Linda
Linda tem uma rotina que comporta, perfeitamente, trabalho, marido, filha e cultos toda terça, sexta, sábado e domingo. Na igreja, aprendeu que a vontade de Deus nunca deve ser questionada, desde coisas simples, como a chuva que cai inesperadamente e acaba com o trabalho de horas lavando roupas, até situações mais graves, como a bofetada que levou do marido ao chegar bêbado em casa. Ao comentar o ocorrido com as colegas da igreja, ouve: “Isso é coisa de homem”, “Homem é assim mesmo”, “Ora que Deus vai curar ele da bebida”. Contudo, mesmo com as orações de Linda, a situação se repetia.
Escola
Parado, olhando pela janela da sala de aula, João observa as várias imperfeições do colégio onde trabalha: vê a porta sem trinco, o ventilador que não funciona e a janela emperrada que não abre. O silêncio da sala é interrompido por um aluno que o chama com dúvida sobre um dos 30 exercícios de fixação que ele passou. “Pessoal, é importante fazerem uma bateria de exercícios para fixar bem o conteúdo; esses predicativos do sujeito e do objeto são cobrados no vestibular”, diz o professor, tentando justificar o sentido daquilo, mas, na verdade, ele só queria um pouco de descanso do monólogo que faz todo santo dia sobre as classes gramaticais e as variações dela na análise sintática, ou sobre as escolas literárias e seus contextos históricos.
Mais uma vez o silêncio da sala é quebrado: “E aí, professor, na moral, a gente não vai usar isso na nossa vida. Pra quê tudo isso, então?”
Quando esse tipo de pergunta surge, João nunca sabe como responder. A resposta acaba sendo um “faça a atividade sem perguntas ou ficará sem nota”. Para falar a verdade, ele também não sabe; ele mesmo não usa. “O que devo responder?” pensa. “Deveria achar algum argumento que justifique a importância das análises sintáticas.” Toma seu café e começa a corrigir as atividades.
Linda
Linda veio da Bahia para São Paulo com o objetivo de trabalhar, e trabalhou. Aos 14 anos já tinha responsabilidades no mercadinho Bom Baiano. Precisava chegar às 5h30 para iniciar a limpeza, pois, quando o mercado abrisse às 6h, tudo já deveria estar limpo. Enquanto subia no ônibus, dava bom dia e não era respondida. Pensava: “Essa galera do sul é de uma arrogância. Será que sabem que a riqueza do estado foi construída pela exploração da mão de obra nordestina?” Refletia: “Bom... de qualquer forma, dinheiro não compra ar limpo e muito menos o tempo perdido no trânsito.”
Enquanto vai para o serviço, vê o anúncio de um candidato a prefeito: “Iremos implantar ensino técnico em todas as escolas públicas.” Pensa: “Quanto menos literatura, história e filosofia, melhor para garantir mão de obra qualificada e manter os ricos mais ricos.”
Escola
Bate à porta da sala de aula de Júlia.
“Júlia, bom dia, tudo bem? A Silvana pediu para te avisar que a sua reunião com ela foi antecipada para às 8h55, ok?”
Júlia acena, confirmando. Pensa: “Que saco! Estou com uma pilha de provas para corrigir. Será que ela não entende que é final de bimestre?”
“Olá, Silvana, bom dia. Como vai?”
“Vou bem, Júlia. Preciso ser direta. Você consegue organizar uma atividade para o Dia das Crianças com os 6º anos?”
“Acho que sim. Você tem alguma sugestão do que pode ser feito?”
“Não pensei em nada, mas sabe que aqui na escola não é permitido mencionar religião católica, umbanda, candomblé ou qualquer outra religião que não seja a nossa, né?”
“Sim, eu sei.”
“Ótimo! Pode ir para a sala dos professores. Preciso da atividade para amanhã, ok?”
Ao chegar em casa, Júlia acende um cigarro e faz um café. “Preciso entregar as notas sexta-feira e preparar uma dinâmica para as crianças amanhã. Ai que merda!” Olha o calendário para se organizar minimamente. “Acho que vou prestar o vestibular novamente e pensar numa área em que eu possa trabalhar em home office.” Quando começa a corrigir as provas, uma oração coordenada sindética adversativa parece persegui-la: “Ele queria sair cedo, porém estava chovendo.” A frase cresce, tornando-se gigantesca. Júlia corre, e o chão desmorona sob seus pés, até que cai em um pula-pula imenso. Sente um breve alívio, mas o pula-pula começa a afundar, afundar tanto que sente como se estivesse se afogando. Consegue, então, se desprender. Ao correr, ouve alguns barulhos; uma série de zumbis corre atrás dela, e ela distingue falas como “usar isso...??” “em nossas vidas...??”
