MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (Parte 6) – ROMANCE E SEDUÇÃO

Tiago Cfer

MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (Parte 6) –

ROMANCE E SEDUÇÃO


Tiago Cfer


Parece-me oportuno agora, para concluir essa série de ensaios, realizar uma breve leitura de dois romances: Postar (Popstar), de Teti Conrado (2019), e Seriado, de Mauricio Salles Vasconcelos (2021).

Os fios problematizados no decurso dos textos anteriores, como o do vampirismo pornográfico e da existência sem-papel, produzidos e disseminados pela indústria cinematográfica, aqui se rearticulam. Desde a análise sobre o espaço de ressurgência do romance depois dos desastres humanitários mundiais, tal como aparece em Como é, de Beckett; o circuito nervoso da linguagem e o traçado de uma existência em fuga no romance A lua vem da Ásia (Campos de Carvalho); a colagem e a construção de uma memória em guerra com as técnicas mnemônicas de controle no romance gráfico Minha mãe morrendo e o menino mentido, de Valêncio Xavier... Enfim, toda essa fiação está, de um certo modo, presente nos dois livros agora em pauta. No entanto, neles a função do narrador desloca-se, ganha um lugar distinto daqueles conquistados nos livros anteriormente abordados. Não se atendo a dinâmicas metassemióticas de indivíduos autoficcionais nem a biografias espectrais ainda comuns nos autores mencionados, as vozes narrativas de Postar (Popstar) e Seriado, guardadas suas diferenças, espiralam para o lado de fora. O espaço-tempo de formação e aprendizagem das personagens passa a se configurar em um conjunto de mutações e aleatoriedades de vidas e ficções coletivas. Uma espécie de post-discursividade em rede distribui a narrativa em situações e tramas existenciais discrepantes, registradas e propagadas simultaneamente nos multitudinosos rebanhões de metadados que são as redes sociais – espécie de web-cracolandização da mente humana. É o que se dá, particularmente, em Postar (Popstar).

Pop-Eyes: X-Olhos

O livro, em uma transfiguração das estratégias da pop art, extrema o uso das técnicas midiáticas e publicitárias no contexto expandido da infosfera. Se a arte pop define-se pelo modo como o artista implanta seus artefatos e objetos nos circuitos do “realismo capitalista” (em alusão à exposição de Gerhard Richter e Sigmar Polke de 1963 que dá origem a um grupo de artistas sob esta insígnia; e também ao ensaio já clássico de Mark Fisher, no qual o autor nos apresenta a agonística do capitalismo tardio – depois da crise de 2008 – sob a elucidativa noção “stalinismo de mercado”), instalando a bomba dentro dos rostos, marcas e grifes mais cotados e cultuados no mercado industrial, tornando-os, justamente, obras-de-arte-para-consumo, a estética desenvolvida e apresentada por Teti Conrado contrapõe-se de maneira brilhante à lógica hegemônica de controle de informações. Põe foco no comando de comunicações e na detonação das relações que determinam os fluxos e as ondas do capitalismo semiótico.

Mouth (Brigitte Bardot’s Lips), Gerhard Richter

Depois do degelo do socialismo e do consumo desenfreado de ícones & modos de vida levado a dimensões globais pelo cinema hollywoodiano, numa autofagia generalizada da espécie; depois do esmaecimento do projeto moderno intuído pelas coletivizações estéticas, digamos, disruptivas dos anos 1960 em diante – do punk ao pós-rock, do pós-modernismo ao terror trash, dos happenings e performances desmaterializados ao existencialismo (humanismo) de mortos-vivos etc. –, e com a transposição das relações públicas para o chamado mundo digital, o romance então ressurge com sua fabulação monstruosa das condições de vida e do estado de coisas da época.

