O caderno de Versão Bilíngue: o lugar da narrativa

(Juliana Ángel-Osorno)

O caderno de Versão Bilíngue: o lugar da narrativa


Juliana Ángel-Osorno

(Migrante, linguista, professora, pesquisadora e escritora colombiana, doutoranda no programa de pós-graduação em Semiótica e Linguística Geral da USP.)




Quantas pessoas criam uma narrativa? Quantas línguas, quantos papéis, canetas, chamadas de vídeo, caminhadas? Quem são? Como se encontram Avital Ronell, Kathy Acker, Stephen Frosh, Peirce, Wittgenstein, David Wills, eu, Jaime Garzón, Marielle Franco, um jogador de futebol, Manuela, Bárbara, Paulo? Talvez a pergunta não precise ser como, mas onde?


O caderno, normalmente visto como um objeto acessório à criação, onde ficam os rascunhos, as versões imperfeitas, os erros, tem se mostrado fundamental para o desenvolvimento da narrativa Versão Bilíngue e é, talvez, um objeto de mais interesse teórico do que a própria narrativa.


Ele é o lugar de encontro e também a metáfora do toque. Nele, coexistem todos eles: teóricos, amigos, colegas, personagens. Mas essa coexistência não é apenas um congregação, uma colocação de ideias, falas, imagens lado a lado. O caderno, como tem ficado evidente no desenvolvimento dessa narrativa, não é uma explicação para ela, embora já tenha tentado ser um mapa, um esquema, um projeto. Versão Bilíngue emerge, entre outras coisas, do que acontece no caderno, todas as falas que se modificam entre si. Gosto de pensar que nos hiatos em que o caderno permanece fechado, um tipo de alquimia ocorre: transferências, mudanças de lugar, metamorfoses, mutações.


Ao mesmo tempo, o caderno é um objeto arqueológico em que é possível rastrear e intuir os diferentes momentos da narrativa e, muito mais claramente, as forças que movem a narrativa adiante em cada momento do seu desenvolvimento. Aqui, vou tentar retraçar esses caminhos e dar algum contorno aos encontros que os nutriram.



Pressupostos: Os fantasmas


O estopim inicial para o desenvolvimento da narrativa foi o brutal assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018. Vindo da Colômbia, e tendo crescido nos anos noventa naquele pais, o assassinato da vereadora pareceu-me um retorno no tempo. Não pude senão lembrar do assassinato do comediante Jaime Garzón em Bogotá em 1999. Dois carros, duas cidades distantes, alguns assassinos de aluguel, muitas balas. No mesmo dia — dois dias separados por quase 20 anos, que eram, de alguma forma, o mesmo dia— o povo cobriu as ruas. Rios de gente ocuparam as avenidas numa espécie de velório vivo, manifesto, repúdio, dor. Alguma coisa de inadmissível tinha sido feita, mesmo em países em que coisas inadmissíveis e horrorosamente violentas são feitas todos os dias.


Assim, a primeira parte de Versão Bilíngue focaliza esse encontro de eventos. Manuela, uma colombiana migrante no Brasil, encontra-se perante a tarefa de narrar os dois dias: um em 1999 em que uma passarela caiu sob o peso de pessoas que queriam acompanhar o cortejo fúnebre do Jaime Garzón, assassinado alguns dias antes. E o outro, nas entrelinhas, em que a cidade de São Paulo ocupou as ruas após o assassinato de Marielle em uma espécie de velório-protesto-carnaval.


Inicialmente, a narrativa se preocupava pelos fantasmas carregados nesse corpo bilíngue, que tentava falar deles em duas línguas, esperando com isso alguma emergência do sentido que se perdia na tradução. O desconforto inicial da Manuela, a protagonista, e de mim, a escritora, tinha a ver com o fato de não conseguirmos falar de alguma coisa que aconteceu perto de nós, mas não necessariamente conosco. O efeito espectral da experiência do espectador.


