MAPAS 

CAMINHANTES —

 ISABEL CÂMARA/

RAQUEL NOBRE GUERRA


Mauricio Salles Vasconcelos

Publicado em dezembro de 2023 pelas Edições Esgotadas (Lisboa), o ensaio Mapas Caminhantes – Poesia do Tempo e da Terra estuda algumas produções poéticas a partir dos anos 1970 em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e Portugal. O livro tem sua origem na conferência realizada em Lisboa (UCCLA/União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa 2017), a convite da Missão Brasil (Ministério das Relações Exteriores) em parceria com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Reproduz-se aqui um trecho dedicado à brasileira Isabel Câmara e à portuguesa Raquel Nobre Guerra.

Precisamente, uma poeta, mais conhecida como a dramaturga premiada (Molière de Teatro) pela peça As moças (1970), cuja produção se resume a textos reunidos em antologias – duas, basicamente (26 poetas hoje e Mulheres da vida) – e aqueles que formam seu único livro, Coisas Coiós (1998), propicia cortes e refigurações producentes para a escrita no presente. Neste livro-reunião tomado por um princípio fragmentário, orientado por notas, ganham andamento gráfico destacado escritos alinhados sob a forma de versos quando não desconfigurados do desenho formalizado de “poema”. No entanto, bem se nota uma condução rítmica reverente ao gênero em que se situa, sem corte com uma construtividade que sabe ser renovada, guiada por um sentido de textos montados, linhas diversas em dinâmica, numa tão inventiva quanto instantânea sobreposição.

Memória e montagem (procedimento atuante nas criações de Herberto Helder, tal como ele nomeia seus procedimentos em Photomaton & Vox, se torna frequente na atualidade) – Reescrita da própria pessoa e da experiência entre pessoas, figuras da escrita, lugares e momentos de uma história (ao reportar-se a um foco próximo de si, de um modo de escrever). Ali se se lê – Coisas Coiós – uma suma de vida da poeta falecida em 2006, quanto mais referencializa leituras, eventos escriturais e autorias.

O único volume assinado por Isabel Câmara faz vibrar uma fiação tópica (tal como se aclara pelo testemunho no feminino das coisas de afeto, dos processos de formação e destinação entre vida e escrita) que não se abstém do contorno tropológico – de que trata David Wills, em seus livros filosóficos dedicados à literatura. Alcança-se, nessa breve publicação, o cerne da poeticidade através do mapeamento de si, simultâneo a um transcurso de época. Algo inseparável, por sua vez, de uma revisão sobre arte (certos percursos do literário entre a teatralidade, o cinema, área em que I. C atuou como roteirista/assistente de direção/montadora, e o diálogo com muitos domínios criativos, textuais).

Poesia – experimentação/experiência e historicidade definem uma única obra sinalizada pelo senso deliberado de uma colagem, no compasso intensificado pelo caráter de memorabilia (em recorte e reunião).

      Em uma autora coeva de Isabel Câmara como Patti Smith pode se estabelecer um vínculo, especialmente no que envolve a abertura de campos de criação num certo momento a partir dos anos 1970, ao lado de afinidades na maneira de compor e trazer referências, recorrências de concepção. Evidencia-se o talhe documental no modo de formular livro e literatura. Avivada se torna a ênfase nos corpos-de-linguagem trazidos à órbita gravitacional da poesia e do volume-de-poesia. Quando se contata, por exemplo, o texto “Anna Magnani”,

 

                         Tempos depois morria la Signora

                                                      [di Roma.

                         Nesses anos ainda a guerra continua

só que por obra e graça

La Signora

Federico e Giulietta

já pertencem ao sono da pálpebra

                         &

das rosas as pétalas.

 

                “ROSE OH CONTRADICTION PURE

                VOLUPTÉ DE N’ÊTRE LE SOMMEIL DE PERSONNE

                SOUS TANT DE PAUPIÈRES.”

 

         (Epitáfio de RAINER MARIA RILKE para seu próprio túmulo)                           (Abril de 1988 a 1997)

                                                      (Câmara, 1998: 60)

 

Falecimentos – Efemérides (veja-se o poema homônimo de I. Câmara) – Guerra em aberto – Uma cidade arcaica e pontual, como Roma, reprojeta-se nas páginas em “arquivamento e processamento de informações” (Kittler, 2017: 244). Em meio aos registros intimizados e à realidade socializada, dispõem-se explicitamente referências reconstrutoras de takes de cinema. Além dos textos de poesia em citação, ao modo de um relevo – com certo emolduramento – para se dar um fecho, paradoxalmente disposto em incontáveis planos/pálpebras (do modo como a recorrência a Rilke encerra “Anna Magnani”).

