CASA.CORPO.CIDADE. / PARTE 1 

(Amélia Loureiro)

AMÉLIA LOUREIRO

 Escritora e esquizoanalista, tem interesse na experimentação, no contato estreito e contínuo com repertórios ampliados da ecosofia. Atua para se inscrever no campo de linhas ativas, concentradas na perspectiva da invenção e pesquisa dos processos de singularização incididos em linguagens, nos mais diferentes atos da fala, da palavra. AL tem trabalhos em teatro, performance, música, rádio, vídeo, podcast. Na literatura: narrativas contemporâneas e poesia. É autora de Meninínima (2016), O Nado (2018),  Print Pele (2022), todos pela Ed. Córrego (São Paulo). 

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Eu estou aqui [1] aliada a uma flama que se arvora.

 

Aqui, como D.H.Lawrence, que se nutre do seu pensamento, produz ciência e arte e os entrelaça às próprias custas e risco.

 

Como Félix Guattari, que formado em filososfia, funda uma ação clínica a partir do seu modo de estar no mundo.

 

Eu aqui, do jeito que sempre julguei necessário: uma presença no mínimo estranha, no máximo selvagem, se vista sem suspensão de pressupostos normatizadores.

 

Uma alegria estar neste momento com Laymert Garcia dos Santos, que me proporcionou recursos para viver esses últimos 30 anos como um tempo de ensaio, "auxílio luxuoso"[2] para sustentar a vida em estado beta.

 

Então quero partir daqui, "de uma nova maneira de pensar a casa" (Laymert G. dos Santos, 1989:123).

 

Agora, a casa em si, se transforma em um grupo societal novíssimo pelas qualidades de composição que aporta, lança, fabrica. Configurações polifônicas inaugurais entre o que é humano, não humano, maquinal e natureza acontecem dentro da casa – no imaginário, no corpo, no cotidiano.

 

A casa hoje pode ser um espaço aberto gravitando em torno de estilos de viver com força para alargar o pensarsentir. Multiuso, ela se torna um campo compactado de experimentações que recepcionam e visam migrar e expandir para a malha urbana, a casacidade: uma nova cultura.  Dentro da casa pode-se incursionar pela arte no seu sentido mais amplo, laborar uma arte de viver[3] – para além do produto, dos repertórios consagrados, portfólios e mercado – com vistas às obras pulsantes dos encontros, aos gradientes da potência em atuação ampliada na era presente, a contemporaneidade. Estúdio para integrar prática cotidiana e artesania conceitual: modos de vida afirmativos. 

 

O arquiteto Paulo Mendes da Rocha em entrevista disse que, se numa megalópole como São Paulo não há mais terrenos para a construção de casas, então a casa passa a ser a cidade.

 

A CASA É A CIDADE: é de onde eu continuo.

 

A casa pode ser vista como uma célula vibrante de criação em processos inacabados, dinâmicos; um espaço propiciador de experimentações multiorientadas em caráter permanente. No campo específico da arte, esta mesma hipervetorialidade ou a ausência de direção, foi reconhecida por Arthur C. Danto no seu livro Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História:  “(...) a arte reconheceu que não havia uma aparência especial que devesse ser assumida como própria da obra de arte. (...) Não há mais uma direção única. Na verdade, não há mais direção.” (Danto, 2006:139)

                                                                                                 

Para Nicolas Bourriaud, em Estética Relacional, a exposição, “o ato de mostrar basta para definir o artista, quer seja uma representação ou uma designação”. (Bourriaud, 2009:147). Esta oportunidade de apresentação e de exposição foi revolucionada com o maior desenvolvimento das tecnologias digitais, dos dispositivos eletrônicos, e aquelas de uso, – como o design, mais voltadas para a vida cotidiana, e uma consequente expansão de acesso a elas. As atividades artísticas, – de pesquisa, experimentação e produção inovadoras –, podem acontecer dentro e a partir da casa fazendo dela um território capacitado para micropolitizar constantemente. Ou seja, mostrando duração no tempo, aponta assim para a obra de arte como processo aberto em universos amplos de linguagens. Esse campo fabril pode orientar as relações e as práticas diárias com qualidades diversas daquelas do âmbito do ordinário/utilitário/reprodutivo.

