GESTUÁRIO DA BRUTALIDADE

 A menina morta, de Cornélio Penna

(Tiago Cfer)

Seria preciso, antes, estudar como a colonização funciona para descivilizar o colonizador; para brutalizá-lo no sentido apropriado da palavra, degradá-lo, despertá-lo para instintos soterrados...

(Aimé Césaire)

A morte de alguém é a circunstância fundadora da comunidade, afirmou Blanchot em seu livro A comunidade inconfessável. “Não seria possível haver comunidade se não fosse comum o evento primeiro e último que em cada um cessa de poder sê-lo (nascimento, morte)”[1]

No romance de Cornélio Penna, A menina morta, de 1954, o óbito prematuro de uma criança em uma fazenda mineira durante o império colonial na segunda metade do século XIX, filha mais nova dos proprietários, torna-se o acontecimento desencadeador da longa trama. Proibidos de velar o corpo da menina, e mesmo de sofrer abertamente seu luto, os moradores da fazenda (escravos e parentes do casal de senhores) passam a viver um pesadelo incógnito que os arrasta ao aniquilamento e à loucura.

É bem provável, supomos logo de início, que a interdição imposta pelo proprietário da fazenda tenha certa finalidade: impedir que seus agregados e escravizados se reúnam, a partir deste evento trágico, com tendências a uma provável fundação comunitária capaz de subverter a ordem das coisas. Pois, o que mais convém ao soberano além de se dar o direito de poder e controle sobre nascimento e morte de seus dependentes?

Além desses dados fundantes, o romance de Penna nos apresenta as diversas facetas do sistema de interdição da linguagem que implica a colonização do Brasil. Nas fazendas coloniais, criadouro primitivo da cultura burguesa que viria imperar em todo o território brasileiro, já estão contidas as formas de exploração, violência, segregação e subalternidade que modelam nossa socialidade terceiro-mundista. Desde o Grotão, fazenda onde Penna ambienta sua ficção, buraco encravado no Vale do Paraíba, o autor expõe um amplo cenário de interiorização do patriarcado e adestramento dos corpos tal como ocorre no abandono da vida confinada em propriedades rurais. Nossas procedências culturais, políticas e sociais vêm de um laboratório bárbaro, comandado por caprichos e desejos soberanos de senhores proprietários de terras, pelo autoritarismo de figuras submissas aos desígnios do império mercantil que está na base do capitalismo moderno.

O interdito não tem lá explicações ou justificativas. Impõe-se, sem registros nem acordos. Para calar, se introduz silenciosamente. O que sustenta esse poder inaudito, traiçoeiro, sem rastros? A riqueza hereditária, conquistada à força, e a consequente brutalidade das punições impingidas aos que ameaçam ou se contrapõem às ordens de produção da desigualdade. Diante de homens que atiram, chicoteiam, seviciam, prendem em porões lúgubres e escorraçam outros homens, não há quem se atreva manifestar-se.

Assim, para abordar uma época de ferocidades silenciosas e veladas, o autor de A menina morta compõe uma narrativa que explora minuciosamente os gestos de suas personagens. Ao longo das mais de 600 páginas do romance, o leitor acompanha, na maior parte do tempo, descrições de olhares, trejeitos, movimentos corporais, mímicas, elucubrações, reflexões, pensamentos, sendo escassos os momentos de diálogo entre as personagens. Quando eles ocorrem, são curtos e breves.

Já que a interlocução neste ambiente de extrema opressão não passaria de mero cumprimento de ordens e convenções, Penna concentra-se no que não está dito, porém muito bem exposto na arquitetura e planejamento do território colonial e suas dinâmicas. Pesquisador acurado, detalha mobílias e decorações da casa grande à senzala, vegetação, estradas e caminhos vicinais da vida rural em torno do rio que corta as terras da região, o Paraíba do Sul. Empenha-se sobretudo em recompor os comportamentos e costumes da época, atento em esmiuçar o modo como os corpos no trabalho e rotina doméstica ocupam e se deslocam nestes locais, o jeito como se insinuam diante de acontecimentos, dos outros ou sozinhos no silêncio da noite, dentro do quarto ou na mata ao redor.

O romancista investiga os indícios e vestígios da época que está fabulando, quase cem anos antes do momento em que escreve A menina morta, munido de senso histórico, arqueológico, político, linguístico para recriar o ambiente, em seus mínimos detalhes, onde suas personagens irão atuar.

Assim, a narrativa implementa um espaço de suplência e prolongamento daquilo que não poderia ter lugar no contexto que retrata. Com elegância, Cornélio Penna extrai de um passado humilhante, no qual a linguagem e a comunicação foram censuradas até sua indigência mais abjeta, uma riqueza de detalhes a ser comunicada. Contrasta a pobreza degradante do que é narrado com a vitalidade graciosa da narração. É o que verificamos em diversas passagens como essa:

As árvores estavam tão pesadas de folhagens e de parasitas que se curvavam sobre a estrada, debruçando-se de tal forma que havia ali espesso caramanchão, interminável túnel verde opulentado de flores coloridas, e em todo ele reinava à meia-luz roxa entremeada de amarelo do sol coado pelos galhos, emaranhados em gestos de braços amigos. A terra, nesse lugar, onde fora aberta a extensa alameda da entrada no Grotão, era arenosa e quase rosada e sugava toda a umidade ali acumulada. Depois das grandes chuvas, em vez dos lameiros escuros e de sinistra aparência dos outros caminhos, apresentavam-se fresca e limpa, como se o temporal apenas a tivesse lavado. Se não fossem as grandes gotas d’água, desprendidas de súbito das folhas em golpes de chuvisco, que as multiplicavam, muitas vezes quando o céu estava já límpido e muito alto, ninguém diria terem passado por ali as verdadeiras trombas habituais no vale do Rio Paraíba. Os claros-escuros da abóbada assim formada, em claustro sem fim, apoiado nas colunas das árvores em dórico severo, davam qualquer coisa de irreal a tudo, naquela manhã muito clara, e o mundo esfumava-se em tons de arte e de artifício, que só mesmo a natureza sabe dar, quando imita a si mesma, para disfarçar a sua verdade demasiado rica e forte.

