MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (Parte 7)

ROMANCE SIDERAL:

GUERRA SERIAL E LINGUAGEM VIRÓTICA (TIAGO CFER)


Ganham corpo no romance Seriado, de Mauricio Salles Vasconcelos (2021), todas as ordens de mutações simbólicas e materiais pelas quais a história humana vem passando desde a virada do século/milênio. A (não) guerra serial planetária – virtual, sem lugar e ao mesmo tempo presente em todos os lugares e segmentos da vida – instaurada pela guerra do Golfo, e a aclimatação da realidade global sob os signos do terror desde o 11 de setembro, formam o background da história aí narrada.

September, 2005, Gherard Richter

O campo de provas onde suas personagens são instadas a agir é da ordem dos simulacros e simulações, de uma virtualidade extrema que as dissuade de passar ao atual – uma lógica hiper-realista de dissuasão do real mediante o virtual (Jean Baudrillard: A guerra do Golfo não teve lugar). Um ambiente em que o próprio campo de provas, característico de nossa cultural experimental, tal como pensa Avital Ronell, define-se pela ironia – calibração retórica decisiva para o destino do teste (Campo de provas: sobre Nietzsche e o test-drive).

Aliás, a observação de David Foster Wallace, em seu ensaio sobre televisão e ficção nos Estados Unidos de que a cultura televisiva imanta as narrativas contemporâneas com a “aura da ironia”, também aponta para este foco de nossa análise. Sua ironia implica, obviamente, a transferência da ideia de aura para um campo em que tal ideia foi destituída – ou teve sua autenticidade suprimida: o da televisão. Essa ironia benjaminiana do autor de “E Unibus Pluram: television and U.S. fiction” será fundamental para examinarmos o romance Seriado, pois nele a obra de arte passa para o terreno das aparências livres da ideia de verdade.

Suas personagens, espaços e eventos, apesar de aparecerem e serem apresentados neste mesmo mundo em que vivemos – ou seja, apesar de a narrativa assumir seu compromisso realista –, eles operam movimentos que não são completamente determinados pela história. A viagem não se reduz a uma mera volta no tempo, muito menos ao desesperado retorno a uma origem perdida, mas expõe uma arqueologia do presente capaz de apreender as procedências do passado em suas potencialidades que ainda não se realizaram. Se há um propósito estético ou ético bem definido em Seriado, ele não tem nada a ver com uma reafirmação do passado – como ocorre frequentemente hoje em dia com os romances históricos e temáticos mais publicizados no mercado editorial: em sua maioria são livros, tornados marcas, que pretendem nos seduzir com reconstituições realistas de personagens ou acontecimentos ligados à história de alguma ordem ou causa (ativista, identitarista) emergente no presente, como que para legitimar ou fornecer um design apropriado para o desejo, a insatisfação e a inquietação coletivos. Com Seriado, as dinâmicas e os aspectos da vida presente, os fluxos de desejos e realizações da espécie humana são tratados não sob o crivo de valores universais e transcendentes – autenticidade, justiça, recompensa, reparação etc. Ao contrário, transpõem-se para relações de forças que ainda não foram usurpadas ou exploradas pelos valores e discursos de poder que definem a “cena” de maior visibilidade e aderência da literatura e da crítica hoje.

A arte do romance seria melhor compreendida se indagássemos com que outras forças ela entra em relação, e qual a forma que daí decorre como “composto”. Ou, como sua funcionalidade pode ser extraída e transformada do que lhe foi legado como funcional? Como o romance, ao invés de capturar o leitor em um valor de culto e exposição, encerrando-o num circuito ritualístico, ressonante e fetichista, num fanatismo primitivo com a obra, deixa de fundar-se no fascínio e passa a fornecer proposições para uma pragmática realmente política? Neste caso específico de Seriado, como uma política/linguagem das aparências desprovidas de verdade e moral se apresenta?

Vejamos como isso ocorre.

Mirna Amorim, a protagonista, desempenha papel de mãe “que acabou sozinha em sua própria moradia”[1]. Espectadora de tevê, ela assiste a novela Grande Shopping Veredas, cuja trama, uma transfiguração vertiginosa de sertão em shopping center, se tornará o leitmotiv implosivo do romance. De sua rotina solitária no Brasil, e movida pelo desejo de sexo irrefreável, ela sai atrás do filho, Ismael A. B., que vive e trabalha em Nova York como ator em séries. Sem se falarem há seis anos, desde que se desentenderam em uma ceia de Natal (como diz Achille Mbembe, as “guerras de conquista e ocupação... guerras de extermínio... guerras de sitiamento, guerras de intrusão, guerras raciais... liberaram forças passionais que, em contrapartida, decuplicaram a capacidade de desunião entre as pessoas”[2]), Mirna reencontra o filho no teatro onde ele apresenta uma peça sobre sua própria vida, Ator Principal. Do contexto de confinamento no Brasil, a narrativa desloca-se para a conjuntura das produções artísticas nas ruas de Nova York logo após o atentado às Torres Gêmeas – dezembro de 2001. Envolvidos pela atmosfera desse “acontecimento absoluto, a mãe dos acontecimentos, o acontecimento puro que concentra nele todos os acontecimentos que nunca tiveram lugar”[3], mãe e filho se flagram, depois de tempos, na cena de desnudamento do ator principal no palco. Seus papeis estão zerados. “Tudo está no primeiro instante. Tudo se encontra conjugado no choque dos instantes”[4].