 

Com a aproximação extrema das tecnologias maquinais às vivências cotidianas parece haver uma demanda crescente de intervenções intensivas em todos os espaços. Blogs e canais de transmissão autônomos no Youtube podem alargar o dia-a-dia como ensaio, laboratório e sondagens,  proliferação do diy (do it yourself) e tutoriais do patrimônio universal em um amplo caudal.


No Telegram, grupos efêmeros em operações experimentais/intencionais geram suporte mútuo através de escuta estrita, de investigações em práticas de modos de vida não-violentos, de prefigurar valores vitais em novas composições. Para estar aqui hoje eu fiz um chamado neste aplicativo em busca de apoio para algumas pessoas: durante um mês enviei áudios diários de até 15 minutos para quem se voluntariou – sete mulheres aderiram – para ouvir e me responder neste mesmo formato. O recorte do assunto foi: como me sentia afetada durante as ações de pesquisar, produzir e apresentar este ensaio para o meio acadêmico. Naquele momento a hipótese era: o gradiente máximo do texto poderia ser tocado ao trazer clareza para as necessidades envolvidas na ação específica da escrita. Instalar temporariamente um ouvido amplificado na praça, cadinho de mundo.

 

O Soundcloud aporta o Máquina de Inscrever, uma peça radiofônica de 60 minutos, mensal, que captura vozes em seus diversos clãs e dialetos: literatura, música, ciências humanas, takes escusos do Whatzapp, rádio e  cinema: tudo em colagens sonoras surpreendentes, aqui mesmo em São Paulo, pertinho de você. Esta mesma plataforma contém as exposições em áudio do "Fórum Comunitário Parque Augusta", de 2017, quando reuniu ativistas, indígenas, urbanistas, pesquisadores, artistas e outros agentes envolvidos em ações ecológicas autônomas na cidade e no país, como a Horta das Corujas; Praça da Nascente; Rios e Ruas; os povos Guarani Mbya e Guarani Ñandeva da Terra Indígena Jaraguá; Ocupe Estelita, do Recife; Parques; Cracolândia, e outros territórios existenciais em fluxo...Um arquivo expositor de laboratórios para inovação em modos de viver e produzir repertórios ampliados da ecologia: ECOSOFIA.


Dentro do Instagram, micro-projetos-contínuos, como o print-tv e o 0likes ("zero likes"), que na arte da antropofagia criam sua agenda crítica dos prints, convocam o caos de certezas, o freio de likes como ação ativa, anunciam conceitos a serem postos à prova no feed, caminham na noite, ouvem, olham, vivem a cultura novinha: escura virulenta celebratória. No Insta, – um apelido para Instagram, dito por nós, os brasileiros que insuflamos emoção em tudo que habitamos e devoramos, principalmente aplicativos, – outros desenhos existenciais anônimos, como o de uma ativista-jornalista: um álbum de bebê, um diário que teve início com o nascimento de sua filha. De todo o interesse é acompanhar o seu uso das ferramentas do app nos vídeos onde a mamãe e a neném são as personagens das histórias inventadas: campo de força para os vínculos entre mãe e filha, entre elas e nós, entre a gente com a gente mesmo. Sob as lentes de uma mulher, jovem mãe, acompanhar diariamente a criança em sua inicial imersão no mundo, seus movimentos dentro das roupas: um aparato carregado de sentidos comuns, presentes dados por amigues, expressões de grafismo/grafite/rua, legendas culturais. Perceber como olhamos para a pequena criança ao ser afetada por esses signos que a gente lê. Baixar a guarda pelo frescor dos seus movimentos dentro delas, de novo, nessas roupas todas naturalmente novas, como a criança mesmo é, e sua mãe também. A gente pode então se avaliar: há um botão do inédito esquecido em nós? A transformação sem palavras de uma mulher em mãe: um acontecimento grandioso se dá no dia a dia. Antes invisibilizado, agora vê elevada a voltagem da sua potência através das imagens feitas por quem as vive em movimento, em uma flexão contínua da experiência. O aprendizado monstro ao ver como a criança se nutre – com sentidos mil vezes desdobrados – quando mama ao peito da mãe, enquanto dou graças por ver esses circuitos de autonomia vital acontecerem no mundo e serem eles fonte de reexistência amorosa.


