ESCRITA
Miragem e Materialidade
Tatiana D'Angieri
Tatiana D'Angieri
Autora do romance Luz Selvagem (Assírio & Alvim) e dos poemas de O grito do fundo das pedras – Carta a Georg Trakl (Raphus Press), ambos de 2025, Tatiana D’Angieri incursiona por universos hiperdimensionados de linguagem nos quais o horizonte da prosa e as demarcações de contemporaneidade no campo poético se esgarçam, revelando autonomia na busca muito própria de sintonia, inseparável de uma sonda, com o que é dado como numinoso, imaterial, imperceptível, inomeável. Algo passível de se determinar como uma revivência de literatura simbólica, sinestésica (“simbolista”, numa simplificação de atributos estéticos-estilísticos), atribuível a dicções antecipatórias do modernismo do século XX, como pode sugerir a referência a Georg Trakl, autor austríaco nascido (1887) poucos antes da morte (1891) de Rimbaud (escritor imagético por excelência, desbravador de veios icônico-plásticos em prospecção desconcertante até hoje). Ou seja, tudo o que fica à mostra e se afina com o signo desbravador de zonas provocadoras de imagismo e imaginação, nutridas por experimentalismo e existencialidade numa só faixa conceptiva e indagadora de escrita.
Curioso é ver como a autora, estreante com dois livros no mesmo ano de 2025, reencena, a partir de sua grande afinidade com o cariz tão indagativo quanto insulado na interioridade, a modernidade ancestralizada de Trakl e Rimbaud (podendo ser acrescidos em escala decrescente, Nerval, Novalis e mesmo Hölderlin). Sua escrita vive de incitar o revolto, o convulso reservatório do intimismo tornado matriz de inquietações e insurgências confrontadoras com o metafísico, o inefável, a invisibilidade dos sinais de vida no universo, pontuando contradições irresolvíveis, mais e mais aguçadas linha a linha dos versos e das sequências narrativas. Tudo o que estremece entre indícios de cosmogonia e corporalidade feminina tocada em seus feixes mais nervosos, impelidos por urgência e impasse. A natureza, o nume, o nome ainda não-dito encontram-se em guerra.
Como se lê na Carta a Georg Trakl ou através do Grito do Fundo das Pedras:
Noventa soldados com corpos em destroços sob suas mãos: erguendo-te os braços.
Seus olhos de neblina nada veem: dor. O estrondo no velho coração. Membros despedaçados em brancos lençóis. As mãos deles elevam-se ao teu rosto, Georg. Somente ao teu. E o que dizes?
Qual é o idioma da morte?
Pois havia uma palavra, solitária como o entardecer outonal. Vertendo quietude nutrida em solo úmido: despejando letras sujas de desesperança. Letras sujando a boca indiferente. Ainda assim, as pronuncia: tirando-lhes a poeira da não-existência.
E seus lábios morrem ao dizê-las. (D’Angieri, 2025: 69)
Entre o repertório simbológico e a descoberta de regiões ainda interditadas de ser – linguagem – saber, a produção literária de D’Angieri revela uma face inusitada, mas imprescindível, aparentemente deslocada dos registros vivenciais, tematicamente consensuais, ao rés do cotidiano, presentificados em romances e projetos poéticos de agora. Especialmente, quando se atenta para o contexto das Humanidades e das outras ciências, antenado de modo crescente com a ambiência, a arquitetura dos imateriais, dos incorporais, do inorgânico (pesquisa imponente do filósofo David Wills). Realça-se, em nosso agora (segunda metade da 3ª década do tão anunciado e prospectado terceiro milênio), toda uma abrangência, enfim, de esferas cognitivas conduzida à reconfiguração de nossa espécie na terra, no tempo. O que decorre sob a baliza planetária de investigações abertas a influxos de materialidade e expansão criadora, de conhecimento (de ciência e arte) sobre o que se passa nos diferentes planos de história, imaginação e invenção dos devires já prefigurados acerca do que é nomeado como humano, indissociável das fronteiras nascentes, sempre em recombinação e relançamento de questões não apaziguadas, nada ordenadas por delimitações de época e linguagem.
Os desígnios são signos, afirmam os Exemplos, do grande autor cabo-verdiano João Vário. O que se define como símbolos são sinais irrompidos de diferentes campos magnetizados e construídos pelo circuito formado por corpo – idioma – gêneros e engendramentos de uma disciplina e, também, de um território renomeável sempre, tão remoto quanto indescoberto –
Literatura ou linhas-de-texto-e-tempo em recorrência do que ainda não está escrito.
Mauricio Salles Vasconcelos
Trechos do romance Luz Selvagem –
O corpo de Ângela é uma miragem.
Atrás de seus olhos, há outros olhos; atrás de suas mãos, outras mãos; atrás de sua boca, outra boca. E é com os olhos imaginários de visão lúcida que ela vê as nuvens delicadas dos santos cósmicos: a luz divina da palavra feita de carne. – É também com as mãos imaginárias que ela toca a terra granulada que faz brotar flores selvagens e capim de beira de estrada: matéria viva de estranhamento inefável como a pulsação de subterrâneas raízes brutas. – É também com a boca imaginária que ela atravessa o pequeno abismo do beijo e o pré-sonho de pássaro flutuando no céu.
Sua voz hesita, mas sai da boca. É que ela conhece a crueza da fome e a crueza da dor e a crueza do amor.
Sua voz é abstrata.
(...)
Amo tudo que delira, como brasa retorcendo galhos:
Falar me deixa antiga. Estou quase no futuro de tão antiga. Em dois milênios eu viverei o instante presente. E agora será um passado remoto que o futuro carrega no ventre. O futuro já existe antes que este instante exista.
Bom dia, bom dia. Ainda estou viva? Alguém segure minha mão, senão minha pele ficará dormente.
Fiz amor com o universo e escapei da morte. Me abri inteira à brilhante escuridão e uma estrela se alojou dentro de mim. Minha pele se arrepiou luzindo cristais lapidados e de minha boca escapou um gemido baixo. Ah, que venha Saturno com seu anel de fome e me ame na opaca brevidade. Tenho gosto de constelações. Este instante é atemporal.
Sou líquida e tempestuosa: peixes penetram cegamente cavernas de algas.
Será que eu revivo cada vez que morro e o universo me entrega uma estrela ainda mais antiga?
Quando amo, de mim soam sinos translúcidos quebrando-se no ar, e no vórtice do instante o tempo foge. – Amo a flor que colhi na relva. Ficar estática me dilacera. Quero amar entre as árvores no campo: um pássaro espera antes de trinar e sai voando. Um passo, depois outro. As flores são altas com longas hastes estreitas.
Eu amo a flor que colhi na relva. Quando foi, mesmo?
Uma flor vermelha, viva e vermelha: rústica e primitiva de existência. Só havia capim pálido e, num susto, a flor. Ninguém a plantou: ela brotou de si mesma. (D’Angieri, 2025: 16; 69)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
D’ANGIERI, Tatiana. Luz Selvagem. São Paulo: Assírio & Alvim, 2025.
________________. O grito do fundo das pedras – Carta a Georg Trakl. São Paulo: Raphus Press, 2025.
Tatiana D’Angieri é psicóloga e psicanalista. Escreve poemas, romances e contos desde sempre. Publicou Luz Selvagem (Editora Assírio & Alvim) e O Grito do Fundo das Pedras (Editora Raphus Press), ambos em 2025.