Linda
Linda chega do trabalho exausta: 8 horas de serviço, com 1 hora de almoço e 20 minutos para o cafézinho, deixam-na esgotada. Até as 2 horas no ônibus, que poderiam ser de descanso, não são. Assim que chega em casa, sua segunda jornada começa. Vai recolher as roupas que o marido joga no chão e lavar toda a louça novamente, pois Luiz faz as tarefas domésticas mal feitas para que Linda não peça ajuda novamente. Ao terminar, Linda se organiza para dormir, mas antes senta um pouco no sofá para assistir ao jornal. Quando Bonner fala, ela ouve a palavra “equívoco” e pensa: “Tantas formas de dizer que erraram a notícia, e ele usa ‘equívoco’... é muita falta do que fazer. Existem tantas palavras mais fáceis para usar num jornal.”
Escola
Júlia acorda, toma banho e passa um café. O atraso não permite que termine seu cigarro. Caminha até o ponto de ônibus. Chegando ao colégio, entre uma aula e outra, verifica os e-mails para checar se há mais pedidos de atividades a entregar. Ao pegar o ônibus de volta, pensa: “Será que alguém realmente gosta de trabalhar? Não é possível que alguém goste desta merda. É coisa desse sistema exploratório, tenho certeza, eles precisam de uma justificativa para explorar nossa mão de obra, ‘trabalhe com o que ama e nunca precisará trabalhar na vida’... nunca ouvi tanta merda. O certo seria ‘trabalhe com o que ama e passe a odiar as poucas coisas que lhe dão prazer.’ Ao chegar em casa, passa um café e começa sua segunda jornada não remunerada.
Na sexta-feira, Júlia chega do colégio. Foi um dia horrível, como todos os outros. Para ‘comemorar’, abre a garrafa de vinho mais barato que encontrou no mercado. Com o efeito da bebida, lembra-se da frustração que carrega: “Tudo o que fiz é medíocre. Parece que isso nasceu comigo. Achei que poderia mudar algo na educação, mas o que consegui foi um burnout e ansiedade. Falhei comigo mesma e não consigo me mover contra esse sentimento de mediocridade.” Acorda, toma banho, passa seu café e sai sem terminar o cigarro. Ao ver que são 7h15, inicia a primeira aula do dia: “Hoje falarei sobre Literatura Africana de Língua Portuguesa com o 3º ano.”
“Bom dia, galera! Tudo bem?” Alguns responderam, outros, não. Enquanto liga o datashow, eles conversam. Afinal, para que serve a Literatura? O pai de um deles fez até a 4ª série e é empresário, e o aluno se gaba disso. Começo a aula, e o aumento no tom de voz da turma é nítido – acho que minha voz estava atrapalhando a conversa deles.
Linda
Com a filha um pouco maior, Linda decide que ter mais um filho é uma boa ideia. Após alguns meses, sente as dores do parto e corre para o hospital. Vitória nasce: surda, muda e sem os rins; nasce morta. Meses antes, Linda havia recebido um comunicado médico informando que o feto não sobreviveria ao parto devido a uma má-formação dos rins e que o caminho mais viável seria interromper a gestação. Linda se recusava: “É minha filha, não é um feto. Eu a amo, e Deus vai operar um milagre.”
Os membros da igreja incentivaram essa escolha, dizendo que Deus mandaria um milagre e que ela devia seguir Seus planos. Após o enterro, os membros da igreja desejavam-lhe pesares. Linda esperou por um milagre que não veio; o deus para quem tanto orou nada fez para ajudá-la. Curiosamente, depois do ocorrido, Linda ficou ainda mais devota.
Escola
João conseguiu alguns dias de folga após trabalhar dois domingos como mesário. Fez e refez alguns orçamentos para uma possível viagem, mas os 5 dias que passou em São Sebastião ainda estavam sendo descontados na fatura do cartão de crédito. Decidiu que ficaria em casa mesmo, e no máximo iria a um parque ou assistiria a um filme. No entanto, João sempre pensava e repensava antes de sair, pois as duas horas de um filme ou o esforço para apreciar uma obra de arte o deixavam caindo de sono. A verdade é que suas 64 aulas o deixavam extremamente fatigado, mas ele ainda não podia abrir mão de nenhuma delas, pois estava tentando reduzir as parcelas do apartamento que comprou na Avenida Paula Ferreira, divididas em 30 anos.