Assim, parecia grande desenho em sombra chinesa, adoçada pela penumbra, que se animasse de repente, a figura do cavaleiro que a percorria, levado pelo trote muito ritmado do cavalo meio-sangue árabe, vindo das coudelarias da Corte, em cuja cor castanha brilhavam reflexos de ouro fulvo, lembrança persistente dos animais de sangue real de sua ascendência. Sacudido pelo balanço regular da montada, o Senhor deixava-se conduzir e se não fosse o movimento que lhe imprimia essa marcha, dir-se-ia uma estátua, tal como as das procissões das cidades velhas, tamanha era a imobilidade de seus traços fisionômicos, de seus braços e de suas pernas, mantidas sempre na posição clássica do ginete, sem demonstrar vida por qualquer desvio ou sinal de cansaço e impaciência.

(...)

Era o dono do Grotão, de volta de sua quotidiana ronda pelos principais pontos de trabalho da propriedade, e tudo se animava à sua passagem, de cada lado das estradas. Mesmo de longe distinguiam o ruído inconfundível dos cascos de seu cavalo, e imediatamente os negros redobravam os golpes das enxadas e das foices, excitados pelas exclamações de encorajamento dos feitores e capatazes, e o trabalho atingia seu paroxismo quando ele chegava pero e se detinha por alguns instantes.

Nunca dizia qualquer palavra mais alta do que as outras, jamais olhava diretamente para o serviço que sabia estar sendo feito diante dele, pois encarava com expressão distante algum ponto longe dos homens que se agitavam, e permanecia assim quieto e fechado durante minutos que pareciam longas horas àqueles serviçais cobertos de suor. Os responsáveis vinham até junto dele, de chapéu na mão, e lhe davam contas do que se passava, em breves frases, e não chegavam a perceber se tinha ficado satisfeito ou enfadado com elas.

Depois, quando sua figura alta e esguia se ia aos poucos desfazendo no horizonte muito claro, na virada das colinas e ondulações das terras de cultura, havia outro momento de parada, de tomada de fôlego, para então o serviço continuar em seu ritmo normal. Não era o medo que os fazia agir assim, mas o instintivo desejo de valorizar a sua fadiga, de dar impressão afirmativa do fecundo esforço desprendido ao patriarca que os vinha observar.[2]

Trago para leitura essa longa citação porque ela implica uma certa disposição dos corpos entre si e com a terra que eu gostaria de analisar ao longo deste ensaio. Por enquanto, além da pintura brilhante feita por Penna – ele que, antes de se dedicar à literatura, era pintor e ilustrador –, gostaria de observar o poder que a recomposição dos gestos e o esquadrinhamento da paisagem têm de melhor definir a mecânica de um ambiente histórico.

A maneira soberana e majestosa como o senhor se insere e se desloca pelo espaço, montado em seu cavalo em um percurso que, por si só, subordina a ação de todos ao redor, me faz lembrar da análise que Deleuze e Guattari realizam em Mil platôs, especialmente no capítulo intitulado “7000 a.C. – Aparelho de Captura”, sobre os déspotas primitivos: a figura do “Imperador terrível e mágico” que opera por “captura mágica”, ou seja, pelo aparente mistério ligado ao poder imperial e à submissão dos povos que está na fundação do Estado. Não há causas ou contratos que expliquem o surgimento do poder soberano e seu regime de servidão generalizado. Os autores se utilizam do termo “servidão maquínica” para explicarem uma dinâmica que ocorre por “mágica”, captura, laço e nó: “quando os próprios homens são peças constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais, ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior”[3] – “Há uma servidão maquínica, de que se dirá a cada vez que ela se pressupõe, que ela só aparece como já feita, e que não é mais "voluntária" do que "forçada"”[4].

Por enquanto, recuperamos os elementos que estão na base do romance: a morte como evento fundante de uma comunidade e o poder soberano como mecânica determinadora de uma sociedade patriarcal. Eles definem o âmago da vida política brasileira.

O filósofo Giorgio Agamben considera que “a política é a esfera dos puros meios, isto é, da absoluta e integral gestualidade dos homens”[5]. Buscarei demonstrar, na sequência desta análise, a ter continuidade nas próximas edições de Lápis, como pulsa em A menina morta, para além do estado de coisas histórico que aclimata o romance, a exigência de uma política que se revela naquilo que não está diretamente dado ou dito em uma época. O autor, ao nos transmitir aspectos até então intransmissíveis do colonialismo brasileiro, estaria nos abrindo para uma esfera ética mais íntima e singular do humano. Sua efabulação apelaria a uma comunidade gestual na medida em que, a partir da morte em família e da exploração escravocrata, faz emergir “o ser-em-um meio” do homem, seus gestos, isto é, “a presença ativa humana no mundo”[6].     

[1] Blanchot, Maurice. A comunidade inconfessável. Trad. Eclair Antonio Almeida Filho. São Paulo: Lumme Editor, 2013, p. 21-22.

[2] Penna, Cornélio. A menina morta. Curitiba: RM Editores, 2017, p. 23-25.

[3] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 156

[4] Ibid., p. 161.

[5] Agamben, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 61.

[6] Flusser, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014, p. 27.