Agarrar o monstro da época: 

Acerca do Vampirismo Pornográfico 

(Tiago Cfer)

Desenho de Cthulhu, a entidade cósmica central no conto seminal de Lovecraft, "The Call of Cthulhu", publicado pela primeira vez na revista pulp Weird Tales em 1928.

Toda a ficção de Franz Kafka já nos deu antever – desde o primeiro quarto do século passado – que a realidade se transformaria em um jogo de infinitas faces controlado pela irracionalidade de Estados-Capitais. Nossas existências passaram a ser regidas por forças e leis desnorteadoras, poderes obscuros feitos para nos manter desorientados. A devastação que as guerras permanentes – de todas as ordens – vêm promovendo na sensibilidade e na inteligência humanas tornou-se um desafio incalculável a qualquer pensamento normativo.

Nietzsche previu que algo pior do que o cristianismo estava a caminho. Sua má consciência se metamorfoseou no grande Outro Capital.

Um automatismo insone define os movimentos de multidões de trabalhadores. O império global financeiro não nos deixa outra saída que não a de usuários e adictos de serviços abusivos e expropriadores. Fomos assimilados.

Isso é assombroso e ao mesmo tempo atraente: o fato de não existir mais ninguém do outro lado, mas máquinas paradoxalmente humanizadas, códigos e informações automatizados que não respondem ao nosso desespero, e sim distraem-nos com inúmeras possibilidades de interação, funciona para nossas consciências despedaçadas feito um narcótico mais do que necessário.

Curiosamente, hoje luta-se não pelo descondicionamento das categorias identitárias, do comércio de especializações e fetiches, mas por identidades reconhecidas por um absoluto e inconsciente mercado burguês: “As figuras mais louvadas no Castelo do Vampiro são aquelas que descobriram um novo mercado de sofrimento – aquelas que podem encontrar um grupo mais oprimido e subjugado do que qualquer outro explorado anteriormente serão promovidas através dessas fileiras [do capital acadêmico] muito rapidamente”[1].

Vivemos no Castelo do Vampiro, tal como nos preveniu Mark Fisher? E esse castelo, como imensa e imponente morada dos desejos, não terá sido insuflado pela alta rentabilidade das fantasias pornográficas? Teriam os limites de nossas mirabilia se encerrado nos aspectos estritamente econômicos da pornografia?

Um vampiro se alimenta de nossa energia, ansiedade e vulnerabilidade. Seduz e nos captura em uma possessão visual, um querer-ver-cada-vez-mais-e-nos-mínimos-ângulos, o mesmo. Ao invés de darmos atenção aos problemas estruturais e impessoais que nos assolam, mergulhamos em um jogo narcísico de esmiuçar fluxos de imagens dispostos na web ao longo dos dias, como se nessa reiteração infinita fôssemos encontrar, em algum momento, o que tanto procurávamos, sobretudo quando não sabíamos do que se tratava.

O erotismo e a disposição para a invenção de novos elos relacionais perdem espaço, assim, para uma compulsão mecânica de esmiuçar a imagem; a liberdade criadora se deixa abater pela mania bisbilhoteira de quem encontra-se esgotado. Ao invés de se vitalizar, ele submerge em um processo infinito de dissecação de corpos, encenados e coreografados segundo uma estética orientada para o destrinchamento da realidade dada, em mecanismos voyeuristas meramente mentais que reduzem a realidade corpórea a fragmentos de imagens e movimentos padronizados, repetidos e printados em seus mínimos detalhes.

Nesse afã, não é a solidariedade, obviamente, que nos mantêm unidos, mas o medo e a disputa típicos da má consciência. Moralismo e culpa tornam-se o leitmotiv das revoltas. Em vez de constituirmos relações de camaradagem e apoio mútuo, de afetos e investimentos libidinais desobrigados, trabalhamos para o capital, competindo, condenando e abusando uns dos outros.

Vige nas tramas sociais um essencialismo identitário que nos desvitaliza com seu excesso de cenários e lugares discursivos homogeneizados. Ele se pulveriza em uma rivalidade estereotipada pelo enudecimento total da mecânica do controle que tem a consistência da fantasia.

A livre circulação e difusão da pornografia em nada nos libera. Está presa em exibir, explicitar corpos de prazer sem se desatrelar de um centramento essencialista de causas próprias, intransitivas ao contato e ao diálogo heterodoxos. Refém de estímulos blindados de prazer, o pornográfico nos deserotiza.

