CASA.CORPO.CIDADE

 Parte 2 

(Amélia Loureiro)

A CIDADE É O CORPO. [1]

 O corpo é aquilo que entrelaça, abre, se vulnerabiliza, compõe, age nos outros corpos em si; na cidade, na casa, no cosmo; o que é singular e multidão; cultura e natureza; o que intensifica, interfere, interrompe, suspende, atua em campos de forças, produz saber via conexão hipervetorializada.

"O que queremos, mais do que tudo, é fundar um plano de imanência radical, sem espaço algum para a transcendência. Um plano completamente novo, passível de ser povoado por novos afetos. Um espaço onde os conceitos habitem em plena potência, um platô pleno, consistente." [2]

O corpo de tudo e todes quer (re)tomar para si a posse do seu existir próprio e comum. Em participação na sociedade para além da simples comunicação, um certo ativismo sem nome e de corpo inteiro aplica nas rotinas diárias  certos conhecimentos teóricos e inscrições próprias da arte e da filosofia. Porque, como sinaliza Guattari, é mais que urgente ir além da simples comunicação.

 

Nos eventos primeiros do Século XXI foram as multidões, em levantes pelo mundo a partir de 2008, em especial no Egito, Espanha, EUA, Chile e no Brasil que, –– em configurações intensivas entre corpos, cidades, redes sociais, todos como dispositivos maquínicos de conectividade e ação ––, apontaram para novos desdobramentos no planeta de um urdir que se quer herético no seu desejo de forjar modos de viver carregados de máxima potência.


No Brasil em 2013, a mobilidade urbana foi a força propulsora desses acontecimentos. O intensivo caminhar juntes nas ruas é o ato de se dar o acesso à cidade. Esse modo de atuação parece estar em pesquisa, enquanto quer galvanizar interesses amplificados na linguagem do livre movimento, do agir com o corpo todo –– com o outro –– e robustecer a disposição infinitamente nascente para atuar e decidir na rede de infraestrutura urbana. Nessa hora não há mais quem queira terceirizar o seu cotidiano, este custo super alto ao rebaixar todas as instâncias do vivido. Em companhia, realizar trajetos a pé nas rotas dominantes para automóveis, e nessa ação em comum retomar a "cidade para as pessoas" (Jan Gehl). A cidade que não é planejada prioritariamente para os carros, mas que é feita por quem mora nela, da forma como se pensa/habita a casa: há esse desejo, há as composições dos encontros via planetária, o pensamento em miríades de frescor que se fabrica e se espraia ao se viver. Enquanto viralizam as suas demandas e realizações nas ruas, nos encontros e assembleias nas praças, todas e todos parecem afirmar sua prontidão para continuamente ocupar a cidade e o corpo. Enquanto rechaçam para si a função social de usuários e consumidores como a única possível, esta que faz desaparecer as singularidades vivas.

 

Como acontecimento de forte impacto desses levantes, a informação passa a ser exercida de variados loci, perspectivas e vozes, ao trazer para o campo de atuação na imprensa uma abertura inédita de participações,  agentes não corporativados "cobrindo e transmitindo ao vivo os protestos;  ganhou visibilidade no contexto das manifestações e trazendo abordagens que a mídia tradicional não alcançava." [3] 

Em 15.12.2016, é promulgada a PEC do Teto de Gastos do Temer, que congela por 20 anos os gastos públicos em educação, saúde, e estabelece que o limite para os recursos sociais seja referente aos valores mínimos aplicados naquele ano. Temer defende ainda a reestruturação do Ensino Médio por meio de medida provisória, sem pesquisa e debate na sociedade, nem com os estudantes. A MP da Reforma do Ensino Médio é sancionada em fevereiro de 2017. Esses fatores levam os secundaristas a ocuparem as escolas públicas do Brasil todo. Os estudantes ocupam, então, as escolas públicas com seus corpos sem uniformes. A escola ocupada vira a casacidade em processos singularizantes onde todo e cada ato é vetor de ensino e aprendizagem por se dar ali naquele contexto, em criação e mutação de hábitos coletivos e mentalidades. Banheiros sem placa de sinalização de masculino e feminino; varal no pátio/quadra para as roupas de vestir e dormir; a limpeza dos cômodos da escola pelas mãos de quem faz uso deles; as listas de necessidades para a força fabril; os jogos, as canções em círculo; as escolhas sobre o modo de conviver com outros tantos agentes em relação com o que se dá dentro e fora da escola. Os encontros dinâmicos, reuniões sobre os acontecimentos dos dias: no miudinho, tudo procura e recebe avaliação e projeto. Todas as atividades existenciais pulam para dentro da escola que se pretendera unicamente acadêmica, e o dia a dia é laborado em experimentação autogestionada. Sem hierarquia, o saber comum emerge, mexe, transmuta o espaço institucional em território de fluxos intensivos de práticas e afetos. E tudo já se torna e pode ser a própria educação que se quer.

