O CHECK-UP
Sandra Acosta
Sandra Acosta
Análises Clínicas
– Sra. Sara Pires de Oliveira Campos.
Quando era menina, Sara se divertia com um nome que era formado de palavras com significados. Campos de girassóis, de cana-de-açúcar, de grama. Oliveira dos mitos gregos, dos frutos que viram óleo e enfeitam pastéis de carne. Pires, um prato casado com as xícaras, do tamanho da fome da Meu bebê. Já Sara era a prática de quem curava, um imperativo a quem estava com catapora, um desejo de resolução de tudo que inquietava por dentro.
Ter nomes inclinados à natureza, às louças ou à cura não a tornou mais interessada nesses temas. Com relação aos hospitais e aos médicos, pior. Preferia a distância, mesmo na ocasião de nascimentos. Para que ver uma mãe exausta e inchada, um pai assustado com a descoberta tardia do que é a paternidade, um bebê que não entende o que é estar neste planeta? Detestava as bulas de remédio, nunca as lia, nem mesmo as que imitavam uma conversa entre velhas comadres: “como o Buscopan gotas funciona, Zuleica?” “Quando o AAS Infantil não deve ser usado, Judite?” “Como devo armazenar o Aspirina, Matilde?”
Sara caminha em direção a um recinto menor do que um lavabo.
– Sra. Sara, é só aguardar.
No recinto sem ventilação aparente, a porta foi fechada atrás de si. Bastou Sara se sentar na cadeira sem braços para que sua perna direita começasse a chacoalhar no ritmo dos segundos. Como distração, vasculhou o espaço em busca de alguma pista do que viria: um suporte metálico para braços, uma mesa de apoio, grades para tubos de ensaio, uma caixa de papelão amarela para objetos perfurantes a serem descartados. Aos seus olhos, aquele conjunto de objetos compunha, praticamente, uma câmara de tortura contemporânea.
Alguém bate duas vezes na porta e a empurra como se interrompesse um sono.
– Sra. Sara, eu sou a Jaqueline e serei a responsável por tirar seu sangue.
“Tirar seu sangue, tirar seu sangue, tirar seu sangue”. A frase se repete na mente de Sara e, a cada vez, era associada a guerras, disputas de irmãos por feudos murados, maridos “feminicidas” em cozinhas. A ideia de uma agulha perfurar a sua pele, ultrapassar o músculo do braço e chegar a uma veia que seria rasgada para extração de um líquido espesso e escuro como um vinho Malbec a afligia desde a meninez. Ver sangue a cada mês nos seus absorventes era diferente, estava mais relacionado a um segredo, ao livramento de um dejeto vergonhoso, um processo natural, porém desprezado por todos e por ela mesma. Já o sangue extraído com uma seringa a lembrava da sua fragilidade, de ser formada de uma matéria prosaica, em movimento em decorrência de um quase-milagre. Um dia qualquer no futuro, poderia imaginá-lo escorrer por um chão laminado e compreenderia que nada mais poderia ser feito.
Jaqueline coloca a luva de látex com a destreza de quem se especializou na sua fração dentro da engrenagem capitalista. A partir do encontro da mão com a luva, partículas de pó branco se espalharam pelo ar e ficaram suspensas em torno da superfície do colete da enfermeira. O barulho da borracha provoca um arrepio desconfortável na nuca de Sara, como quando o ex-marido quebrava, a cada compra de eletrodoméstico, as placas de isopor para descartá-las no lixo.
O branco é todas as cores (colagem de Sandra Acosta)
De um recipiente apoiado na mesa, Jaqueline tira um chumaço de algodão, mais um elemento branco nessa colagem de brancos chamada hospital. Esparadrapos, aventais, paredes, cadeiras, um amontoado de matérias diferenciadas pela textura, pelo cheiro e pela densidade, que guardam em si todas as cores, mas que, ao olho tedioso, causam apenas mais tédio. O chumaço é embebido em um líquido cujo cheiro desperta as narinas de Sara. Com o algodão, a mulher pretende espalhar o álcool pela dobra de seu braço, mas Sara sente que o chumaço está seco. Ela se inquieta com a ideia de que as bactérias, as amebas e os vírus ali presentes ainda não foram mortos. Provavelmente, essa foi a causa-raiz da morte da Tia Luzia, uma pobre coitada que foi tratar uma pedra no rim e...
– Dona Sara, pode verificar seus dados, por gentileza?
– Sara ... Campos... abril...1973... 303.362...Tudo certo.
A enfermeira mexe em tubos de ensaio e coloca adesivos com o nome de Sara em cada um deles. Jaqueline envolve o braço esquerdo da paciente com um elástico azul preso por um fecho ajustável, o que a deixou saudosa das borrachas de outrora, do seu avô que fazia bonecas de espiga de milho para ela e estilingues com tripas de mico para seu irmão, de passarinhos selvagens, de casas com papagaios, de gaiolas e quintais com caquinhos terracota.
A pressão no braço faz a atenção de Sara voltar para seu braço e como as aulas de pilates só deixam os braços definidos na Madonna. Pensa que a solução seria a faca ou, no caso dela, a morte.
– Você fica nervosa com agulhas, Dona Sara?
Fico nervosa com o passar do tempo, com meus braços caídos, com o excesso de plásticos no oceano, minha filha. Das agulhas, tenho pavor, pensou Sara enquanto dava um meio sorriso e secava as mãos na calça de helanca.
Sandra Acosta é graduada em Economia pela UNICAMP, é mestra em Economia da Inovação pela UFPR e trabalhou por doze anos no mercado financeiro até se dedicar totalmente à escrita. Hoje é escritora, mentora de escrita, colagista e roteirista de podcasts. Cursou o Mestrado em Escrita Criativa na Universidade de Coimbra, e foi aluna-ouvinte no Mestrado em Escrita Criativa da University of Roehampton, em Londres. Publicou dois livros: Pra que varanda se a vista é feia? (Editora Letramento, 2021) e Poemagem: poesia e colagem pra viagem (Editora Arpillera, 2023). Teve seus trabalhos em colagem expostos em Londres, na The Holy Art Fair (2023). Roteirizou, produziu e apresentou cinco podcasts, dentre eles o podcast narrativo Um Grande Dia para as Escritoras. Tem se dedicado à escrita do 3º livro, às oficinas de escrita, a uma newsletter semanal (Um livro é uma colagem, no Substack) e um podcast quinzenal (Clube do Livro Curto, em parceria com o Jornal Nota). Divulga seu trabalho no perfil do Instagram @sandramtca.