A voz humana é, ao mesmo tempo, instrumento e expressão singular do indivíduo. No contexto da música e do teatro, transcende o simples ato de falar ou cantar, tornando-se veículo de sentido, emoção e identidade. Este ensaio propõe uma reflexão sobre os processos de criação musical voltados para a voz, a multiplicidade de emissões vocais e a relação entre técnica, interpretação e expressão. A partir de experiências próprias e de referências teóricas, como a obra de Constantin Stanislavski, discuto como a voz pode ser explorada como ferramenta dramática, musical e poética, considerando suas dimensões semântico-sonoras e performáticas.
Nos últimos três anos, venho aprofundando minha relação com a escritura musical voltada para a voz — seja no canto, na declamação, no recitativo ou na leitura dramática. Também tenho explorado a voz como fonte sonora destituída de significado semântico, como instrumento percussivo e como suporte para a preparação e concepção de personagens.
Elenco abaixo algumas destas experiências:
- LIVRO / TELEFONE / RUA - 2022
Mauricio Salles Vasconcelos (poesia e concepção)
Marcus Siqueira (composição musical)
- Ciclo de canções: O Tempo e o Mar, para soprano e 20 músicos (2022)
(Poesia de Geraldo Carneiro)
- Fiosofia
- o Tempo é onde ...
- o tempo por dentro
- eternidade
- Ópera: Contos de Julia (2023)
(Texto de Julia Lopes de Almeida em libretto de Verônica Stigger) - Abertura - 1o ATO (os porcos) - Interlúdio I
- 2o ATO (os moços) - Interlúdio II - 3o ATO (os cisnes)
- Ópera: Clitemnestra (2024)
(Texto de Ésquilo em Libreto de Livia Sabag e João Luiz Sampaio) - Abertura I - Prólogo - 1o ATO
- Abertura II - 2o ATO
- GUERRA GLOBAL / SUBÚRBIO / SATÉLITE - 2025
Mauricio Salles Vasconcelos (poesia e concepção)
Marcus Siqueira (composição musical)
- Ciclo das Cores para soprano e piano. (obra aberta)
(Poesia de Simona Cavuoto)
Em cada projeto, o processo criativo nasce da minha relação direta com a leitura e a decodificação semântico-sonora do texto proposto — seja em prosa, poesia, textos técnicos ou outros formatos. Nesse primeiro estágio de aproximação, imagens sonoras surgem de forma intensa e natural: timbres musicais insinuam atmosferas, e, por vezes, instrumentos específicos se aproximam daquele universo literário ou poético.
Tive a grata oportunidade de compor para diversas peças teatrais, o que me levou a leituras específicas desse contexto, como as reflexões de Constantin Stanislavski sobre a construção da personagem. Para Stanislavski (1863–1938), essa construção baseia-se em princípios fundamentais: análise detalhada do texto; compreensão do ambiente social e cultural da peça; criação de uma bibliografia que permita imersão profunda nas personagens; identificação de pontos de aproximação ou repulsa; e desenvolvimento de ações físicas e psicológicas capazes de sustentar uma interpretação autêntica.
Ao refletir sobre a linguagem falada, Stanislavski distingue diferentes perspectivas. A primeira é a perspectiva lógica, que transmite o pensamento de forma clara e coerente, estabelecendo a relação entre as partes e o todo. A segunda é a perspectiva voltada à expressão de sentimentos complexos. A terceira, a perspectiva artística, busca colorir e ilustrar vividamente uma fala ou narrativa. Segundo o autor:
Na primeira, a perspectiva usada para transmitir um pensamento, a lógica e a coerência representam um papel importante no desdobramento do pensamento e para estabelecer a relação das várias partes com a expressão total. Esta perspectiva se obtém com o auxílio de uma série de palavras-chave e suas acentuações, que dão sentido à frase
(Stanislavski, 2001: 240).
STANISLAVSKI, 1938
No contexto da criação musical em que a personagem é concebida no plano sonoro, o processo exige estratégias próprias. Podemos recorrer, em parte, aos princípios de Stanislavski como ponto de partida, sem ignorar que outros caminhos também se fazem necessários. Na concepção de uma personagem exclusivamente sonora, o compositor precisa transpor, reinterpretar e criar novas técnicas voltadas aos parâmetros do som e da nota — timbre, altura, duração, intensidade, textura, espacialização, densidade e códigos arquetípicos derivados de uma leitura histórica da música ocidental. Para cada projeto, estabeleci procedimentos singulares, de modo a alcançar um resultado composicional próprio.
Minha primeira obra escrita para voz integrada ao efetivo instrumental surgiu em 2000, com No Colo da Mamãe, para soprano, vibrafone e dois violinos. Nela, o canto (com Caroline De Comi) se configurava como elo com minha memória de infância, enquanto a organização formal se estruturava a partir do filme 81⁄2, de Fellini. No ano seguinte, iniciei experiências marcantes no teatro, em parceria com meu amigo Frederico Foroni, na EAD-USP. A partir daí, vieram peças inspiradas na poética de Fernando Arrabal, na poesia de Manoel de Barros, bem como a composição integral de BR3 (Teatro da Vertigem), ao lado do parceiro Thiago Cury. Entre o teatro de vanguarda e o infantil, esses trabalhos me aproximaram da multiplicidade de emissões possíveis da voz.
