CRUZAMENTOS/COLHEITAS — Homenagem a Brígida Baltar

(Alguns escritos)/Um entrecho narrativo de Amélia Loureiro

Falecida em outubro de 2022, Brígida Baltar realizou impactantes produções no campo das artes visuais: instalações, esculturas, pinturas, intervenções, vídeos e até mesmo o long-playing (um vinil, precisamente) Neblina, maresia, orvalho: coletas, de 2001. Interessante, também, notar em seus projetos o dado do narrativo, que pontua inumeráveis realizações do mundo gráfico-plástico na contemporaneidade.

Em conjunção com suas agudas conceituações sobre uma série significativa de trabalhos, dotadas sempre de uma consistente proposição crítico/criativa, Brígida Baltar é aqui homenageada, num paralelo com as ficções de Amélia Loureiro. Em especial, O nado, conto integrante do livro homônimo publicado em 2018, deixa à mostra um diálogo sensível, mobilizante, com o universo de Brígida Baltar.

Não ao acaso, o traço de narratividade presente na artista carioca se destaca aqui na transcrição de dois de seus textos concebidos na construção de suas obras tanto visuais quanto videográficas.

- MSV.


BRÍGIDA BALTAR

Depois de tirar alguns tijolos da parede maior do corredor, comecei a sentir um certo interesse pelos espaços vazios que restaram. Eles me sugeriram uma espécie de escada, onde cruzando minhas mãos e meus pés, eu podia experimentar um outro lugar, mais alto. Uma decolagem? Um pouso talvez. Eu pensava nas mariposas e nas lagartixas. E estava cada vez mais perto da luz que atravessava a telha de vidro do telhado. Enquanto subia, meus olhos estavam colados na parede e eu via tão de perto, que já não eram só tijolos, mas relevos, grutas, crateras, paisagens irreconhecíveis e estranhamente áridas. Quando desci, reparei os resíduos no chão – pareciam pedras, as paisagens vermelhas (...)

///

No vídeo Quando fui carpa e quase virei dragão, misturei duas narrativas: a que eu ia construindo lá, sentada na beira de um lago, observando o desenho das carpas, indo e vindo entre meus pés. A outra, é mesmo um mito do Oriente, onde o peixe-carpa nada contra a correnteza e por isso se torna símbolo de fortaleza, sorte e perseverança.

É tudo mesmo fábula, ficção. E começou, porque naquela tarde, eu usava meias bordadas e juntamente com a sandália, meu pé parecia se confundir com a própria forma e tonalidade dos peixes.

O que eu mais gosto neste vídeo, é que eu simplesmente não faço nada. A imagem é minha contemplação continuadamente. É o texto que produz a ação.


Alguns Vídeos. Brígida Baltar. Catálogo de Exposição.

Museu Victor Meirelles. Santa Catarina, 2010. ps. 33 e 40.


Na sequência, lemos um fragmento de “Sil”, título de abertura da narrativa O nado, da escritora mineira Amélia Loureiro.


AMÉLIA LOUREIRO

Pronto. Agora aqui com a máquina lavando louça. Três da manhã. Não ouço um pio de gente. Todos se foram deixando um ruído dentro da cabeça. Se procuro no coração uma memória, encontro vultos desejantes. Se procuro ternura, ela vem enganchada a garatujas planificadas. A celebração de hoje em nossa casa me cansou mais que outras. Sim, sempre cedo ao experimento de testar a hipótese da dança dos afetos. Amigo é quem se junta para falar do interesse comum. Tem sido assim. Joanes e eu somos inatingíveis ao toque. Amigos não intentam o contato com o que cada um de nós dois somos. Eu não suporto mais "o deserto emocional das pessoas de bem." Eu, inclusa. Onde não há, ao menos, repertório para nomear este lugar.

4 horas da manhã. Um carro atravessa o vermelho. Inútil sinalização, o verde, amarelo e vermelho, quando não há tráfego. Não há ninguém que pare ou prossiga. – Somente eu agora (e talvez mais alguém) a dar atenção aos sinais a despeito da cor.

O sinal luminoso abre dessincrônico à caminhada de Sil.

A garoa, em voo perpendicular, alcança a banca de jornal; produz pontos de brilho moventes no galvanizado. – "Umidades." Brigida Baltar. Uma artista organiza a sobrevivência construindo coisas através de ações intimistas e solitárias; habitando e expondo o existencial como laboratório. NEBLINA ORVALHO E MARESIA. COLETAS.* Minha mãe ainda tem o seu disco de vinil, inesquecível, dado por um amigo de ambas: ano 2000, Rio de Janeiro.

Leva à boca a garrafa d'água, insuflada pela pausa hipnótica das gotículas vivazes em dança suicida sobre a superfície cintilante do aço. – A casa é onde a transformação profunda pode acontecer.


* Entrevista com Brigida Baltar, "Acredito que um artista está vitalmente comprometido com seu trabalho, por isso vive em estado de arte", Arte & Ensaios, UFRJ, #33, 2017

Fragmento de “Sil”, primeiro texto de O Nado, narrativa que dá nome ao livro de 2018 editado pela Córrego na Coleção Vírus.