Curva

(Ana Paula Ferraz)

Fragmento da narrativa inédita Brilhante.Clítoris, de Ana Paula Ferraz.

Foto: Fernanda Salles

Num ensaio sobre Colette, Kathy Acker escreve que as mulheres estão sempre se tocando. Se tocando all the time. A frase não é dela, é da filósofa francesa Luce Irigaray (Ce sexe qui n’en est pas un). Deixa pra lá: as mulheres estão sempre se tocando all the time because os lábios vaginais se tocam, duplos. Questão anatômica.

Quando uma mulher sobe numa moto ela abre as pernas e permanece de pernas abertas toda a viagem. Toda a estrada. A mulher come a estrada. O asfalto é imediato. Assim como o vento. Assim como a barba.

A mulher na moto produz o vento. Quanto mais acelera, mais vento. Os eucaliptos replantados vão ficando cada vez mais para trás, passando de futuro para passado muito rapidamente. Está a três horas longe de casa. Cada vez mais longe de casa e mais ao centro. É um presente que não acaba.

Se para, acaba o vento. Não há vento em estado inerte, não nessa hora, nessa época do ano massas polares cobrem outros corpos, outros territórios. Ela para num mirante, curva da serra do Mar. Ali embaixo é Santos? Bebe água. Uma cobra atravessa. Escamosa e sinuosa até que estica. A cobra é estrada. Medo nenhum da cobra, mas sim do ônibus de turismo queimando os freios. Toneladas de lataria na descida.

Segue mais adiante. Para novamente, agora para abastecer a moto. O cheiro de gasolina. Desce da moto e os lábios estão novamente colados. É uma mulher sem pressa. Toma um café na loja de conveniência e, do balcão, pelo vidro, tenta ler o muro da borracharia que esconde uma bananeira. Números. Fotografias. Propaganda eleitoral de alguma campanha local.

Segue a estrada de pernas semi-abertas e muito vento. Urgência de espaço. Velocidade sobre distância. A moto inteira entre as pernas. O motor nas mãos, pelo guidão. Controle. É preciso muita estrada.

Uma estrada que a faça cansar. Não era essa a rota. Ela queria o caminho do deserto.