Stephen Frosh, no seu livro Assombrações: psicanálise e transmissões fantasmagóricas, diz a respeito das gerações de judeus pós-holocausto: “para muitos de nós, se tratava de algo no fundo que assombrava o presente, algo não muito nomeável mesmo que pudéssemos dar-lhe um nome (‘a guerra’, ‘os nazis’, ou depois, ‘O Holocausto’); algo como uma névoa que oscurecia ligeiramente os detalhes do dia a dia, apagando um pouco as cores, infiltrando os cantos e as fendas da nossa imaginação. Não para de aparecer, e é muito difícil lidar com isso: afinal, nós não experienciamos o trauma, então, como poderíamos reivindicá-lo como próprio?” (Frosh 2013, p.2).

Então, a questão que movia a narrativa era essa. Como explicar o inexplicável, pois apenas imaginado? Como falar de eventos reais sem apelar a um realismo impossível, ou a uma análise política engessada? Como dizer das margens dessa violência, dos fantasmas. Ou como disse Freud, como dizer a nova atitude a respeito da morte que é imposta a todos os não combatentes no meio de uma guerra?


Parte 1: O jogo de espelhos


Neurônios espelho: aquela metáfora para explicar por quê o que acontece com outros nos afeta, nos dói. A explicação de que o que acontece aí acontece também aqui. O braço que se levanta de um lado do espelho é a causa do levantamento do braço da imagem refletida. Já dizia Kathy Acker “Tudo que acontece com você, mesmo coisas que acontecem na vida de outras pessoas e você lê, vira memórias suas”.


Brasil-Colômbia então refletidos em Versão Bilíngue e o caderno dividido ao meio. Na linha, na fronteira, a elaboração do indizível. O intuito era o de que, ao contar a mesma história em duas línguas, a realidade se achasse no que se perdia na tradução: leitores hispanohablantes perderiam um pouco da atualidade da vida da protagonista, ao mesmo tempo que leitores lusohablantes perderiam um pouco dos eventos da infância da Manuela, narrada em espanhol. Espelhadas também, a violência da Colômbia em 1999 explicaria e seria explicada pela violência do Brasil em 2018.


A proximidade das línguas, irmãs, também ajuda na reflexão. Assim como a luz, a qualidade do espelho e o ângulo mudam a imagem que se reflete nele, a proximidade e distância entre as duas línguas latinas possibilitaria essa leitura quase idêntica, mas modificada.


Mas, assim como ninguém aguenta se olhar por tempo demais no espelho, deformando-se, mutando, sumindo, assim mesmo veio a crise. O jogo de espelhos era infrutífero, insustentável, puro artifício formal: o livro impossível de ler, porque a escrita-leitura, diferentemente da visão, não é simultânea nem multimodal. A língua exige foco, exclusividade. Quebra-se o espelho, e resta ainda outra superfície reflexiva: o aparelho de televisão.


Parte 2: A TV


Manuela sabe do que sabe pela TV. Manuela criança entendeu a Colômbia através da tela e é uma cena passada no noticiário o que coloca ela na rua, em movimento. Manuela adulta, no Brasil, é jornalista de meio escrito, não tem tevê, não consome tevê, mas isso não a impede de ficar sempre rodeada de imagens: o celular, o computador, a televisão do bar. Manuela compra um aparelho que deixa desligado num canto da sala. A tela preta a reflete e a narra.


Em Trauma TV, Avital Ronell se pergunta se os “eventos” de violência nos Estados Unidos são, em si mesmos, efeitos da mídia. Ela diz: “até que ponto são os assassinatos seriais efeitos de uma televisão serial?” Paralelamente, no documentário sobre a história do cinema na Colômbia Pirotecnia, de Federico Atehortua, o diretor propõe que todo testemunho é um simulacro, e que a câmera de cinema foi muito útil ao projeto de nação, por meio da criação de uma imagem unificada de pais resumida por vezes como: a imagem do guerrilheiro morto.

Marielle e Garzón, mais duas pérolas no colar infinito de imagens de guerrilheiros mortos. Nenhum deles é guerrilheiro, mas como disse Ronell, a imagem cria o evento; a realidade é efeito da mídia. No mesmo ensaio, Ronell se pergunta, qual é a ética dos corpos condenados a derreter na frente da TV?


