Antes (ou uma noite)

Natalia Timerman

Texto apresentado por Natalia Timerman no Encontro “Escrita e Ansiedade” (com leitura da autora, disponível neste site na seção Encontros). Além de escritora, Natalia Timerman é médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Publicou Desterros - histórias de um hospital-prisão (editora Elefante, 2017), Rachaduras (editora Quelônio, 2019), finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos, e Copo Vazio (romance editado em 2021 pela Todavia).

Teve um dia em que foram ao teatro. Mirela sempre tinha ingressos para peças e espetáculos a que nunca assistiria, o escritório ganhava de clientes ou parceiros, vai que é bom, ela dizia, e às vezes era. Convidou Pedro já avisando: não conheço a peça, não tenho ideia do que seja, quer arriscar?, quero sim, ele disse, de graça até injeção na testa, e acompanhado de você não tem como ser ruim. Mirela achou graça, ele às vezes parecia um tio velho que falava frases feitas, mas se no tio as frases a irritariam, nele pareciam dizer de um deslocamento, de uma constante falta de traquejo social que emprestava uma fragilidade até atraente.

Foram de ônibus, o carro de Mirela estava na revisão, iriam para Minas na semana seguinte e, antes de viajar, ela costumava deixar tudo em ordem. O ônibus estava cheio, foram de pé no corredor perto da porta de saída. Era fim de tarde de terça e o trânsito da cidade estava caótico, mesmo sendo janeiro. Entre ceder espaço a uma e outra pessoa, Mirela questionava os aplicativos de trânsito. Se sempre sugerem o melhor caminho em um determinado momento, no instante seguinte aquele trajeto já será o pior, todos irão por ali e o congestionarão, não faz sentido, e Pedro sorriu, é com esse tipo de problema que nós da ciência política nos ocupamos. Ela se sentiu inteligente diante dele, sentiu-se bem, esforçou-se para não sorrir, não queria parecer uma garotinha satisfeita com a aprovação do professor. Um assento vagou ao lado deles, mas nenhum dos dois quis se sentar.

A peça era ruim, mas eles não ligaram. Pelo menos não Mirela, estava com Pedro, ao lado dele, bem perto, era o que bastava, e qualquer enredo que não fosse o da própria vida seria menos interessante, não queria nem por um minuto sair de si. Quando terminou, antes de se separarem para ir ao banheiro, encontraram uma amiga dela. Lídia, este é o Pedro, e Mirela gostaria de poder dizer: “meu namorado”, mas interrompeu a apresentação no nome, só questão de tempo, calma, pensou, o que você achou da peça?, Lídia não gostou, Pedro não disse nada.

Depois de fazer xixi, confirmou no espelho que estava bonita, estava linda, estava feliz. Voltou para o saguão do teatro, ainda cheio, diversos grupos de pessoas conversando, e Pedro ainda não havia saído do banheiro. Encostou numa parede, olhando ao redor, procurando o homem loiro vestido de camiseta vermelha, e por um instante se questionou o que faria se ele tivesse ido embora, deixando-a sozinha ali, ela e sua felicidade murcha. Seu olhar tornou-se mais inquieto, aflito, quase febril, lembrou-se do medo que tinha, quando criança, de ir ao banheiro nas paradas de estrada por achar que os pais poderiam deixá-la, sozinha e perdida, abandonada no meio do nada, e quando avistou Pedro vindo do café, notou seu jeito de andar, desengonçado, como um corpo grande demais para um dentro pequeno. Nunca tinha percebido como ele era desajeitado, aliás, tinha percebido sim, mas não que isso tinha a chance de torná-lo feio, que ele talvez não fosse tão bonito quanto ela costumava ver. Pedro: por um segundo, ele virou um estranho. É assim que o mundo o vê? Mas o estranhamento não era muito se comparado ao alívio de tê-lo enfim encontrado, ele não foi embora, claro que não, e caminhava em sua direção, mais próximo, mais próximo, vai ver o amor é isso, ver de perto apenas.

De lá, foram a um bar, e enquanto Pedro tentava um espaço no balcão abarrotado para pedir duas cervejas, Mirela o olhava e agora admirava seu desjeito, como se aquela característica, apesar de feia, ou justamente por isso, o tornasse mais amável, mais dela, gostar de alguém perfeito seria fácil, afinal, ou justamente o oposto: é só dos defeitos que se pode gostar de verdade. Ele pareceu não entender a intensidade do abraço que recebeu ao se aproximar com uma cerveja em cada mão.