Linda
Era de manhã quando Linda acordou metamorfoseada em um "monstro" — olhou-se no espelho e notou a presença de seios, cabelos longos, unhas decoradas, cílios imensos. Linda ainda era jovem e tinha uma vontade imensa de destruir o patriarcado, mas os sintomas da depressão surgiram cedo e facilitaram a lavagem cerebral que fizeram nela, convencendo-a de que Deus cuidaria dos sentimentos que a atormentavam. Depois da morte de Vitória, os sintomas da depressão retornaram; todos os dias, ela acordava cedo, orava por horas e depois voltava para a cama para dormir, passando a maior parte dos dias assim. Quando melhorou, Linda começou a encher a casa de flores e ornamentos relacionados à sua religião. Intensificou as idas aos cultos e passou a frequentar uma igreja diferente todos os dias. Quando estava na casa do Senhor, cantava as músicas em volume altíssimo e com os olhos fechados. As pessoas que frequentavam a igreja começaram a achar aquilo estranho.
Escola
Segunda-feira chega, e a tristeza de começar a semana já se insinua desde o domingo à noite, com a voz de Faustão ecoando na TV. Júlia acorda um pouco mais cedo desta vez e começa a se arrumar, mas sente uma palpitação inesperada no coração. O corpo começa a tremer sem controle, e de repente é surpreendida por uma falta de ar intensa. Ela se senta, tentando se recompor, mas os pensamentos acelerados a impedem de relaxar. "Hoje é dia de aplicação de prova; não posso faltar, vou perder o emprego se isso acontecer. Se eu perder o emprego, não vou conseguir pagar o aluguel, vou passar fome, e ainda vai sujar meu currículo... nunca mais vou conseguir trabalhar em um colégio." As sensações não param, e seu coração parece prestes a explodir de tão acelerado. "Não tem jeito, vou precisar ir ao médico. Vou mandar uma mensagem para a Silvana explicando que não vou conseguir ir hoje e que as provas estão dentro do meu armário."
Linda
Luiz desempenha bem o papel de homem, sendo assim, ele grita, ameaça e faz tortura psicologica com Linda, mas tudo fica bem quando para se desculpar ele leva bombons e flores para ela. Enquanto está na igreja finge ser um ótimo pai e marido excelente. Quando em casa, exige que Linda faça seu prato e tire seus sapatos “trabalhei o dia inteiro, é o mínimo que você pode fazer, eu que sustento essa casa”. Então Linda coloca seu prato de comida, mas antes de levar até ele cospe em seu prato e fala “cuspe sagrado”. Luiz então se delicia com sua janta cheia de cuspe sagrado.
Escola
João, em suas aulas, não podia mencionar sobre seu companheiro, com quem compartilhava a vida, era as normas do colégio protestante onde trabalhava. No entanto, isso servia mais como uma justificativa velada para evitar acusações de homofobia. Os alunos frequentemente perguntavam sobre sua vida pessoal e, nos corredores, ele ouvia comentários sobre sua sexualidade, acompanhados de risadas e deboches. Na sala dos professores, era possível perceber os comentários homofóbicos do professor de Matemática, além da evidente afinidade nas opiniões de seus colegas de Educação Física e Inglês.
Linda
Linda passou o dia inteiro orando e chegou em casa exausta. Desde a morte de Vitória, abandonara o emprego para se dedicar exclusivamente à vida religiosa. Seus dias agora se resumiam a orações e visitas frequentes às igrejas, o que já deixava Luiz extremamente irritado. "Como ela ousa abandonar a família e a casa para se dedicar a uma obsessão?", ele pensava, cada vez mais frustrado.
Certa vez, enquanto lia a Bíblia, Linda se deparou com o trecho de Levítico 20:10: “Se um homem cometer adultério com a mulher de outro homem, tanto o adúltero quanto a adúltera terão que ser executados." Ao ler essas palavras, sentiu como se fosse Deus falando diretamente com ela: "Linda, você entende por que escolhi você, não é? Você sofreu muito nesta terra, então eu a escolhi para fazer com que ele pague pelo pecado cometido." Essas palavras ecoavam na mente de Linda, que, convencida de que era uma missão divina, começou a planejar a morte do marido da maneira mais "sagrada" possível.
No dia escolhido, Linda saiu cedo e comprou uma variedade de flores, enchendo a casa com o perfume delas. Preparou cuidadosamente o pão e o vinho para servir ao marido quando ele chegasse do trabalho, em uma tradição que costumavam seguir nas Sextas-Feiras Santas. No entanto, desta vez, ao vinho ela adicionou algumas gotas de cianeto. Com tudo preparado, esperou por Luiz, pronta para dar fim ao plano que acreditava ser uma missão sagrada.
