Dívida

(Abilio Godoy)

Abilio Godoy

Escritor, mestre em Teoria da Literatura pela USP, autor de Plano de Fuga (2013), de que faz parte este conto.


Não adianta. Nem sonhando eu consigo me livrar da culpa. Não adianta, repete um dos carecas enquanto o outro balança a cabeça desesperançada. Sobre a maca, em posição ginecológica, tento esquecer a vergonha enquanto eles me examinam. Vejo o vulto do meu pai sentado numa poltrona. A brasa do seu cigarro brilha na penumbra. O aço gelado dos instrumentos me causa desconforto. Está vendo isso?, pergunta um dos carecas, convidando o outro a inclinar-se mais e debruçando-se entre as minhas pernas. A emancipação está bloqueada. Todas as possibilidades de revolução estão bloqueadas. Sim, concorda o segundo, tirando do bolso do jaleco uma faca comprida e curva. Vamos ter que sacrificar. Meu pai se levanta. Só quando a luz amarela da lâmpada o alcança, enxergo seu velho avental imundo de sangue. A carne podre descolando-se do rosto. Dois buracos escuros no lugar dos olhos. Ele recebe a faca do careca e, com a outra mão, na qual só sobraram os ossos, palpa meu peito, à procura do coração. Suas falanges nuas são ainda mais frias que o metal que me dilacera o tórax.


Acordo sufocando e me agarro com força ao tapete. Meu nariz está entupido. Levanto-me e procuro o descongestionante no armário do banheiro. Duas gotas. Duas bombas atômicas que, quase de imediato, dilatam-me as narinas e me permitem respirar. Maravilha do progresso que faz mal ao coração. Dez gotas devem desentupir um encanamento. Ligo o chuveiro. De olhos fechados, abraçando os joelhos, deixo que a água me reconforte e fico pensando no que ainda devo. Preparo-me para mais uma noite de trabalho. O interfone toca. Meu cliente chegou. A cocaína encontra já desobstruído seu caminho para o cérebro. A euforia é quase instantânea. Maravilha do progresso que faz mal ao coração. Olho-me no espelho. Ajeito os cachos loiros com uma escova. Confiro a posição dos seios. O céu-da-boca e os dentes de cima amortecidos. É boa a farinha. Beijo a boca do meu reflexo e deixo no vidro a marca do batom.


Quando o bonitinho do centro acadêmico disse que no capitalismo somos todos prostitutas, tive vontade de ir embora. O estardalhaço da frase arrancou aplausos da pequena plateia. Todos temos um preço. A vida, a dignidade, a consciência, como qualquer mercadoria, estão cotadas na bolsa. Não consegui esconder o meu tédio. O bonitinho e eu sabemos conquistar as pessoas. Ele acha que é diferente. Eu acho que não. Depois da assembleia, nós nos trancamos numa cabine do banheiro. Do bonitinho eu não cobro. Não em dinheiro. No final, sempre pago em aborrecimento, quando, arrependido, ele se empareda em acessos de culpa.


A campainha toca. Engulo o comprimido com um copo d’água. Não conheço o cliente: melhor garantir a ereção. Abro a porta para um coroa engravatado. Terno italiano, relógio suíço, sapatos bem polidos. Ofereço uma bebida. Sua mão treme um pouco ao receber o copo. Deve ser a primeira vez. Ele tira um lenço de seda do bolso e enxuga o suor da testa. Calor, não? Faço que sim com a cabeça. Ele olha para a estante. Você estuda filosofia? Não respondo. Ele cora. Bem, acho que não é da minha conta... Seguro-o pelos cabelos e mostro-lhe, latejante sob a minissaia. Maravilha do progresso que faz mal ao coração. Puxo-o para baixo. Ele se submete. O bonitinho ia ficar orgulhoso.


Na madrugada em que fugi de casa, a caminho da rodoviária, passei pelo açougue do meu pai. Àquela hora as portas ainda estavam fechadas. Destranquei o cadeado com minha chave. Entrei, acendi as luzes e me pus a contemplar aquele espaço que por mais de cinco anos tinha sido meu inferno. Pendurado num prego, na parede atrás do balcão, seu avental estava limpo. Meu pai o lavava sempre ao concluir uma jornada. Algumas manchas ficavam. Iam se acumulando umas sobre as outras, marcando a passagem do tempo. É provável que fosse bem mais branco quando ele me levou pela primeira vez a um abatedouro. Papai, quanto é que custa um boi? O olhar doce dos bichos, tranquilos, caminhando em fila para o sacrifício, me deu vontade de chorar. Mordi o lábio e apertei a sua mão. Ele ficou um tempo bagunçando meu cabelo e, quando falou, sua voz me pareceu diferente. Não fique triste, ele me disse. Eles não sabem que vão morrer.


O engravatado acaricia minha cabeça raspada e suspira. Você é tão bonito. Eu só quero que ele vá embora. Deixa o dinheiro em cima da mesa, digo sem fitá-lo. Ele segura minha mão e sussurra. Você sabe que não precisa ganhar a vida desse jeito, não sabe? Quero dizer, você me parece um rapaz inteligente. Por que você não passa no meu escritório amanhã?