As possibilidades de emissão vocal são vastas e diversas, e podem incluir:
· a voz de um ator;
· a voz de um cantor camerístico;
· a voz de um cantor operístico;
· a voz de um coralista;
· a voz de um poeta que declama sua poesia;
· a voz de um cantor popular;
· a voz voltada para diferentes vertentes do rock;
· a voz de um cantor do folclore;
· a voz dos monges entoando monodias gregorianas;
· a voz de um poeta que canta a própria poesia;
· a voz de um cantor que declama;
· a voz de um ator que declama;
· o recitativo no teatro;
· o recitativo na ópera;
· a voz manipulada eletronicamente;
· o canto manipulado eletronicamente;
· a voz como fonte espectral, sem o peso semântico das palavras;
· a voz como elemento disruptivo dentro da linguagem sonora;
· entre tantas outras possibilidades.
Cada forma de emissão vocal carrega dimensões estéticas e performáticas próprias. A voz do cantor operístico ocorre em contexto teatral, com o corpo em movimento em função da personagem. A voz do coralista, fora da ópera, tende a permanecer estática, amalgamando-se às demais vozes do naipe. A voz do ator, por sua vez, pode ter seu timbre alterado conforme a personagem: um ator brasileiro interpretando uma figura estrangeira pode adotar o sotaque característico dessa cultura. Situações de ironia extrema ou de falsa afetividade também demandam ajustes timbrísticos, conferindo novas cargas semântico-emotivas à interpretação.
Esses exemplos nos mostram que, ao lermos um texto poético, nem sempre ocorre uma transformação significativa na emissão da voz. No entanto, certas escritas poéticas exigem que o leitor se equipe com uma nova carga semântico-sonora, como se observa na poesia de Mauricio Salles Vasconcelos. Um poeta que vive suas próprias palavras no ato de emiti-las não pode ser ouvido da mesma forma que um ator que as interpreta. O poeta experimenta cada instante da criação — negando palavras, alterando-as, revisando e esculpindo relações entre sons, sentidos e gestos corporais. Por isso, sua declamação carrega uma organicidade intrínseca que o distingue de outros leitores e intérpretes. Não afirmo que apenas o poeta detenha a “verdadeira” leitura de seus poemas, mas apenas ele vivenciou o processo integral da criação — salvo raras exceções de colaboração compartilhada.
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Os poemas de Mauricio Salles Vasconcelos apresentam-se de forma múltipla, carregando uma imensidão de significados que ultrapassam a semântica tradicional. Neles estão contidos elementos plásticos, sonoros, composições de imagens e heterofonias de sentido. Por essa razão, percebo que, nos dois projetos que vivenciei com Mauricio, precisei me reinventar e me desestabilizar — saindo da zona de conforto — para ultrapassar meus limites estéticos e mergulhar, de modo mais orgânico, no universo criativo do poeta.
Quando um poeta canta sem formação voltada ao aperfeiçoamento técnico da voz, seu canto tende a soar mais livre e espontâneo. Para o ouvinte atento, essa experiência é menos rígida e menos condicionada por padrões formais. Cada ser humano possui uma voz única — tão singular quanto uma impressão digital — e todas têm potencial expressivo, especialmente na leitura de um texto. Contudo, nem todas contam com estudo técnico suficiente para alcançar determinados voos sonoros historicamente associados a gêneros específicos. Um cantor popular, sem formação lírica, dificilmente compreenderá o percurso técnico que sustenta a emissão operística; o inverso também pode soar estranho: um cantor de ópera deslocado para contextos fora de sua prática habitual.
Um timbre equilibrado não garante, por si só, um canto pleno de vibratos, matizes e afinação precisa. Da mesma forma, uma voz afinada e tecnicamente impecável não assegura uma interpretação expressiva. O cantor deve compreender os processos de construção de uma personagem e, com corpo e voz, criar inflexões capazes de transmitir confiança e verdade a partir do texto de outro — seja ele poeta, escritor, dramaturgo ou libretista.
Devo frisar que, em minhas primeiras experiências com a criação de óperas líricas, a presença de Gabriel Rhein Schirato foi marcante e fundamental para minha imersão no universo técnico e expressivo do canto operístico. Com Gabriel, pude compreender de forma orgânica a relação entre texto, emissão sonora e técnica necessária para a projeção da intenção musical. O mundo da ópera lírica combina tradição e ousadia, permitindo rupturas sonoras que os cantores incorporam de modo fluido e natural.
Existem, é verdade, raras exceções: artistas capazes de transitar com desenvoltura entre diferentes contextos musicais, absorvendo e transmitindo os códigos de cada gênero. Mas essas exceções devem ser entendidas justamente como tal.
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Referência bibliográfica
STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. 10a Edição. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Rio de Janeiro 2001.
Marcus Siqueira é compositor erudito, autor de inúmeras peças musicais e óperas. Ensaísta. Radicado na Itália.
Foto: Yara Cavuoto Siqueira