Júlia
Júlia chega à escola logo cedo, não teve tempo para preparar sua aula de acordo com a apostila da escola. Para não deixar a turma sem fazer nada, inicia a aula com um RAP. Quando coloca Racionais MC’s A Vida é Desafio, ganha uma atenção inesperada dos alunos. Um deles comenta:
— E aí, prô, a senhora gosta de Racionais? Ouço essa música todos os dias vindo para a escola.
Júlia, então, pergunta o que eles querem fazer quando saírem da escola.
— Quero ser jogador de futebol.
— Medicina, prô.
— Perito criminal.
— Quero fazer o que me dê dinheiro — solta uma gargalhada.
Ao notar a empolgação dos alunos, Júlia se lembra do seu tempo na faculdade. Fez Letras na Universidade de São Paulo e recorda: "Eu adorava ouvir rap e funk, mas isso é coisa de favelado. Agora, na faculdade, tenho que mostrar que mereço estar lá, os livros que li... até li em francês, faço curso de inglês. Com certeza isso vai me fazer sentir um pouco mais próxima da classe média paulistana."
Quem dera fosse só isso. Faltaram as oportunidades que eles tiveram. No primeiro rolê com os colegas da faculdade, sentiu a desigualdade de ser uma menina periférica ingressando na universidade. Seus colegas tinham mais em comum entre si do que com ela. As conversas eram sobre as leituras que fizeram e suas viagens para a Europa e a América Latina. Notava as palavras em inglês que seu nível intermediário não conseguia acompanhar. Nesse momento, sentiu que não pertencia àquele lugar. Sentia-se como Macabéa, naquele ambiente, sua presença parecia uma ridicularização dos modos como viveu e dos lugares que frequentava.
Júlia achou graça. Lembrou da irmã Francisca, da igreja que sua mãe frequentava, que sempre dizia o quanto ela era inteligente.
— Ela faz faculdade na USP — sua mãe enchia a boca para falar, comentava com todos os conhecidos.
"Se eles me vissem agora, duvido que pensariam da mesma forma."
Foi quando a aula acabou e uma aluna se aproximou da sua mesa:
— Obrigada pela aula, prô. Foi muito boa.
João
Logo que saiu da graduação, João começou a trabalhar. Já faz 14 anos que lecionava no mesmo colégio. Quando iniciou o curso de História, já não era tão jovem — era assim que pensava. Começou a faculdade aos 30 anos, decidido a mudar, ainda que um pouco, o destino que o esperava.
Nesse período, conheceu seu atual companheiro. No início, só deram uns beijos, mas, depois da graduação, seguiram caminhos diferentes. Seu parceiro foi fazer um intercâmbio na Austrália, enquanto João ficou para dar início à sua vida como professor.
O parceiro voltou e iniciou seu mestrado. Os dois voltaram a se encontrar e decidiram compartilhar a vida juntos. Todas as vezes que João combinava de sair com o parceiro e os colegas do mestrado dele, sentia-se péssimo. Nunca sabia que tipo de assunto puxar na roda, sentia-se envergonhado e um pouco intimidado por aquela galera. Havia um misto de raiva, mas também compreensão: sabia que eles não eram culpados por ele ter seguido outro caminho que não o da vida acadêmica.
Quando um dos colegas de seu parceiro resolveu puxar assunto, João tentou manter a conversa:
— E aí, o Félix me falou que vocês se mudaram recentemente.
Quando João começou a mencionar que se mudaram para a Avenida Paula Ferreira, o colega desviou a atenção para outro assunto que surgia na roda.
Eu poderia dizer que a noite terminou bem depois de algumas cervejas, mas a verdade é que João passou a semana deprimido, pensando que poderia ter estudado mais, seguido uma pesquisa ou até juntado todas as suas economias para passar pelo menos uma semana na Europa — ao menos para ter uma experiência parecida com a deles. Com o decorrer da semana desgastante e estressante, João foi, aos poucos, deixando essa experiência desagradável para trás.
Imagem: Chuvas fortes continuam até o fim de semana em todo o Brasil. 2024. Disponível em: https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/brasil/chuvas-fortes-continuam-ate-o-fim-de-semana-em-todo-o-brasil
Imagem: Hélvio Romero. Pedestres caminham pela Avenida Paulista, fechada para veículos. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/06/prefeitura-de-sp-oficializa-fechamento-da-av-paulista-aos-domingos.html.
Thays Barbosa Borges da Silva é formada em Letras – Francês pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), professora de Língua Portuguesa e Literatura, mestranda em Literatura Comparada pela UNESP e graduanda em Educomunicação na Universidade de São Paulo (USP). Interessa-se por representar a vida humana em toda a sua pluralidade e complexidade, explorando as múltiplas dimensões do ser e do existir.