Duas recusas à autoria (Dorsenna Caliuzer)

por Dorsenna Caliuzer

Tradução Resnodan Arzuciel

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Neste começo de terceira década do século XXI, praticamente metade da humanidade encontra-se enredada nas social media[i], que vêm se consolidando como o principal mecanismo de interação interpessoal e de compartilhamento de informações – incluindo, aí, merchandising – disponível no mundo. No entanto, se a internet havia, em seus primórdios de popularização, sido saudada como um portal para a democratização e para o esclarecimento, hoje, por conta desse formato de redes sociais com o qual lida-se cotidianamente, ela recebe, a partir de qualquer debate sério sobre o fenômeno, críticas que se contrapõem ao otimismo inicial, do qual, é fato, resta ainda alguma verdade, mas que convive com o alastramento de fake news, com o aprofundamento da monetarização e com a marketização das relações.

A escritura artística, assim como as outras artes e as demais esferas da vida, enredou-se ou foi enredada nessa nova lógica. É difícil, por exemplo, pensar um lançamento de livro que não seja marcado ou compartilhado por meio de uma das redes existentes. Dentro desse panorama, acentua-se, para muitos escritores, a necessidade de se dar a ver, isto é, de fazer seu nome circular a fim de que seu trabalho seja conhecido, o que até pode ser legítimo. O problema, porém, é que no contexto das redes, principalmente daquelas mais usadas no Brasil, como o Facebook e o Instagram, há a barreira dos algoritmos que, a serviço de anunciantes ou entidades pagantes cujo objetivo e cuja atuação são pouco claros, selecionam, entre inúmeras postagens, os conteúdos a serem vistos nas linhas do tempo dos usuários. Buscando ultrapassar o bloqueio algorítmico, muitos escritores intensificam a autopromoção, postando fotos e curiosidades sobre si e sobre seus hábitos de escrita, iscas de olhar capazes de mostrar ao sistema que as postagens do perfil em questão possuem várias visualizações, o que as faria merecer mais visibilidade.

Quem adere a tais métodos pode não perceber que essa posição de empreendedorismo já é escritura, inclusive escritura de si, mas, por estar dentro da lógica de marketing pessoal, geralmente revela-se escritura de baixa voltagem estética e política, pois alinha-se à lógica comercial das Big Techs, que, segundo Jaron Lanier[ii], um pioneiro da realidade virtual, compõem um império de aluguel erigido não apenas sobre publicidade, mas sobre incitação ao vício por meio da lógica dos algoritmos. O desconhecimento a respeito de já serem, tais adesões dos escritores, escritura, possibilita a reflexão crítica a respeito de o norte buscado ser possivelmente muito mais o da autoria em vez de ser o da escrita propriamente dita.

Surgida na Idade Moderna com o objetivo identificar e punir transgressores, a noção de autoria vem sendo problematizada há tempos. Na segunda metade do século XX, textos-referência sobre o tema foram escritos, como o de Roland Barthes e o de Michel Foucault. Aqui, no entanto, para falar da escrita nas redes, será lembrada a “roda da escritura”[iii], esquema que Philippe Willemart propôs para o estudo dos processos de criação literária. Consiste, tal esquema, em um sequenciamento dos papeis assumidos ou criados a partir do processo de escrita.

A primeira instância desse esquema é a do escritor, que observa e sente. A partir dessa observação-sensação, o sujeito usa o recurso tecnológico (caneta, PC, celular) e inscreve, isto é, realiza o ato físico da inserção de caracteres em uma superfície, caracterizando a segunda instância, a do scriptor, cujos volteios de grafismos criarão letras, que irão se aglomerar em sílabas, resultando em palavras e frases a fim de concretizar a instância do narrador, aquela na qual a ficcionalização se desenvolve plenamente. Willemart usa o termo “narrador” pois seu estudo principal refere-se à obra de Marcel Proust, prosador. No entanto, tal categorização pode ser aplicada também ao campo da poesia, aproximando-se daquilo tradicionalmente chamado “eu lírico”, mas cuja nomeação mais precisa provavelmente seria “voz enunciadora”.

Após o engendramento do narrador, aparece a figura do primeiro leitor, aquele que irá reler o texto escrito até o momento e fazer rasuras e indicações de modificação. Por fim, a instância final, aquela que fecha a roda, é a do autor, isto é, a da assinatura de um nome capaz de conferir autoridade à obra. Esses cinco papeis assumidos durante o processo funcionam em sequência, dando giro à roda da escritura a cada modificação realizada.

Tendo em mente a proposta de Willemart, um olhar atento às práticas de circulação de textos nas redes sociais rapidamente nota como esses sites e aplicativos não só convidam, mas incitam à autoria, à sedimentação de perfis-grife para os quais há até, dependendo da notoriedade obtida, selos de verificação. Esse ingresso forçado no campo da autoria poderia ensejar empreitadas artísticas refinadas, nas quais a ficcionalização – pulsante tanto na instância do narrador quanto na do autor – seria capaz de criticar o próprio suporte, desmontando-o por dentro – ainda que simbolicamente – em vez de se dedicar à mumificação de um nome e de um estilo. Parece, infelizmente, que experiências desse tipo não têm sido comuns.

Contudo, alguns trabalhos escriturais recentes abriram caminhos para questionar, relativizar ou problematizar a instância do autor, emboram não tenham usado direta ou exclusivamente as redes sociais como suporte sobre o qual a obra se erige. São, portanto, trabalhos concretizados no formato livro, mas cujos criadores possuem perfis nas redes e chegaram a fazer alguma divulgação digital.

