. 2023.