Útero


(Ellen Amaral)

Ellen Amaral

Linguista e mestranda do Programa de Estudos Comparados

de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH-USP

Hiato: Torre caindo


Ela sempre passeava em parques em busca de ar. Neste dia estava num bosque de um parque cheio de aves e ao passar ao lado do viveiro central repleto delas, sentiu um cheiro ácido que a transportou para as suas lembranças. Saiu do parque e o ruído da avenida caiu como uma bigorna em sua cabeça, que incomoda menos que o mal-estar de suas memórias... O céu escureceu de repente, mas ela não procurou abrigo, precisava se livrar daquele cheiro.

Começava a preparar o estômago para voltar àquela escadaria fétida e escura que a leva ao lugar que não quer estar. Visita ao mesmo tempo suas memórias e o seu avô... enquanto vai lá, em sua mente tem a imagem dos calcanhares se esfolando por conta do corpo que é empurrado, gato indo pr’o banho.

Há uma necessidade de anestésico para aguentar o tranco, não se livra da enxaqueca... lá não consegue ouvir nada sem estar desligada ou em stand by, com cara de paisagem...

Chega ao local, sobe aquela escada que parece uma perna adoecida e fraturada, a antessala é como uma uretra infeccionada que arde, o outro hall se assemelha a um estômago por estourar, e novamente tem que subir outra escada, que após passar pelo oco do coração chegamos ao topo, ou à cabeça; com lucidez parcial. Este espaço é o quarto de seu avô

Na janela dos fundos desse cômodo dá para um barranco sujo, um terreno baldio de pirambeira. A casa se equilibra para não descambar, evitando o destino em ruínas, como da memória que sumiu em deslizamentos.

A doença chegou, mas os protocolos médicos não. A enfermaria é mambembe, a vista é feia e a cena não é boa. Não é a “Lição de anatomia” ou a “Santa Ceia”, mas quase... Os fios que o sustentavam estavam pendurados em pregos já antigos nas paredes. Ajoelhávamos na cama sem posição certa para segurar a pouca vida que ainda restava. O nosso cansaço implacável não estava autorizado a vencer... talvez a imagem poderia sugerir um titereiro cruel que o imobilizava no centro da cama sem ação, sem ter o que fazer... cercado por nós, perdidas, cabaçonas, sem conseguir lidar com aquele tanto de dor e fazeres; é uma cena barroca extrema, sem bordas contornáveis, insegura como a vida sempre é.

Ela se aproxima de seu avô, que não abre os olhos, e sussurra:

– Vô, estamos aqui, o senhor precisa de alguma coisa?

Ele dubla que quer um beijo, ganha o beijinho no rosto e acaba; é tudo o que se teve dele por estes dias. Em agonia histriônica, mas silenciosa a visita termina, a saída vem num ímpeto indisfarçável; a respiração é asmática.

A torre insalubre se distancia, o cheiro desaparece para ajudar na sobrevida e no oxigênio. Ela volta a respirar parcialmente aliviada discreta sobre o que se passa ou está por vir, não havia outros parques por perto, o asfalto infinito e quente era o outro inferno.

Deus não é bom, anunciamos amores para nos enganarmos.

Naquela noite, ela dormia quando ele se foi... após o telefonema, voltou a dormir e sonhou que ele se mexia, teve dúvida se a vida ainda estava lá. Foi correndo vê-lo, velou o corpo por toda noite, não dormiu até o enterro.


Enxerto


Depois que surgiu outro joelho na canela, andar ficou mais difícil/os movimentos ficavam quebrados com andada claudicante máquina pedalante assimétrica

O entortar do tronco se deu também porque um terceiro pulmão surgiu, não cabia direito no tórax teve que se entortar surgiu uma corcunda pra acomodar aquele novo balão entre as costelas

A enxaqueca sempre teve

As amídalas tinham tirado, mas o fez 4 vezes pra conseguir emitir algum som

A língua era o mais engraçado surgiu outra e ficou com uma língua dupla, igual de cobra, só que gorda

Não conseguia falar mas beijava muito bem


Carne (mulher/bicho)


A pele dela estava caindo. Rasgava e escorria, e isso passou a ser constante. Em poucos dias estava desfigurada, com partes de peles soltas ou faltantes.

Por baixo dos buracos havia uma camada molhada, vermelha, ficava aflita, tentava disfarçar, se enrolava em plástico filme para segurar o que ainda estava preso, colocou as roupas por cima, mas o calor acelerava o processo... e ficou em dúvida se chegaria inteira até a semana seguinte.

O rosto era o pior... parte da testa e o contorno de um dos olhos estavam expostos, ela passou a franja para este lado, a mecha se molhou no contato com a carne, como se tivesse um gel alisante. Usava óculos imensos, tipo Jackie Onassis, e a princípio ficou charmosa.

Caminhava com aquele segredo lentamente e enquanto podia, não tinha um plano B para viver sem se expor.

Mordeu a bochecha por dentro e sentiu que tirou um pedaço, um naco grande, não uma pele, mas uma almofada de carne que deixou seus dentes à mostra através da bochecha, de um lado do rosto

Parecia que estava sorrindo de viés, e este sorriso sarcástico era tudo o que ela não queria, este perfil já lembrava uma caveirinha ou um manequim de anatomia destes que há em laboratórios escolares.

Foi mexer no cabelo para ver o que poderia contornar, mas o escalpo saiu inteiro puxando uma tira de couro através do pescoço, desenhando uma lista zebra que cruzou seu dorso.

Esta parte exposta não doía não sangrava, mas era molhada e com aspecto de carne, como a textura de um genital; quando vinha um vento com poeira era um inferno.

Colocou um biquini, se assustou, voltou a se agasalhar e parou de desfilar na rua e no transporte público. Esperou um dia frio para comprar um carro, saiu toda enrolada no cachecol para conseguir fechar a compra, depois colocou vidros escuros para se esconder.

Em um dia quente o carro que mal podia pagar, pifou. Ela precisou sair, os bancos eram tipo couro e o assento quente segurou toda a sua pele das ancas; olhou praquilo e lembrou-se imediatamente de um pernil de carneiro. Não teve opção, saiu do carro muito mais que nua, saiu despelada, como se fosse uma obra de Von Hagens. Manteve os pés em salto alto, sentiu um silêncio estrondoso diante do seu corpo, sentiu que era olhada como sempre fora.