 

Esse modo insurrecional de gerar novas maneiras de viver é o "que produz o seu povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real entretanto desaparecidas." Assim, revela o Comitê Invisível (2016:36), – autodenominação de um grupo de pensadores e ativistas sediados na França –, no seu livro-torpedo Aos nossos amigos: crise e insurreição, lançado em 2016 no Brasil pela n-1 edições (editora crucial para mapear, produzir e lançar pluralidade de pensamento na contemporaneidade brasileira).

 

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Hoje parece estar em estado de hibernação esta capacidade para rachar com modos de vida e visões políticas que não dão mais conta do presente e permanecem como zumbis à luz do dia, mais ferozes e mais estúpidos quanto mais próximos estão de suas tumbas autolacradas automaticamente à chegada do hóspede iminente.

 

Importante trazer agora o pensamento de Furio Jesi, que uniu revolta e tempo histórico; um erudito que viu sua pesquisa e produção guinarem por viver os levantes de Maio de 68. Em SPARTAKUS Simbologia da Revolta, ele afirma:

A revolta é suspensão do tempo histórico. Mas essa suspensão permanece um intervalo isolado: depois de seu fim cruel, o dispositivo normalizador volta a funcionar (...) são, na realidade, oposições colaborativas. É preciso, portanto, esconjurar seu jogo, que separa e isola a revolta da história. (...) nos poetas um 'ouvido' particular: "'Ouvido significa também aqui um vibrar juntos, ainda mais, expandir-se juntos”. (Jesi, 2018: 26-27).

A força viva dessas experimentações multitudinárias parece estar em estado de captura em vários graus pelo capital mundializado: a sempre mais recente e mutável forma da verdadeira governança que se organiza como natureza, mimetiza o desejo e se faz passar por ele no corpo de cada habitante do planeta. É o produtor de apartheids onde quer que haja empreendimentos; de desnutrição que simula os alimentos na gôndola; da pobreza em grandes e crescentes extensões no lugar do dinheiro. Que se camufla de infraestrutura na cidade e no campo; em conglomerados transnacionais de publicidade e informação; nas áreas de entretenimento e arte, educação, saúde, alimentação; como empresas incorporadoras imobiliárias e construtoras; o sistema bancário; as grandes indústrias de armamento e de seguridade; as farmacêuticas, mineradoras, o agronegócio monocultural, etc. Tudo está à parte.


Ao Estado cabe gerir e dar garantia às condições de produção do capital. A tudo imposto dá o nome de segurança: a perpetuidade do medo em calibragens cíclicas e urgências continuadas na administração não mais das causas, mas apenas dos efeitos; a sua desconfiança e o controle da população com a sua polícia e os aparatos de identificação mais e mais "cientificizados", tecnicizados e cindidos, apartados das identidades, como aponta Giorgio Agambem na palestra pública em Atenas em novembro de 2013.

...desde setembro de 2001, parece ter substituído qualquer outra noção política: segurança. Como sabem, a fórmula “por razões de segurança” opera hoje em todos os domínios, da vida cotidiana aos conflitos internacionais, enquanto palavra-chave de imposição de medidas que as pessoas não teriam motivos para aceitar [4].

Com o jurídico e com tudo, tantas variantes de pactos, sempre à parte, não há mais como falar em democracia.    

 

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Porém, é nos encontros que está a potência dos devires, como afirma o Comitê Invisível:

Eis o que é bem menos espetacular do que “o movimento” ou “a revolução”, mas mais decisivo. Ninguém poderá dizer daquilo que um encontro é capaz.

É desta forma que as insurreições se prolongam, molecularmente, imperceptivelmente, na vida dos bairros, dos coletivos, das ocupações, dos centros sociais, dos seres singulares, no Brasil como na Espanha, no Chile como na Grécia. (Ibid. 36)

Sempre que forem exercidos, e sempre a cada vez, é no "campo das intensidades dos encontros"[1] onde haverá atualização de potência. Observável se torna uma dinâmica de acontecimento a provocar diferenciações propícias para a recepção e consecução de maiores e mais qualificadas cargas de voltagem implicando os sentidos de afetar e ser afetado. Pois este é o poder e o estilo do vivo, sua atuação indizível e imprevista nos corpos presentificados de quem age. Como potência que é, atua nos corpos e pensamento de forma herética: um dos termos usados por J.P. Schiavon para se referir ao "inconsciente pulsional", este conceito apresentado por ele na sua obra Pragmatismo Pulsional – Clínica Psicanalítica.

 

Que o sumo do tempo passado no virtual em estudos, pesquisas e coletividades em redes, esteja indissociável de um ativismo, isto é: de um fazer investigativo/propositivo/estético-relacional. Através de encontros presenciais pequeninos e enormes, instalar no corpo da cidade este imenso repertório captado em várias fontes: para que se possa, como diz Rimbaud, "ser absolutamente moderno" e assim encarnar o que se pensa, imagina, intui, sente, deseja.