Tudo parece um jogo supostamente sem saída no qual os participantes consomem(-se) uns aos outros. Não haveria razões para imaginarmos que a finalidade desse jogo seria outra que não a aniquilação total da matéria. As lutas identitárias celularizam os divisores da metafísica ocidental – nós e outros, humanos e animais, ocidentais e não-ocidentais – que desde a antiguidade foram fundados pela lógica da identidade, desdobrando-os em universalismos binários simplificadores, redutores das complexidades da vida. Em seu máximo alcance, essas lutas interiorizam esses divisores ao extremo, configurando um narcisismo das diferenças apequenadas, apequenadoras dos vastos processos que envolvem as minorias e suas minorações combativas, taticamente potentes.

Contra a ideia de que o homem seria o animal universal, algo impostado pela tradição filosófica até Martin Heidegger, a antropologia, como nos mostra Eduardo Viveiros de Castro, volta-se para o “anti-narcisismo das variações infinitesimais”, o saber-fazer “proliferar as pequenas multiplicidades”. “Trata-se, de certa maneira, de tornar infinitamente complexa essa linha que separa o humano do não humano. Que bicho não é gente, até os bichos sabem, não é preciso ser bicho para saber disso. Mas que essa diferença é complexa, isto está sempre em jogo”[2].

Bem antes dessa ciência, a escrita literária vem sendo o espaço onde o humano escrutina essa complexidade, jamais deixando de se apresentar como um contraponto muito eficaz às representações dogmáticas do logos. Difere das políticas viris que ambicionam o acabamento dos homens, sua realização numa espécie de configuração total do mundo (Heidegger) – algo que culmina numa concepção de que os seres humanos são, entre os seres vivos, os mais ricos (e que se tornem cada vez mais milionários!) em mundo.

Rechaçada desde a antiguidade como discurso irracional, a literatura preserva em sua história tais “variações infinitesimais” da palavra, da perspectiva e do pensamento. Em vez de uma política judicatória que se esforça em conceder ao homem um suposto lugar de juiz universal, dissemina uma pluralidade de mundos humanos, não humanos, animados, inanimados, aproximando-se mais de uma cosmopolítica que de uma política centrada na busca angustiada de valores aparentemente diferenciais, e que, no entanto, são sedimentadores de uma lógica dualista, judicativa, excludente. Algo que se mostra bem tendente nos embates entre “minorias” do atual mercado editorial, capturadas por uma inegável “ditadura das identidades” que tomou posse dos mínimos espaços de fala e comunicação.

Escrever não tem nada a ver com a ambição de reconstituir o “ser do homem”. Bem pelo contrário, é um ato que nos torna estranhos a nós mesmos. Algo mais próximo das anomalias do mundo, de tudo o que há de fortuito, misterioso, fascinante na vida. Realidades sem centro, não totalizáveis, inapreensíveis pelas categorias metafísicas da inteligência.

Palavra destituída de totalidade e inapelável aos comandos do ser, a palavra literária abarca uma complexidade de universos que não corresponde às ordens de uma razão universal humana. Sua ação não se limita às apreensões do mundo por um sujeito cognoscente imobilizado em técnicas, métodos, fundamentos, pressupostos. Inversamente, dissipa esse sujeito do conhecimento, virando-o ao avesso.

Como bem demostraram Blanchot e Foucault, falar e escrever – enunciar – jamais têm a ver com a restituição de uma interioridade, com a apreensão de alguma visibilidade reconhecível. Essa experiência, justamente, se realiza como experiência exterior. Louca atração pelo erro que implica a transformação daquele que fala e escreve em um completo estranho a si mesmo.

Não há política universal quando alguém representa e delimita a ação do outro, mas arbitrariedade, despotismo, conformidade, adestramento voluntário. O ato de escrever não ocorre nem se destina à fundação de uma imagem apropriada de mundo. Muito pelo contrário, liga-se às alteridades e às monstruosidades que nele irrompem. Em Monstros, o filósofo português José Gil observa como a figuração dos monstros ao longo da história define as dimensões da humanidade de cada época.

“O que faz do monstro um “atractor” (da imaginação)? O facto de se situar numa fronteira indecisa entre a humanidade e a não-humanidade. Melhor: o nascimento monstruoso mostraria como potencialmente a humanidade do homem, configurada num corpo normal, contém o germe da sua inumanidade”[3].