Se a ética é ação, quais são as imagens que colocam Manuela em movimento? Na infância uma passarela que cai, e faz com que ela saia pela cidade procurando pela mãe, imaginada por ela soterrada sob os escombros da passarela. Na vida adulta, já no Brasil, as imagens do assassinato da Marielle e dos protestos deixam ela apenas imóvel derretendo na frente de um aparelho de televisão desligado e lutando com a tarefa de narrar aquilo que já aconteceu e que se repete, aquele infinito colar de pérolas televisionadas. Perante o pedido de protagonizar a cena, Manuela fica petrificada. Convidada a ser imagem em movimento, vira foto.


Na passagem da primeira para a segunda parte da narrativa, um novo assassinato televisionado ao vivo durante um jogo de futebol é o gatilho para colocar a protagonista de novo na rua. Em um evento improvável, a cena que a Manuela vê casualmente na tevê de um bar, some de qualquer tipo de registro visual. Não há cópias nas redes, não tem registro na tevê. Um fotograma sumiu da história do contato entre os dois países, justamente aquele em que se vê o momento da morte, o evento emblemático da violência. É o retorno dos fantasmas de Frosh que emergem quando o que estava no ponto cego fica evidente: “A assombração cria espectros e altera a experiência de estar no tempo, a maneira em que separamos o passado, o presente e o futuro” (Frosh 2013, p.2).


Manuela então é colocada em movimento, indo atrás daquela cena, de testemunhas do evento, do assassino, da família do defunto. Conhece Bárbara, cônsul colombiana, e no ensejo de mostrar o Brasil para a nova amiga, se vê obrigada a narrá-lo. A versão continua bilíngue, mas a fronteira fica cada vez mais borrada. Palavras que escapam a uma língua e entram na outra, trechos de conversações em portunhol. Aos poucos se traça a narrativa dessa violência indizível latinoamericana, familiar e espectral.


Parte 3: os rios


Neste ponto, o caderno de Versão Bilíngue já é um organismo vivo, multimodal, atemporal, enativo. A cada nova perturbação, ele se modifica, e todos os signos que o compõem modificam seu sentido. Uma cadeia semiótica peirceana sem começo, meio ou fim, infinita e mutante como um rio.


Assim como os rios e os ecossistemas vão construindo seu destino no decorrer do seu percurso, do mesmo modo o caderno de Versão Bilíngue e a própria narrativa têm encontrado um ritmo próprio. É a multiplicação viva que não é cópia, mas criação, nos termos de David Wills. Nele, como nos rios que nascem nas montanhas colombianas e desaguam no mar brasileiro, tudo que cai na água é modificado: a pedra lixada, a folha vira solo, a tora ponte ou obstrução, os corpos memória e dor. Da mesma forma, neste caderno entra tudo e tudo é metabolizado. Às vezes, de semanas de escrita e pesquisa, resta apenas uma frase, um movimento de mão de alguma personagem. As reflexões teóricas, as conversas com os colegas durante a oficina, novas notícias, velhos horrores viram todos atratores desse sistema vivo. Eles puxam a narrativa, mas assim que ela se move em direção a eles, somem, mutam. Todos eles, no entanto, estarão sempre no único caderno de Versão Bilíngue.




ACKER, K. In Memoriam to Identity. Nova Iorque: Grove Press. 1990.

FROSH, S. Hauntings: Psychoanalysis and Ghostly Transmissions. Grã-Bretanha: Pallagrave Macmillan. 2013.

KOCKELMAN, P. Biosemiosis, Technocognition, and Sociogenesis: Selection and Significance in a Multiverse of Sieving and Serendipity. Current Anthropology, v. 52, n. 5, p. 711–739, out. 2011.


KOCKELMAN, P. Semiotic agency. In: Distributed Agency. Enfield, N.J. ; Kockelman, P. ed. New York: Oxford University Press, 2017.


PEIRCE, C. S. (CHARLES S. Semiotica. São Paulo (SP): Perspectiva, 2010.


RONELL, A. (2008). TraumaTV: Twelve Steps Beyond the Pleasure Principle. Em: The Über Reader ed. DAVIS, D. University of Illinois Press. 2008.

WALLACE, D. F. E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction. Em: Review of Contemporary Fiction, 13:2, p.151. 1993.

WILLS, D. Inanimation. Minneapolis : University of Minnesota Press. 2016.