Essa contínua invenção dos corpos nas cidades, a retinir altamente por se apresentar como modo de vida, tem a verve necessária para seguir implodindo de dentro do cotidiano os niilismos imagéticos dos papéis sociais. Em aprontação ininterrupta/mínima, um supra-cotidiano para conviver.

CASA. CORPO. CIDADE.

                                                     

O projeto é estar presente enquanto a ação de falar serve a esta mesma abertura para o agora que me trouxe até aqui. Um processo artesanal dá  lugar à autoescuta, à escuta do outro.

 

O que se passa?

O que se passa?

 

Em todas as nuances desta pergunta, salta o espanto ao se dar conta de como os recursos se tornaram insuficientes para compreender o que se passa em um tempo anômalo, situado entre um antes e um depois da pragmática do progresso (legado do século XX, end of the future, para Bifo, just now). Em nossos corpos e no mundo, dá sim, para perceber a disfuncionalidade que barra concepções de futuridade desprogramadas da pauta tecnoindustrial desenrolada até hoje e em agonia geral. Enquanto em nossos corpos e no mundo também dá para perceber uma outra via atuante, inominada tantas vezes,  que permite mais e mais acesso (em graus/qualis responsivos à afirmação de um experimento continuado):

com o fim da duração, o fim do Futuro, a destruição absoluta, eis que se abre para todos o pórtico do Instante. E dentro da situação desesperadora revela-se o presente da vida, criador de imprevisíveis e inesperadas mutações. (Santos, 1989: 93-94).

Como escutar o que nos acontece a partir da permissão interna para os  novos céus e as novas terras? Como nos deixar ser campo de entrelaces velozes, nos metamorforsear em aliança, estar entre temporalidades expressivas a partir do presente esplêndido anunciado por Rimbaud em Uma temporada no inferno & Iluminações? Sob a luz desse agora, qual o modo das esferas do vivido se transmutarem como força viva que avalia, retifica, fusiona e singulariza?

 

Visionarismos parecem espreitar quem se alia à gana do viver.

Quais agenciamentos são inaugurais e necessários?

 

* Criar novos modos de vida a partir de uma perspectiva galáctica/cósmica?

 

* Estar abertos para eventos que não aguardamos por causa da sua qualidade inédita?

 

* Dos encontros, deixar suscitar em mim e no meu dia a dia, o aparecimento e o contágio de virtualidades raramente expressas?

 

* Começar a usar formas de expressão mais profundas da pele, mais sutis, inexploradas; desdobrar os céus nas línguas exponencialmente microemergentes; suspender pressupostos; buscar no que está vivo em mim e no outro a orientação para o dia a dia?

 

                                                        *

 

A nossa pequena casa hoje é Laniakea.

A Galáxia da Via Lactea, bairro periférico onde habitamos.

Nossa célula, a cidade.

Nosso sopro, a nossa morada de tijolos.

 

A extensão do corpo de cada um de nós é, cada vez mais, um mistério que se amplia incessantemente.

Amélia Loureiro

CASA.CORPO.CIDADE. Parte 2

SP. 2019 - 2023

Bibliografia

  

GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo, Perspectiva, 2013.

 

INVISÍVEL, Comitê. Aos nossos amigos: crise e insurreição. Trad. Edições Antipáticas. São Paulo: n-1 edições, 2016.


JESI, Furio. SPARTAKUS Simbologia da Revolta. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: n-1 edições, 2018


LAMPUGNANI, Marco, por GUTIÉRREZ, Bernardo. a eRa aDHOCRATA. Revista Select. vol.07, agosto/setembro 2012.

 

MACLEAN, Dorothy. A Comunicação com os Anjos e os Devas. Trad. J. Martins. São Paulo: Pensamento, 1980.

 

NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Império. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

 

RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno & Iluminações. Trad. Ledo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

 

SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

 

SCHIAVON, João Perci. Pragmatismo Pulsional – Clínica Psicanalítica. São Paulo: n-1 edições, 2019.

 

Outros:

 

www.razaoinadequada.com _ Produção de conteúdo independente sobre filosofia. Rafael Lauro e Rafael Trindade.

 

www.politize.com.br/por-que-junho-de-2013-marcou-o-brasil/

 

https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/

[1] Esta é a Parte 2 de CASA.CORPO.CIDADE. em versão atualizada do texto originalmente apresentado como uma comunicação no Colóquio "Transdisciplinaridade Viva: experimentações políticas e culturais no contexto da mundialidade", em "Diálogos sobre Escrita Narrativa – Sexualidade/Mundialidade/Travessias conceituais" (FFLCH, Universidade de São Paulo). 2019.


[2] www.razaoinadequada.com _ Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia? Produção de conteúdo independente sobre filosofia. Rafael Lauro e Rafael Trindade.


[3] www.politize.com.br/por-que-junho-de-2013-marcou-o-brasil/ 


[4] https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/


[5] Conceito do filósofo Luiz Fuganti, atualização e desdobramento da Ética de Spinosa.


Publicado em: 08 dez. 2023.