Um deles é o livro Postar (popstar), cuja capa estampa o nome de Teti Conrado, que na verdade é uma personagem-autora, uma espécie, portanto, de pseudônimo.


Pseudônimos têm sido usados há séculos, muitas vezes para proteger o escritor que produziu uma obra não alinhada às regras de sua época ou que, pessoalmente, não poderia escrevê-la em sua época, como é o caso de Mary Ann Evans, cuja assinatura masculina “George Eliot” visava tornar seus livros “respeitáveis” aos olhos do público da Era vitoriana.

No contexto do século XXI, porém, a adoção de um pseudônimo tem motivações diferentes.

O próprio título assinado por Teti Conrado já escancara o panorama no qual a obra foi produzida. Trata-se, inclusive, de uma síntese paranomástica muito bem realizada, pois traduz em duas palavras aproximadas sonoramente a lógica reinante nas redes.

A narrativa é erigida sobre uma espécie de grid, uma malha de fragmentos que se justapõem, à maneira das nuvens de tag ou das newsfeeds das WEB 2.0 e 3.0. Tal acúmulo de trechos, quase posts, vai, conforme a leitura caminha, criando não uma linha, mas sim uma rede narrativa, assumindo a configuração atual da internet como ritmo escritural, não limitando-se, no entanto, a uma celebração dessa lógica de conectividade, mas tensionando-a, algo expresso por trechos como: “Revela-se falsa a luz eterna/internáutica. Quando um sol abarca, abrasa em seu toque incompleto o senso de abrigo. Ninguém se encontra à distância, porque ultramediado”.[iv]

O pseudônimo, nesse contexto no qual oscilam conectividade genuina e ilusória, fatos e fake news, individualidade e massificação, acaba assumindo um papel crítico-irônico, pondo em xeque, ao dispensá-la deliberadamente, a autoria-capital-simbólico. O nome do autor “real” da obra pode ser entrevisto nas iniciais de uma outra personagem, Mari Soares Varelo – outro exemplo de como Postar/popstar desvela a artificialidade da autoria no mundo das redes e da escrita (que é, também, uma rede).


Outro trabalho que coloca a autoria em xeque é o livreto a serpente espelho[v], atribuído a uma entidade chamada “Ora mutt” (reverberação do pseudônimo duchampiano?), que, de acordo com a orelha da obra, corresponde à “constituição mineral que se encontra num processo específico de erosão”. O desgaste de certas partes desses elementos minerais revelaria fissuras sobre as quais surgiriam halos luminosos capazes de envolver a


totalidade dos espectros da cor. Durante essas emanações luminosas, seriam audíveis, dentro da “vacuidade”, algumas “mensagens”, como a que foi registrada no livro. A aura mística aumenta o mistério a respeito da autoria, que é colocada em questão durante todo o trabalho, principalmente por questionamentos como “ quem / está / lendo / este livro?”, “se eu te imagino / você está dentro / ou fora de mim?”, “se eu comecei este livro / você o estaria terminando / ou ele apenas está começando em você?”. a serpente espelho, na verdade, amplia a autoria para o leitor, em um jogo de reflexão que se dá sobre a superfície opaca da página. A imagem da serpente parece aludir ao oroboro, ou seja, a uma ciclicidade que, em alguma medida, se assemelha à da roda da escritura: escritor que é scriptor, mas também narrador, leitor e autor; leitor que é autor e, a partir dos impulsos advindos da leitura, torna-se escritor, scriptor (ainda que, talvez, mentalmente) e narrador, e assim por diante. Nesse sentido, a serpente espelhada é convite à escritura no sentido lato, a uma coautoria desautorizada ou a uma a-autoria imiscuida com a vastidão dos elementos e partículas – uma geoescrita: Ora mutt.


Evidentemente, as obras mencionadas não propõem formas de ampliar a circulação em um meio intensamente digitalizado e conectado, pois são guiadas por outra preocupação: marcar, cada uma à sua maneira, posições de recusa ao conceito de uma autoria plana, ficcionalização empobrecida a serviço de uma etiquetação de marca-produto. Contra isso, dão seus recados. Pseudônimos sempre existiram, mas as recusas à autoria presentes nesses livros lançados nesta época histórica podem ser vistos como críticas pertinentes à fetichização do poder fantasmático conferido pelo mundo dos digital influencers, que dedicam seus dias à obtenção de curtidas e de seguidores, isto é, de um nome, de uma autoridade capaz de convertê-los de produtos-dados a vendedores de produtos no multiverso das redes.



[i] SOUZA, Karina. A cada segundo, 14 pessoas começam a usar uma rede social pela 1ª vez. Exame. 19 nov. 2020. Disponível em https://exame.com/tecnologia/a-cada-segundo-14-pessoas-comecam-a-usar-uma-rede-social-pela-1a-vez/ . Acesso em 10 jan. 2021.

[ii] LANIER, Jaron. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Rio de Janeiro: Intínseca, 2018. p. 24.

[iii] WILLEMART, Philippe. Os processos de criação: na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.p. 37-53.

[iv] CONRADO, Teti. Postar/popstar. São Paulo: Córrego, 2019. p. 123.

[v] MUTT, Ora. a serpente-espelho. São Paulo: Patuá, 2020.