SINGLE

(NOTAS INSTANTÂNEAS)


Mauricio Salles Vasconcelos


O lançamento de “Serguei”, faixa do disco Seja lá o que isso Seja, de Mevoi/Projeto do artista Ciro Lubliner, guia-me para a reescuta dessa mesma faixa, numa espécie de espiral (tal como aquela traçada por sulcos de um onipresente, invisível vinil). Tudo o que me conduz a outras passadas composições, diferentes, reinvocadas involuntariamente, pois esse é o sentido do single, solitário, singelo, singularizado. Sonoridades engatadas no instante-de-irrompimento vindo com o surgimento de uma canção só, única, em dado corte do tempo/recorte de vida.

Sempre na iminência da impactante música, com a promessa de felicidade em reouvi-la.

Abre-se, assim, no interior do single o que ocorre sempre quando se grava um disco a ser gravitado numa melodia deflagradora. À frente, apenas essa (a de abertura em torrente, como se fossem todas assim assinaladas por um sinal inicial).

Escavação de um tempo instantâneo –

À mercê de um inigualável som – para experiências a partir de uma canção-só e do que há-de-vir em outras já acessadas numa vibratura muito próxima, regressadas em cadeia, cadência vertiginosa de timbres. Esses que atuam com força incomparável nos afetos – condutores do que se chama amor ou memória com muitos senão consigo mesmo num aconchego criado a contar do que aquela música, em separado, diz apenas para um.

À extensão de um single –

Um giro sônico caudaloso quanto mais se resume e se repete na singular canção recém-tocada, ouvida, memorizada. Entre o mecânico da produção sonora, tímbrica/rítmica, e o mais revolto toque pulsional.

Tantas emissões pulsam numa só faixa. Sob impacto de um imediato hit, um hino no ar, desalinhado de um local (isso, “íntimo”, é meu pertence), endereçamento ou abrigo.

Promessa de retorno àquela emoção logo engrenada em conexão de mente, poiesis vocalizada, batida num andamento nunca antes pressentido, no entanto confluente com o mais intimizado/intimado. Anúncio futuro do mesmo clamor de outros tantos singles: é o que nos faz ali, por aí imobilizados.

Por força do que acabou de passar/riscar no plano aéreo então corporalizado pelo ouvinte, preparado para a sequência da audição de novo inédita do que vai se repetir. Para deixar empolgantemente de ser igual a antes. Pois varia enquanto regressa. Um anunciar infindo do próximo inimitável cruzamento por incidências, sonoridades, eletrizações da escuta quanto mais refaz pontos reiterados, aguardados precisamente pelo que surpreende.

Assim foi para mim – numa incursão de biofonia – a audição repentina dos primeiros Beatles e a percussão nacional em “Quero que vá tudo pro inferno” acoplado a “Pare o casamento”, com Wanderlea, numa batida de sons confundidos com o próprio rolar da história transmutada – em poucos anos por efeito do que se canta – em “Superbacana”. Quando não, o soul inusual dos Mutantes: “Bem Vinda”. Logo logo desponta no horizonte “Ouro de Tolo”, com sua letra quilométrica, ao modo de Dylan (quando ainda se ouvia rádio e nessa mídia se lançavam como a nova vida para ouvidos e respectivos corpos os singles a cada instante).

Depois da onda jovem dos 60’s – eu agora nos meus 60s –, voltariam a eletrizar: “Fullgás” (elogio da produção musical, desde a matriz Thriller, e da liberação dos sexos no tamanho do Continental BR, “a gente faz um País” à beira da Abertura Política, ao fim da Ditadura); “Birthday”, com os uivos mitopoéticos islandeses de Björk ainda com os Sugarcubes – e tantas outras vocalizações dos anos 1980 vindas, p. ex., do Ira! – com seus verdadeiros hinos “Pobre paulista” e “Gritos na multidão” – Há coisa de 10 anos quase veio um tremor dessa ordem, dessa onda, com “Não existe amor em SP”. Contudo, vem sendo difícil nos anos de streamings – canais exclusivos de websounds – plataformas de lançamento (restritas a acessos localizados, diferentemente do que radia uma rádio) – um flagrante da música que acaba de ser feita sobre os sentidos de muitos, sobre o sentido mesmo de haver muitos, da vida mesmo. Principalmente, no Brasil despolitizado e anti-estético dos últimos 3 anos, consensual com a monstruosidade do Não-Governo Falcatrua e a eleição do Pseudo Sertanejo do AgroNegócio como Som Oficial do País (projeto econômico dos bilionários ruralistas no comando da produção musical e do que existe ainda de radiofonia e indústria fonográfica).

Com tudo em cima, porém, passo pelos anos movidos a repentinos cantarolados: há muito tempo, não ouço algo como “Serguei”. E isso reengrena o senso da vida ainda a fluir (convergente com o haver música).

Sim, sob força de seu poder de instantaneidade e flagrante do que estamos sendo e já começamos a perceber como nossa própria trilha, ao andamento único desse som, exatamente esse último. A se seguir: Single para Ser.

