A Canteiros Calaári é a mega e única corporação estatal composta por um aglomerado de ongs e orgs, todas provenientes de uma simples cadeia hereditária que se estende no comando dos alastramentos demográficos que definem o território nacional. Um mercado consolidado, imensa rocha formada por enrugamentos econômicos de um país com dimensão continental.
Canteiros Calaári, o maior empreendimento do Brasil. Por motivos talvez óbvios, concentra-se no estado de São Paulo. Inclusive, a parceira da corporação que adquiriu a casa da família Escarabeus das mãos de seu último descendente, Escaravelho, chama-se Imantação Paraíba, ao lado de muitas outras ongs e orgs parceiras que formam o aglomerado continental Canteiros Calaári.
Print de cena do filme Nova Dubai, de Gustavo Vinagre
Fúlvio, conhecido como “Fulvião, o mestre enxadrista” pelos colegas da recém-deixada Faculdade de Engenharia, por ocasião de sua formatura no ano passado, o que lhe salvou do jubilamento, é o mais novo estagiário do senhor Subsidiário. Ele prepara os arquivos para enviar o contrato de compra do imóvel para o e-mail de Escaravelho.
Após atravessar a ponte metálica sob a qual dormiu noite passada, o último dos Escarabeus passa, sem saber, ao lado do escritório onde Fúlvio, o mais novo estagiário do senhor Subsidiário, despacha contratos. Talvez o documento de venda da casa tenha sido enviado para o e-mail de Escaravelho no mesmo momento em que ele atravessava a avenida diante do edifício Imantação Paraíba sem mais reconhecer a cidade. E muito menos imaginou que dali daquele prédio de vidro espelhado foi feita a ligação de oferta da Canteiros Calaári.
Fala-se com pessoas por chamadas telefônicas, e-mails e as mais variadas plataformas de trocas de mensagens, acreditando que elas estão longe, muito longe. Jamais do outro lado do rio que povoou seus sonhos e memórias ao longo da vida, desde a mais distante infância, e que já não tem mais nada daquele rio, só um infindável caudal, contínua corrente negra em torno da qual, desde suas margens e curvas, espalham-se acampamentos humanos.
Após andar o dia todo, Escaravelho segue o curso de um homem vestindo placas com o anúncio de algo como “Sigam-me, desabrigados. Acolhimento”. Entra pela rampa lateral a um edifício ocupado e atravessa a passarela sobre a avenida Amazonas, desembocando em uma estreita rua tomada por camelôs e comércios módicos abarrotados de mercadorias.
Um grupo de cinco ou seis homens anda em passos indecisos, parando a cada cinco metros e formando uma roda onde cada um, de cabeça baixa, troca olhares oblíquos com o outro, como que espreitando a resposta, no gesto de algum deles, de para onde aquele corpo-anúncio os conduzia. E o homem-placa faz sinal de “venha” para essas pessoas espoliadas, pés ressecados em chinelos desgastados, canelas inchadas de quem vem de muito longe, provavelmente de roças devastadas do interior de Minas Gerais ou da Bahia. Ele já está diante de um estabelecimento obscuro, com um letreiro enferrujado onde custosamente lê-se “Panela de Barro”. Grita para o grupo de retirantes tímidos: “venham, podem vir e chegar. Temos comida, bebidas e mulheres”. O grupo mantém-se empacado na tentativa de cada um captar, de esguelha, a expressão do que significa esse chamado saindo como que magicamente do corpo de um homem–anúncio.
Talvez Escaravelho nem desconfie daquilo que se passa em sua frente. Talvez ele nem suspeite do tráfico de corpos que segue o seu curso bem ali, naquela rua, em meio ao comércio de bugigangas e o formigueiro de gente que escapa da rampa de saída da rodoviária. Muito provavelmente não percebeu, enquanto observava fixamente os retirantes atraídos pela isca homem-anúncio, que na outra calçada, em frente a uma pastelaria, um casal de mendigos discutia e atravessava a rua em sua direção. Certamente Escaravelho nem imaginava que aquela fiação toda de energia e comunicação expropriadas, transviadas em “gatos”, sobre as cabeças dos passantes, estava prestes a entrar em curto-circuito. Ele jamais teria visto um rato despelado roendo a capa emborrachada de um cabo de energia na saída do gerador de um poste coberto de lambe-lambes coloridos com imagens e anúncios LGBTQIA+. O caixa do mercadinho em frente ao qual Escaravelho havia parado para assistir à captura dos retirantes, como se tratasse de uma cena de telenovela, um garoto de bigode que tomou LSD meia hora antes de entrar para o seu turno de trabalho, iniciado agora há pouco, se não viu o rato no alto do poste, ao menos percebeu o casal de mendigos que encenava uma briga e vinha em direção do nosso personagem para furtá-lo.