Muito do que se lê na poética de Patti Smith: Da mítica “Judith” a “Neoboy” (tão impregnado de mística quando do timbre pop), passando-se por um tour na Itália (onde há menção a Anna Magnani) e pela renascença do rock como arte criada sob sublevação negra na América do Norte – configura-se o Early Work, de P. S: uma coleta textual próxima do álbum de arte e música. Uma coletânea aberta por fotos, pictogramas e grafos os mais indeterminados – “uma memória que permite a leitura e a escrita de dados variáveis”. É como F. Kittler (Ibid.: 246) define as mutações midiáticas, entre as quais está o livro – o volume de literatura, desde a modernidade se constitui em uma mídia, num sistema de informação (segundo o semioticista alemão) –, composto pelas dimensões vetoriais de uma era eminentemente técnica, ainda assim inseparável da tecnologia da escrita reconcebida por estratégias manuais, sensório-maquinais investigadas e insufladas em obras como o  clássico contemporâneo Gramofone – Filme – Máquina-de-escrever. Entre diagramas e dispositivos, por meio dos quais vida, arte e história se constroem em ramificações modulares impulsionadas por grande mobilidade, em termos de analogia e redefinição de livro/leitura para além de um suporte enquadrado-retangular-verticalizado como receptáculo logofônico, mantido pelo infindável revival da retórica dos gêneros por escrito. Firma-se mais e mais um movimento portável/portátil bem próprio dessa nossa época, tal como percebe A.F. Mallo em sua proposição de literatura móvel, produzida entre o dispositivo-livro e suas aleas/adjacentes conjunções/combinações inscritivas e iconográficas, como também neuronais-corpóreas-intelectivas em intrincada e incessante interrelação). Trata-se do alcance de “uma escala de impacto poético”,

 

 

ao qual se mostra necessário utilizar o modelo social em que vivemos, a rede. Rede horizontal. Mapa. Algo móvel, rede móvel. Uns nós de ubiquidade unidos por links estiráveis (...) Passamos de um modelo de literatura Imóvel para a literatura Móvel (Mallo, 2012: 64)

 

Para Patti Smith, tudo pode estar contido no corpo violado e despedaçador da escrita na História sob o signo-mulher “Judith” (ícone apócrifo, emblema ultrahistórico). Assim como estampa a urgência de um último registro dos extensos vínculos formados pela feminilidade como princípio e atualizadora incisão, em “notice 2”: “only lips move. Love poem call silk root.//ruined roman/anna magnani/rose//over tokyo/lick a cultured pearl" (Smith, 1994: 44).

Outro elo se reforça, dessa vez com um trabalho mais atual, como aquele apresentado em Senhor Roubado, de Raquel Nobre Guerra. Poesia conduzida pela dicção de um metonímico lábio (Daniel Lourenço, outro poeta português como Nobre Guerra, está aqui incluso com seu Lábio-Abril, de 2015) capaz de se abrir no labirinto de pálpebras/pétalas (Rilke/Isabel Câmara), tensionado pelo dínamo formado entre viver apenas agora/morrer na linguagem. Assim como se dá o giro de rosa/pérola ancestral colhido em “Judith” (em torno da mulher em guerra na história, dotada de força para eliminar seu violador) – Tal como emite a voz direta da poeta/mulher/rapariga em flor enlutada entre muitas outras: “mas não há verdade nesse coração/que não termine com duas senhoras de negro”. (Guerra, 2016: 9). Mulher e poesia se intercambiam enquanto presenças e linhas-de-front (não apenas como índices combativos, mas reportáveis ao cruzamento de fronteiras antes impensadas para um corpo feminino e os atributos linguais do literário).

Não por acaso, Senhor Roubado faz ressoar a questão-dicção que move o projeto de escrita conjunto a uma intervenção no grande dia masculino do pensamento (como está no famoso poema de Helder já vocalizado por ele em disco “Minha cabeça estremece...”, em que o mundo feminino, gestado na mais remota lembrança, de casa e palavra, toma todo o espaço enunciativo). Presentifica-se o entendimento, em consonância com a análise de Kittler sobre ópera/voz/mediatização, de que “o canto é a última e a mais importante transformação do sopro” (Kittler, 2017: 214). Há, por exemplo, no projeto de Isabel Câmara – marcadamente final/finalizado nos últimos anos de sua vida, fragmentário e mínimo em termos quantitativos – um senso emissor, eminentemente vocalizado, no modo de escrever e encapsular sob a forma de livro – em reiterada sobreposição de pontos/linhas saídos de uma pauta coesa, tributária da formalização do “poético” – memórias de todo um itinerário cultural e notas urgentes capturadas no fim da vida (no único-último volume publicado por ela). Pois o restante são duas peças (só se encontram acessíveis As moças, já num distante passado, e A cor tragicômica, mais recente), roteiros transformados em filmes (Nem os bruxos escapam, bela e pouco vista realização dirigida por Valdi Ercolani, 1975), escritos poéticos em duas antologias, scripts (apenas disponível aquele para o show Comigo me desavim, de 1968, cujo título referencializa Sá de Miranda), textos vários (sabe-se lá onde estão, desde que I.C se fixou em Goiás, entre internamentos clínicos e um gritante silêncio para aqueles que puderam conhecer e acompanhar por certo tempo, com grandes interesse e impacto, o que foi produzido)