O futuro bate com força à porta, Guattari, quando vejo a bebê olhar diretamente para a câmera do celular da mãe, e o que você anunciou, grita "uma transformação profunda nos modos de expressão, de conhecimento, de negociação e de sensibilidade". (Guattari, 1993: 21)

 

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As redes fornecem “instalações de objetos cotidianos, banais, íntimos – ou seja, escolhidos nas cercanias do corpo do autor –, ações triviais, repetitivas, frequentemente domésticas, reconstituição de apartamentos ou de hotéis...” (Cauquelin, 2008:58.)


Diversas expressões encontram ressonância nas suas maneiras próprias de apresentação, legitimação e forma de recepção. Elas têm uma característica quase universal de serem exposições diárias, se ocupando basicamente do corpo, e dos contextos característicos da cultura atual. À guisa do pensamento de Anne Cauquelin, as subjetivações dos processos em microescala referentes às dimensões de invisibilidade/indizibilidade constantes da criação, possibilitam maior efetuação nas disposições macro.


No processo de exposição maximizada da cotidianeidade, que tem 60% da população mundial presente nas plataformas online, – e se continuarmos a qualificar o âmbito do dia a dia como o de um estúdio de criação , saltam relevantes as diversas esferas de cognição, de linguagem, de virtualidades conceituais compreensíveis num amplo espectro de relações. Toda essa configuração propicia compreender/viver os processos de inovação autônomos das normas estéticas: arte sem Arte. Ato desvinculado da ideia de objeto. Não é necessário ser artista para ser criador. Não é o produto/objeto que está em foco, mas aquelas ações e ambiências geradoras de invenção em modos de viver: “um universo que podemos chamar ‘sem objeto’, o espaço dos fluxos e dos canais de transmissão de informação: o mundo das redes”, no dizer de Cauquelin (Ibid.119).

 

Passados quinze anos desde a edição no Brasil da obra citada, é de se notar o esgarçamento recrudescente dessas technozones que sofreram uma verdadeira gentrificação provocada pelo arranjo de políticas ultraconservadoras das big techs e corporações transnacionais. Esta referida apropriação tentacular, abusiva e hiperveloz das ambiências virtuais em rede impacta de forma decidida a noção e as formas de atuação do Estado.

 

O estilo da invenção, – esse de fabricar "as virtualidades infinitas das línguas menores e das expressões parciais" (Guattari,1992:41) –, vira vetor significante pelo algoritmo que estratifica, organiza, divulga o uso das redes. Ao fazer tantas vezes da análise simples opinião, pontuação limitadamente facciosa ou setorizada.  Ao oferecer rotas automatizadas, o design dos velhos catálogos com o fim único de monetizar. Monetiza ao expropriar a atenção, este investimento maior do humano agora reduzido ao grau de usuário. O conglomerado branding strategy, que inclui o Estado sem função social, quer ocupar a cobertura do campo cultural, e traz consigo toda a artrose do mundo com sua ganância infeccionada de imobilizar a vida.