Como não há acontecimento na vida que não comporte uma ambivalência irreparável, com o vampirismo não seria diferente. Certamente existem entre nós forças parasitárias e imobilizadoras, capazes de nos tornar o monstro de nós mesmos. Mas está aí, também, uma força viral da linguagem que nos apela não ao controle ou ao estabelecimento de uma nova ordem, mas à permanente modificação de nós mesmos pela linguagem. Trata-se de um pacto humano com o universo, de um querer se universalizar: Mutar. Tornar-se um cosmos mais estranho do que a experiência corrente pode apreender. O que corresponde também a uma obsessão vampiresca. Não imprimir no universo um aspecto humano para nele reconhecer o que já se sabe – no limite, isso constituiria sua provável erradicação –, mas o próprio movimento de desapropriação do sujeito que se multiplica em meios de linguagens universalmente articulados: mostrar-lhe a sua/a nossa monstruosidade. Esse é o compromisso da escrita com a adivinhação.

Mark Fisher observa em seu livro The Weird and the Eerie (2016) que as narrativas de Lovecraft não devem ser relacionadas ao terror, mas, antes, ao estranho, a uma fascinação pelo exterior que mais se aproxima do “gozo para além do princípio do prazer” de que trata a jouissance lacaniana: “As histórias de Lovecraft têm uma fixação obsessiva com a questão do exterior: um fora que irrompe através de encontros com entidades anômalas desde um passado distante, em estados alterados de consciência ou em raras reviravoltas na estrutura temporal (...) O que realmente é fundamental na maneira de Lovecraft capturar o estranho não é o terror, mas a fascinação”.

As metamorfoses do humano por meio da escrita evidenciam que a nossa política, ou melhor, a cosmopolítica só se torna efetiva quando feita e praticada por nós. Podemos copular de modo sistemático e mecânico com as coisas existentes, reiterando em todos os lugares a mesma imagem e gesto reprodutíveis à exaustão (“Há sempre problemas de identidade quando se esgota a capacidade de mutação e devir”[4]). Como também podemos transformar uma cultura ou época injetando em suas veias normativas novos códigos e relações. Anomalias, aberrações. A escrita e o sexo não se limitam à reprodução ou procriação, obviamente. Fornecem-nos fendas e saídas, possibilitam o devir. É o que exige Paul B. Preciado em Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas.

Os filmes de Jean Rollin, por exemplo, com suas vampiras gêmeas, duplos desdobrados em uma profusão de enfermeiras e vampiras femininas – atrizes advindas do cinema pornô – suscitam uma ecologia multifacetada do vampirismo. Desatrelados do enredo centrado no personagem do conde Drácula, figura masculina fundadora do gênero, flagram o vampirismo em suas extremidades, em sua disseminação fluída pelos corpos.

Não é o intelecto, mas o fluxo sanguíneo que determina a ação humana. O mercado está cheio de negociações e estratégias, mas sua matéria é inegavelmente feita de sangue – dinheiro.

É nesse sentido que a literatura se apresenta como um poderoso espaço para enfrentarmos a realidade em que a “violência banal” se converteu em “monstruosidade banal”. Digo, aquela feita por autores que ainda não se renderam às tentações institucionais, acadêmicas e mercadológicas da literatura. Suas obras nos abrem para a abstrusidade do universo. Não é à toa que os monstros surgem aí. Eles atraem a escrita literária para a natureza universal: “situando-se numa zona de indiscernibilidade entre o devir-outro e o caos, o monstro pode aparecer – à maneira dessas figuras culturais aberrantes que são a “mestiçagem”, a “dupla (ou tripla) cultura”, “a dupla identidade” – como um foco atractor de saúde e de vida, rodeado por regiões mórbidas ou mortíferas”[5].

 E foi justamente isso que procurei apreender em meu livro, Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico. Ao estudar autores como Samuel Beckett, Campos de Carvalho, Valêncio Xavier, Mauricio S. Vasconcelos, eu queria mesmo era agarrar o monstro dessa época.

 

[1] Mark Fisher, “Deixando o Castelo do Vampiro”, 2013.

[2] Eduardo Viveiros de Castro, “O anti-Narciso: lugar e função da Antropologia no mundo contemporâneo”, 2010.

[3] GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D´Água, 2006, p. 125.

[4] Id., p. 126.

[5] Ibid.