Bomber, Gerhard Richter

O viés combativo da estética pop atualiza-se em Postar (Popstar) segundo critérios e procedimentos bem próximos à noção de afterpop desenvolvida por Eloy Fernández Porta em Afterpop – La literatura de la implosión mediática. No sentido de uma escrita que consiste em uma “devoração da cultura de tendências”, numa detalhada exposição do “fator que permanece subjacente às modas visíveis desaparecidas e reaparecidas na superfície fútil do tempo pseudocíclico espetacular”1. Ambienta-se com a sinistra virulência de um discurso eletro-proposicional, segundo o modo como apreende Laurent de Sutter a “pop-filosofia” de Deleuze – “Fazer da filosofia uma matéria estranha é nela instalar um ar diferente, cuja única característica formulável é a de possuir uma relação mais ou menos íntima com a eletricidade; ou, se preferível, é fazer de um modo que passe a haver eletricidade no ar”2.

Bastaria dizer que o romance efetua em sua trama, numa escrita que encena recursos técnico-escriturais do telejornalismo, da telenovela e das redes sociais (inexplorados pelos meios de comunicação oficiais), um grafismo multifacetado capaz de apreender as dinâmicas bélicas da vida global segundo a perspectiva da repetição kierkegaardiana. Combina este conceito-chave com técnicas de escrita extraídas de William S. Burroughs para então arquitetá-los em fluxogramas narrativos que bem podem ser compreendidos como roteiros, mapas e maquetes de um thriller planetário em série sem fim.

A partir do ataque a um garoto emo por um grupo de skinheads na cidade de São Paulo, tal como ocorreu numa praça do Tatuapé em 2009, a trama desenvolve-se em superdobras da vida de três jovens, Agno (agredido pelos neonazis), Duio e Riva. Ligadas pelo desejo de formarem uma banda/um bando, Rosas Jovens Fortes, as tramas familiares/coletivas das personagens são narradas em diferentes formas de posts – considerando-se que aqui, especialmente, toda forma é um composto de relações de forças. Jogando com a polissemia do termo post (entrada, artigo, notícia, prefixo – depois, quebra, corte na cadeia discursiva etc.), com as simulações e ambiguidades da naturalização do pop, os blocos narrativos se avolumam por alastramentos e derivas de memórias, histórias e signos.

Instalado no Brasil de 2019, início de governo que se mostra sintoma de um imensurável desastre político no país, o romance de Teti Conrado escava futuros prenunciados em diferentes épocas e contextos do passado e que não chegaram a se materializar no tempo, permanecendo em sua forma de espectro. Apesar de sistematicamente estrangulados pela brutal atualidade, estando a própria vida presente sob ameaça de milícias que se espalham vertiginosamente pelo país, estes futuros são reativados em sua leitura da história cultural, mobilizadora de memórias da música, do rádio e da televisão, o que acaba por conferir um ritmo sônico, eletrizante e acrônico para a narrativa. Não que o texto deixe de estar ligado aos fatores de seu tempo, mas a friccionalidade da linguagem trabalhada por Conrado, estremecendo o corpo-no-mundo de suas personagens, junto às transmissões imateriais de imagens e sons deste próprio mundo, gera uma textualidade que evola da autora e do leitor, passando eles a serem vistos pelo que leem e escrevem. O romance os vê e os seduz. Torna-se paisagem escrita, atmosfera de atração. Trata-se de um trabalho de linguagem capaz de pôr em ação o devir/o sexo entre literatura e vida.

Paisagens vistas de fora, vindas de muitas realidades (não só as minhas, trancafiadas num sonho sem origem, nem destinatário, avesso a qualquer tipo de controle e hora marcada)3.