 

Mesmo com a elevação exponencial do hostil às dinâmicas das forças afirmativas está sempre posta a potência de variação e criação do campo virtual em redes, que opera como polifonia pulsional, tal qual um corpo vivo. A casa, a vizinhança, a cidade, em tudo e todes pulsam as intensidades de sermos formadorxs de subjetividades, fazendo parecer que ao fim de toda a crença em ideologias de toda espécie, é na inventividade de tempo integral que a política passa a ser exercida. Pois não há nada mais transformador que cada corpo retomar para si a posse do seu existir.

 

Porém, não há nada mais estranhado que ser simples e complexo, singular e múltiplo...Como olhar para a casa e sintonizá-la com os meus desejos e pensamentos mais persistentes? Como habitar a casa, o corpo e assim, a cidade, essas plataformas apropriadas para atividades de alavancar, fortalecer, dar suporte aos processos de  “resingularização individual e/ou coletiva”, nas palavras de Félix Guattari, em As Três Ecologias (1990:15)?  Nesta obra, FG descreve o cenário em que vivemos: "(...) os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração." E aponta: "Tal problemática, no fim das contas, é a da produção de existência humana em novos contextos históricos." (Ibid.15).

 

Para atuar nessas demandas que exigem de nós existencialidade como ponto de partida irredutível, as noções referentes à invenção de estilos de conviver e aos visionarismos encarnados interessam mais que tudo agora. Assim também a geração de outras economias, maneiras propositivas de habitar a cidade, e a vivência de visões culturais profundas. A disponibilidade para compor com o que potencializa, nunca revelado de todo no que envolve o contemporâneo (em sintonia com a visão de Agambem), a inundação do que ultrapassa o corpo/pensamento e está contido nele. Imprescindível para conviver em risco com a experimentação, com o fragmentário e transitório de um permanente projeto em aberto, este do cotidiano. Por tudo, interessam especialmente as questões que – mesmo monetizadas e normatizadas pelos profissionais sem corpo –, continuam a carregar altas voltagens em ato, como aquelas sinalizadas por Foucault acerca do “cuidado de si como obra". Próximo demais, Hélio Oiticica, em 1974, explode ainda agora: “...posições radicais não significam posições estéticas, mas posições globais vida-mundo-linguagem-comportamento.” (Oiticica, 1986: 78)

 

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Na parte 2 sigo na cidade/casa com o corpo:  A CIDADE É O CORPO.

 

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SP. 2019 - 2023

 

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NOTAS

[1] Originalmente a primeira versão deste texto CASA.CORPO.CIDADE. foi apresentado como uma comunicação no Colóquio "Transdisciplinaridade Viva: experimentações políticas e culturais no contexto da mundialidade”, em “Diálogos sobre Escrita Narrativa –Sexualidade/Mundialidade/Travessias conceituais" (FFLCH, Universidade de São Paulo). 2019

[2] Cito "Juventude Transviada", canção de Luiz Melodia, percussiva até hoje.

[3]  Tal como conceitua Foucault em diferentes livros, concentradamente em História da sexualidade. 3: o cuidado de si. 



Bibliografia

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. Denise Bottmann  . São Paulo: Martins, 2009.

___________________. Pós-Produção – Como A Arte Reprograma O Mundo Contemporâneo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

CAUQUELIN, Anne. Frequentar Os Incorporais – Contribuição A Uma Teoria Da Arte Contemporânea. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.

DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus/EDUSP, 2006.

FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Trad. Manuel Barros da Motta e Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999

_________________. História da Sexualidade III: O Cuidado De Si.  Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Graal, 1985.

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1981.

______________. Inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizoanálise. Trad. Constança Marcondes César. São Paulo: Papiros, 1988.

______________. As Três Ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. São Paulo: Papirus, 1991.

______________. Caosmose Um Novo Paradigma Estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: 34, 1992

______________. Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade. Trad  Rio de Janeiro: Revista Tempo Brasileiro, v. 108, 1993.

 _____________. ¿Qué es la ecosofía?: textos presentados y agenciados por Stéphane Nadaud. Buenos Aires: Cactus, 2015.

OITICICA, Helio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 

PUBLICADO EM 29/10/2023