MeVoi (Ciro Lubliner) teve a sintonia de impactar com tal composto – proposta – construto da canção única, na inauguração de um projeto musical solo (depois de sua participação no grupo Ladies and Gentlemen). Um labirinto é aberto pelo refrão em ressonância – Ser como Serguei – antecedido por repetições de Não (complementadas por “não ter mais que explicar”, “não mais julgar”, entre outras, nas legendas do clip que foi realizado para a canção). Ganha uma especial potenciação o tonus afirmativo contido no nome do pioneiro cantor de rock nacional (Ser Gay) Serguei (Sergio Augusto Bustamante) – uma espécie de anti-ídolo, por ser avançado demais para os padrões de artista pop no início dos anos 1960 no Brasil, repudiado por engrenar a via psicô-délica bem antes de sua plena difusão no mundo, desde seu layout extravagante (mais olhos esbugalhados), exacerbadamente acentuado por uma postura andrógina.

Tem tudo para ser um hit essa produção independente do single de Mevoi porque opera um jogo inseminante e marca posição nesse diálogo com a inteireza que Serguei e Ser Gay liberam hoje. Muito tempo depois da aberrância dos glitters e dos délicos, assim como após as conquistas de uma sexualidade vestida no passado com fantasias quando não barrada, insulada no território da anomalia. Retomar Serguei com sua dobradura verbal-nominal faz da canção uma peça de ludismo irrefutável, pronta para grudar como chiclete (timbres que não se retiram facilmente da cabeça e da ponta-da-língua). Algo capaz também de deslocar os clichês não só aqueles vindos de ordem repressora, mas no que toca aos lugares já assentados para pessoas

hoje livres na afirmação gay.

Porque Mevoi insufla o ser gay para todos. Ao mesmo tempo, reapresenta o até então “escalafobético”, o inaudível Serguei como modus vivendi inerente à gaia ciência da música e dos afetos (esse entrelaçamento sensorial-sensível que a musicalidade faz aguçar como poucas artes, como poucas coisas da vida).

.... Decupações/Da escuta


Tem de ser hit

Cantar para ser – Mesmo quando se é gay, necessário ser “Serguei”. Pois se trata de outra figura – logo, o maior “figura” do Rock Brasil –, lançada ao não-familiar, a um traço comportamental desalinhado da simples adoção de uma “orientação sexual” esquadrinhada, entre outros segmentos representados pela macrológica a vigorar sobre o minoritário (que é sempre uma minoração em processo, avessa ao acoplamento sistêmico).


Cada vez mais urgente repetir “Serguei” por bocas cada vez mais diferentes, impensavelmente propagadas.

Aqui, na concha (plugada, como nunca antes, ao auricular por força de headphones e escutas intimizadas pelos dispositivos de transmissão pública, não mais simultânea pela via radiofônica) da canção, tudo se faz estridente, reiterado:

Diretriz Disseminante e Comportamental para lá de uma afirmação viabilizada pela negação – Talvez venha a ser essa a melhor compreensão de um single pelo poder metamórfico, postural, sobre quem ouve ou simplesmente passa por escalas de som. De novo, Ser Gay.

Ser Novo Gay –

Espraiamento de forças conjuntas – a partir da nomeação dúplice do cantor estratosférico, desmedido, vindo de um tempo em que havia singles (produzidos e difundidos de forma diferente).

(O refrão anagramático, renova cada escuta, cada corpo, cada volta duma só canção)

Ser o que se ouve; logo se é pensado:

SER O QUE SE É e (é) seu Não em ritos de ritornelos (canção é manifesto, mesmo depois da era dos manifestos, como pensa Arthur G. Danto): O GAY INDECOMPONÍVEL DA GAIA CIÊNCIA – O FATOR GERADOR DE LIBERADA SUBJETIVAÇÃO COMO VETOR DA VIDA AGORA (CANTO, DANÇA, CELEBRAÇÃO), COM SUA HISTÓRIA E GENEALOGIAS DAS SEXUALIDADES EM CAMPO VASTO –

CROSSGENDERS para lá de um segmento (destacado à parte) – CRUZAMENTO DE TODOS OS SERES EM SUAS MULTIFIGURAÇÕES quando agora o transsexualismo refaz todas as outras categorias/orientações em paralelo (ninguém é transformer solitariamente quando soa no ar e se torna uma forma singularizada de melodia) Todos somos gaias reafirmações em forma-música desde que a vida (viada via) liberou a todos para recombinar o que se-quer (o que deixou de ser veia de mão única, mas ramas extensas, intensas, interligadas a incontáveis corpos num só contínuo convívio)

DÁDIVAS DAS ESPÉCIES EM SEUS TOQUES (trocadilhos) LINGUAIS feitos no beat do canto:

Ser gay mesmo qdo já se é, com o adendo cênico espraiador extra representativo de SERguei, uma arte uma propagação uma erótica

Ser gay mesmo quando não se é – Seja o que for – Como Serguei – Território sem lei –

(Tudo o que faz um Single sinal grupal, comportamental)

Mesmo quando ainda não se é:

CANTAR PARA SER


Mevoi/SERGUEI Link do Clip

https://youtu.be/4_5thyOzcYQ

Imagens da capa do disco e de Mevoi:

Caio Kenji e Fernando Perecin