O encontro entre os dois, no âmbito de uma guerra do Golfo generalizada, estendida em terror planetário – Golfo é o nome de um locus do sub existente na última série em que Ismael atuou, Game – Forum – Zero, espécie de bairro subterrâneo que concentra migrantes e espoliados de todos os lugares: “um Subterrâneo repleto de contingentes/concentrações humanos”[5] –, desencadeia uma série de acontecimentos que conduzem a trama para um plano aberto, no interior de Minas Gerais, onde a narrativa ganha uma profusão de caminhos e direções. Terra em transe, o Vale, visitado por fiéis e romeiros do mundo todo, nos é apresentado a partir da perspectiva de um docfiction gravado por Ismael, e uma amiga produtora de vídeos de Nova York, durante sua busca pela mãe desaparecida. O Vale se torna, então, set multisserializado de uma hipertelenovela sobre Regiões e Religiões.

Travando uma heterodoxa relação com as séries em fluxo de transmissão contínua pela rede, com a narcose planetária que o uso narcísico das novas tecnologias propicia, Seriado engendra uma infinidade de planos prospectivos em abordagens nada usuais de formas de vida comunitárias, entrelaçadas a misticismos, teorias, etnografias, ciências terapêuticas. Seu furor existencial está diretamente ligado à problemática da linguagem romanesca: quais são as novas relações que podemos tramar com a vida? De que modo combatemos o poder?

BCCI, ICIC & FAB, Mark Lombardi

Uma sintonia nômade, atravessada por fluxos migratórios, descentralizações, num andamento multitudinal incalculável – sendo o construto de pertencimento favorecido pela tecnologia como propulsora de contatos à longa distância –, contrasta com o estado de guerra serial característico da vida globalizada. A viralização de imagens-de-mundo violentas, desestabilizadoras e detonadoras de tudo o que é vital, reverte-se em uma linguagem virótica que ganha a consistência de uma cosmopoiesis. Uma cosmopolítica daí se desdobra, capaz de fazer vibrar territórios linguísticos os mais culturalmente diversificados no contexto da mundialização. Uma multiplicidade de signos se projeta entre as distâncias e as temporalidades, entre céus e terras.

La Chinoise, 1967, Jean-Luc Godard

Se a nossa realidade tornou-se experimental – com sua “ausência de destino o homem moderno entregou-se a uma experimentação sem limites consigo mesmo”[6] –, em Seriado o sentido da experimentalidade não se amesquinha ao hiper-realismo da transparência que sempre nos oferece mais. Opõe-se, assim, à obsessão narcísica pelos detalhes que a pornografia faz reinar – introjetando-se em nossos corpos feito um novo estilo de vampirização da lógica capitalista. O experimental no romance de MSV consiste, antes, em desprender da monstruosidade e da obscenidade irremediáveis que a simulação pornô determina como realidade uma existência ficcional em que as representações da sexualidade não conseguem mais colar. O romance e seu programa de um sexo sem sexualismo nem pornografia, liberado de todas as suas funcionalidades de produto nacional bruto, de todas as manias de Narciso, faz-se enquanto Sexo Sideral.

Em meio à farsa experimental, tal como delimita a realidade capitalista, com toda sua mecânica pornô-vampiresca, Seriado nos abre perspectivas para um novo e mutante realismo. Contraponto vital à imobilização geral da pornografia instituída em loopings de discursos reiterados ao infinito por todas as mídias, o livro constela modos de existência completamente alternos, alterados em relação aos valores correntes de coletivo e vida comum. Sua sintaxe dobra e desdobra-se em um outro sexo, hachurando, ao ritmo de seus enunciados, a vida serial online. Acaba por irradiar a cadaverização dos modelos de vitalidade e velocidade capitalistas, cujo sonho de guerras e agonias permanece aqui na Terra feito um fantasma. As ondas de uma política em mutação emergem através de linhas dotadas de insuspeitos e celebratórios estilos de vida.

Untitled (Mental Map: Peak Season), 2003, Franz Ackermann

Finalmente, então, chega-se ao limite do que o título pretendia oferecer ao leitor: o romance familiar neurótico de Freud transmutou em romance familiar sideral. Daqui em diante, somente a leitura garantirá uma maior compreensão do que tentei dizer nessas poucas linhas sobre as trilhas desconcertantes ou desnorteantes que Seriado apresenta sobre a serialização do tempo presente. Boa viagem.

[1] Vasconcelos, Mauricio Salles. Seriado. Curitiba: Kotter Editorial, 2021, p. 09.

[2] Mbembe, Achille. Políticas da inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1, 2020, p. 15-16.

[3] Baudrillard, Jean. O espírito do terrorismo. Trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2002, p. 08.

[4] Baudrillard, Jean. Power Inferno. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 19.

[5] Vasconcelos, Mauricio Salles. Seriado. Curitiba: Kotter Editorial, 2021, p. 315.

[6] Baudrillard, Jean. Telemorfose. Trad. e prefácio de Muniz Sodré. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 19.