Imagem por: Lorena Hollander

Leva um currículo. A firma está crescendo. Temos contratado gente nova. A voz dele me parece um ruído distante, envelhecido. Como as gravações muito antigas das óperas que meu pai ouvia numa vitrola que comprou quando era jovem. Não preciso de trabalho. Só preciso terminar de pagar o tapete da sala. Acontece que uns são mais putas que os outros. O resto não faz diferença. Deixa o dinheiro em cima da mesa. Ele se levanta com um novo suspiro. Tira as notas da carteira e as coloca sobre o móvel. Vou te deixar também meu cartão. Pense bem no que eu disse. Você tem a sorte de ter estudado. Fortunatissimo, fortunatissimo, fortunatissimo per verità.


Quando empreendi pela última vez a longa viagem de volta, meu pai me esperava num caixão. Ainda bem que você veio, disse minha mãe no velório. Seu pai te amava muito. Você precisava ver o quanto ele chorou quando você nasceu. Chorava mais do que você. Nunca deixou de te amar. Nem depois que você foi embora daquele jeito, sem nos avisar, nem comunicar por que ou para onde ia. Eu poderia dizer que nunca tinha ido embora. Que partir era uma liberdade da qual não tinha disposto, uma escolha que não tinha feito. Que quem foge o faz às pressas, sem grandes deliberações. Que eu não poderia suportar a vergonha de ter ficado. Nem queria uma vida de proscrito, sempre com medo de erguer os olhos. Que, de antemão, a culpa e o rancor não tinham deixado espaço para o afeto. Poderia ter dito. Talvez fosse o momento. Preferi ficar em silêncio.


Sozinho outra vez. Exausto, deitado sobre o tapete. Acendo um cigarro e a sensação de relaxamento é imediata – maravilha do progresso, etc. Aproveito o fogo do isqueiro para queimar o cartão que o engravatado me deixou. Lembro-me de chorar e não consigo. Meu pai dizia para eu não ter vergonha. As lágrimas revigoram, abrem os pulmões, fazem bem ao coração. Se o choro não importasse não o aprenderíamos no primeiro contato com o mundo. Chora, meu filho. Enfiado nos braços dele eu chorava por tardes inteiras. Com um medo enorme de me expor aos outros. Com um medo maior de ficar sozinho. Agora não consigo. A solidão me embriaga de urgência em cada gesto. Não consigo. Meu pai morreu e alguma coisa entupiu em mim.


Uma dívida a pagar. Toda noite, como um totem de expiação, o tapete da sala recebe minhas oferendas de suor. No fim do mês, são os juros e as prestações no banco. Os caminhos apaixonados do prazer requerem a garantia de um plano de fuga. Não vou mais procurar o bonitinho. É fácil para ele se dar ao luxo das metáforas, dos arrependimentos. Não tenho tempo a perder com palavras e promessas. Quando a dor de ficar é maior, é esse o momento de virar as costas. Uma dívida a pagar. Depois, quem sabe. O futuro é alucinação. Quantas vezes me disseram que as drogas não passam de uma fuga? Fugir, sim, é que é uma grande cocaína. Assim mesmo, como sempre faço. Sem palavras, sem adeus.


Aconteceu muito rápido. Ninguém teve tempo de reagir. Seu pai e os outros deixavam o pasto, caminhando devagar, de costas para ele. Um animal arrogante, acostumado ao respeito dos peões. Não gosta de ser ignorado, muito menos de que lhe virem as costas. Partiu em silêncio, sem ameaças que pudessem anunciar sua maldade. Atingiu seu pai com um único golpe, no meio das costas. Os outros, com o susto, correram e dependuraram-se na cerca. Seu pai foi arremessado para cima. Um acrobata desprevenido. Caiu com a cabeça no chão e todos ouviram o estalo do pescoço se partindo. Morreu na hora. Nada que pudéssemos fazer. O fazendeiro e eu contemplávamos em silêncio o touro que matou meu pai. Do meio do pasto, fingindo indiferença, ele também nos observava. O que vai acontecer com ele agora? Olha, garoto, eu entendo que você esteja triste, mas aquilo foi um acidente. Não se pode culpar o bicho. Esse touro é um bom reprodutor. Vale muito dinheiro. De olhos fechados, eu procurava no silêncio uma resposta. Foi o frio quem primeiro a encontrou. Um arco sibilante cortando a coluna ao meio com uma guilhotina. Quanto dinheiro? Minha voz parecia a de um personagem num sonho.


Recolho do chão os peitos e a peruca. Meu reflexo no espelho não se parece em nada comigo. Abaixo-me para lavar o rosto na pia. Ergo os olhos mais uma vez. Sobre a minha cabeça, a marca de batom é uma auréola cor-de-rosa. Um formigueiro toma conta do meu braço esquerdo. Deito-me mais uma vez sobre o tapete da sala. Tenho dificuldade para respirar. Um infarto agora seria o final previsível de uma velha piada, repetida nas vielas e nos becos. Talvez só mais um ataque de pânico. Viver é questão de probabilidade. Nu, coberto de suor, sobre o couro do assassino do meu pai, espero que meu coração se decida.