A própria autora revela em entrevista que seu romance de ingressão no universo da literatura “tem um forte vínculo” com a peça O Sintoma – Por uma vida sexual irrefreável escrita e dirigida por Mauricio Salles Vasconcelos (cf. “Entrevista Teti Conrado entrevista teticonrado” no blog Kobo&Transistor, 21/04/2019):

Na peça desentranhada de Joyce/Lacan, perceptível se mostra o fato de que chega-se a um estado em que o escrito passa a nos ver. Ganha um corpo autônomo espraiado em coisas outras (ditas, vistas ou irrompidas num repentino quadro destituído de cifragem). Aí é que existem Blocos Móveis – tudo o que dizemos nos circuitos de blogs e mensagens-boxes pretensamente encriptadas para amigos distantes ou próximos ao abrigo da Rede –

Aliás, fica nítida a influência da obra romanesca de Mauricio Salles Vasconcelos sobre a autora de Postar (Popstar). Sobretudo em seu modo de compreender o livro de romance enquanto compacto de blocos de escrita e vida divergentes, dispersivos, em um único volume. Coisas como novas visões e materialidades, individuações, percepções e sensações que os filmes e os discos não podem nos fazer ver, sentir, mas que os textos certamente podem, surgem não por mutação mágica, mas da proposição de uma escrita que hachura e desbasta as linhas da vida macrológica, provocando-lhes pequenas alterações, pondo-as em órbitas e vibrações ainda não pensadas nem experimentadas.

A vasta serialização ficcional que os romances de MSV vêm colocando em curso captura e sidera o livro de Teti Conrado em sua constelação. Talvez a marca do gênero autoral ainda fosse necessária para nos mostrar como são escritos estes romances – por uma estrela faltante (como a personagem Riva, mulher do grupo emo Rosas Jovens Fortes, escalada para ser band-leader; ou o pseudônimo feminino adotado neste caso pelo autor para escrever sua pop novel durante o horror 2018-19, num livre e repertoriado experimentalismo de linguagem capaz de viralizar linhas alternativas de escrita e invenção do real, cheias de vida e beleza, em dissonância com a tenebrosa e horrenda epidemia macho-criminosa que toma e sufoca o país desde o comando da Besta de Bosta). Uma estrela surge e desaparece, feito senha para um próximo passo. Seu aglomerado de notas e textos livres de identidade nos convocam à leitura e não ao culto; tramas post-discursivas oferecem visões mutantes de um mundo posterior à língua maníaca dos homens. A superexcitação e o transbordamento dos olhos, o inchaço e as doenças da visão. Espasmos, lágrimas. Uma consequente nitidez invade o plano da escrita. Algo como uma mudança de respiração transforma o corpo do romance.

Bunnies, Sigmar Polke

Um nome inaugural vem se acrescentar ao projeto escritural de Mauricio para atestar que a fonte de suas criações é da ordem do feminino. Como se toda a masculinidade sempre se visse perseguida por essa repentina reversibilidade para a feminização do texto e do mundo. Pequenas alterações nos princípios de verdade, no real do poder viram o material recalcado da história ao avesso. Diríamos com Franco “Bifo” Berardi que a poiesis feminina de Teti Conrado, procedente de MSV, libera os fluxos libidinais da Fortuna4 de sua domesticação/sexualização pela cultura masculina. Ou, em sintonia com a via existencial kierkegaardiana de Baudrillard, que seus livros se inscrevem no campo da sedução das aparências – jamais no comando, no controle das imagens pela inteligência.

De nada serve jogar ser contra ser, verdade contra verdade; eis aí a armadilha de uma subversão dos fundamentos, quando basta uma ligeira manipulação das aparências5.



Notas do autor:

1 PORTA, Eloy Fernández. Afterop. La literatura de la implosión midiática. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010, p. 48.

2 SUTTER, Laurent de. ¿Que es la pop-filosofía? Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Cactus, 2020, p. 30.

3 CONRADO, Teti. Postar (Popstar). São Paulo: Editora Córrego, 2019, p. 89.

4 Em Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem, Franco “Bifo” Berardi escreve: “Maquiavel fala do Príncipe como uma força masculina que é capaz de subjugar a fortuna (o acaso, o fluxo caótico de eventos), a contraparte feminina da história” (Ubu Editora: 2020, p. 15).

5 Baudrillard, Jean. Da sedução. Tradução Sandra Pellegrine. Campinas: 1991, p. 15.