Porque outra operação sobre livro/tradição de poesia reconfigura as potências e as partilhas (o que foi traçado como musas, a contar do referencial clássico, redisposto por J-L Nancy em Les muses), alcançando impregnante atualização quando se põem em focagem mulheres/autoras como Raquel, Isabel. Através das figuras e dos campos que a modulação de canto se impõe na cena escritural produzida em língua portuguesa. Algo realizado em embate com as motivações maximais e as microtessituras do dizer (vocalidade advinda do corpo, pois tal ênfase se destaca à leitura). Postura e procedimentos não mais transcorridos a partir de um repertório delegado à naturalidade do verbal enquanto procedência, proveniência de um arquivo de voz correlata a um patrimônio estabelecido por escrito. Existe um crivo de refeitura, labor e indissociável sonda (em consonância com a impactante produção de Lu Menezes, reunida em Labor de sondar, 2022) sobre o herdado e patrimonializado como língua e gênero literário com sua dicção estrita, incluída aquela destinada ao “feminino”, como também a que conduz, num intuito de contrafacção, ao “feminismo”.

Curioso, inclusive, se mostra o baralhamento da autoria – caso de Isabel Câmara. Perceptíveis são um inacabamento, um desnivelamento no modo como são inseridas, ao longo do livro, as citações (aquela rilkeana no fecho de “Anna Magnani” e o toque evocativo a Dra Nise da Silveira, no encerramento do intencionamente caudaloso e bem trabalhado poema “Marcel Proust”, entre outros exemplos).

      Nota-se um vivo desinteresse em formalizar a posição bem posta da mestria e do controle composicionais, em torno de uma presença-assinatura. Valorizado fica o caráter volátil, aleatório, de um processo tão mnemônico quanto disparado pela montagem mais fortuita, quebradiça, disruptiva, a favor do manuseio-manuscrito de um livro infindo, a ser completado ao léu de uma possível leitura. À medida que seu potencial construtivo deixa se inseminar linha-a-linha. Como se o leitor contatasse um conjunto encontrado, ao acaso. Entre a forma final, ali disposta, e o segredo à volta do escrito disperso, a emitir uma nota última, ao mesmo tempo assinalado e ausentado, numa espécie de jogo ininterrupto acerca da breve passagem de uma pessoa e da presentificação gradativa de uma autora. Como se aí se indiciasse, nessa condição-limite, no entanto nunca encerrada, o devir de toda poesia.

 

      Fosse a mim

      dada a graça eu

      teria de ti feito nadas

      de arroz-doce nas armadilhas do forno

      entre suspiros e natas boiando

      ao sem saber das restantes semimortas Ondinas

      daquele único morto

      Aos ombros da memória de Schubert a sussurrar

      seu erro

      seu Eros

      sua Árvore sua Natureza: Novalis –

      meu amor.

 

                         “The angel that presided o ‘er

                         my birth said: little creature

                         formed of God and mirth. Go,

                         Love, without the help of

                         Anything on earth.”  (WILLIAM BLAKE)

     

(...)

 

      "Deus abençoe e nós damos graça a dra. Nise da Silveira”

                         (Câmara, 1998: 37-38)

Referências:

 

CÂMARA, Isabel. Coisas Coiós. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

GUERRA, Raquel Nobre. Senhor Roubado. São Paulo/Lisboa: Demônio Negro/Douda Correria, 2016.

HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: Girafa, 2006.

KITTLER, Friedrich. A verdade do mundo técnico – Ensaios sobre a genealogia da atualidade. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.

LOURENÇO, Daniel. Lábio-Abril. Lisboa: Traveller, 2015.

MALLO, Agustín Fernández. Blog-Up. Valladolid: Ediciones Universidad de Valladolid, 2012.

MENEZES, Lu. Labor de sondar [1977-2022]. São Paulo: Círculo de Poemas/Luna Park/Fósforo: 2022.

NANCY, Jean-Luc. Les muses. Paris: Galilée, 1994.

SMITH, Patti. Early Work. Nova York: W. W. Norton & Company, 1994.