A marcha dos retirantes desaparece de sua visão quando o grito da mulher pedindo-lhe socorro chega em seu ouvido direito. O homem logo atrás que encena puxá-la de volta esmaga uma barata sob a sola preta e calejada dos pés descalços. Em meio a tantos ruídos e imagens, é provável que esses eventos não tenham sido percebidos nem mesmo pelo garoto do caixa que tomou LSD. Muito provavelmente a simultaneidade de cenas presentes naquele instante, e naquela ínfima parcela do mundo e da humanidade, ocorra de modo inconsciente, automático. Os personagens nada veem. No entanto, o que lhes dá corpo e os coloca em movimento permanece no registro de tudo. O que também não é quase nada em meio a tantos acontecimentos, embora tudo o que é necessário já esteja ali, naquele instante flagrado pela escrita.
O rato sofre uma eletrocussão no poste. Uma faísca se desloca rapidamente pela fiação quando um apagão nas lojas, seguido de alarmes, dispara e dispersa os retirantes. O casal de mendigos, o garoto do caixa, todos os passantes entraram em outra coordenada, numa espécie de movimento em fuga do escuro. Escaravelho seguiu um movimento involuntário também, e continuou a caminhar pela calçada. Passou em frente ao “Panela de Barro” e viu, bem ao fundo do salão apagado, atrás de mesas com garrafas de cerveja vazias, o espectro de uma multidão aglomerada. Já quase na esquina, antes de chegar à avenida transversal, um ambulante que vende balas oferece para ele, estendendo a mão em sua direção, um pequeno pino de plástico. Pega-o espontaneamente e o coloca no bolso sem interromper a caminhada.
Blackout city
Chega a ser revelador o movimento de pessoas pelas ruas sem iluminação. Os itinerários dos corpos seguem sua necessidade de se deslocar sem destino. O desfile de sombras sem rosto nem cores ou marcas de vestuários se apresenta no campo de visão de quem os observa de um modo que o observador não é compelido a indagar pela razão ou os motivos que colocam estes espectros em movimento. Pelo contrário, eles são compreendidos a partir de uma errância transcendental, inerente. Não mais interessa ao observado as causas da azáfama, ou no que ela vai dar. Mas como essas personagens executam e povoam a paisagem, dela surgindo e desaparecendo enquanto deixam no espaço rastros sombrios e enigmáticos que serão repetidos por outros.
Escaravelho andava com essas coisas na cabeça quando sentiu que a mochila se tornava pesada. Cansado, seria preciso encontrar um lugar para repouso. Querendo permanecer nas imediações do blackout provocado pelo rato no início da noite, e após ter caminhado ao longo do dia, colocou a mochila na larga soleira de uma fábrica fechada e ali deitou-se, utilizando-a de apoio para a cabeça.
Parece que agora, dessa posição horizontal no chão, podia perceber a rua como um largo rio sobre o qual flutuam galhos e plantas caídos de uma tromba d’água. São levados por uma correnteza profunda e obscura sem margem para se agarrar. Ou melhor, a rua sem iluminação tinha para ele o aspecto de uma praia atravessada por muitos passantes à noite, transeuntes a deambular no extremo do continente a fim de evadirem do excesso de luzes e paixões artificializadas nas aparências da cidade. Circulam pela orla noturna atraídos pela vastidão incognoscível do oceano escuro ao redor sem a menor ideia de como nele irão se lançar. Não abandonam, contudo, a vontade de começarem um outro lugar.
Passou a noite ali, deitado na soleira de uma fábrica decaída, observando os corpos em trânsito até adormecer. Escaravelho não se lembraria depois, mas naquela noite sonhou com algo que marcaria um passo decisivo em sua vida de retirante. Ele viu, exatamente nessa noite, e em sonho, a figura que iria encontrar dali a três dias. Uma mulher, sim, com a qual poderá recriar seu destino. Mas, não esqueçamos, isso não foi percebido pelo personagem que agora dorme na rua de um bairro baixo da cidade em ruínas.
Apresentação do autor e do projeto narrativo
Tiago Cfer é ensaísta e romancista. Prepara a edição de sua tese, concluída em 2019, revista e acrescida de um estudo sobre a trilogia de romances “Paternidades falhadas”, do escritor português Valério Romão, para o livro Desabrigo-mundo: narrativa século XXI. Em 2023 publicou o ensaio Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico (Ar Livre Edições), série de ensaios que saíram entre dezembro de 2021 e outubro de 2022 neste site; e o romance Gradiente Spectrum (Editora Córrego: Coleção Vírus). Para o ano de 2025, está prevista uma edição em livro de sua dissertação, Samuel Rawet: Pensamento-Prosa, pelo selo Ar Livre Edições. Traduziu os livros Literatura de esquerda (ensaio) e Kafka de férias (ficção) do escritor argentino Damián Tabarovsky. Doutorou-se em Estudos Comparados pela Universidade de São Paulo.
ESCARAVELHO é uma narrativa em construção. Desenvolvida em Oficina de Escrita ministrada por Mauricio Salles Vasconcelos, tem como pano de fundo a problemática da Mãe Morta (André Green), e a compreensão de substituição da mãe pela máquina, tal como apreende Franco Berardi “Bifo” as gerações videoeletrônicas que aprendem mais palavras das máquinas que das mães. Tal mudança de matriz da humanidade é sondada pela escrita narrativa que incorre nas transformações urbanas geradas pelo planejamento capitalista imobiliário, trazendo à superfície dessa problemática traços de conhecimento cósmico-mítico da antiguidade.