EAST.14TH.STREET 

Amélia Loureiro

O seguinte texto faz parte do livro PRINT PELE, de Amélia Loureiro. 

Composto durante o período 2020-2021, PRINT PELE é um conjunto de 27 títulos, entre eles, 4 sessões contendo 131 textos com alta voltagem experimental. Como um print-pixel do que transpira, a força de atuação da escrita cria e opera uma plataforma de registros e processos existenciais os mais diversos, onde não há uma orientação anterior ao seu uso. A maquinação sensível em curso para produção de singularidade provoca o múltiplo: ficções, cartas, diários de pesquisas existenciais. O caderno do aprendizado pelo sonho. A escrita da infância. Os relatos investigativos acerca do que pode uma pessoa no corpo de uma criança e mulher. Visões culturais alargadas. A arte sem Arte. Anotações-escuta: recurso de cura e interpelação aberta a incontáveis velocidades.

PRINT PELE, Amélia Loureiro

Ed. Córrego, SP

EAST.14TH.STREET

Para Lúcia

A mão no interruptor antes do corpo atravessar o portal, e a claridade (pouca) se fez. Avista o que restou do escuro, neste canto do centro caído da cidade-cus. Trouxe na sacola o leite mais barato. O caminhão da limpeza pública acaba de passar pontual, coisas da América. A avòzinha em meias elásticas circulava insone, hoje de novo. E daí? Esses cacos de memória chamando a minha atenção já tão expropriada. Expropriada: exato. À merda o caminhão fedorento que se move, arrancando a fórceps, o parco dinheiro do bolso da minha calça (e claro: já vem em seguida o nome “surrado” no feminino; uma série infinita de misérias), e mais essa estúpida fumante insone, senhorinha sem caixola para elasticizar a circulação do sangue já podre nas pernas. O punho esbarra e cai ao chão a única louça, – um copo –, trazido quando veio de lá. Pronto, partiu-se finalmente qualquer lembrança de um outro tempo e lugar que não este, que a cada alvorecer mostra as unhas imundas do seu poder quase infinito de cavar o piso de terra da minha caverna, criar furnas de afundar os meus tesouros (parcos e preciosos). Mas tudo bem, antes esse copo besta do que eu.

Psipsipsi... Nossa brincadeira de esconde-esconde: quando apareço Odorico desaparece. Onde está esse querido, mais que amado, filho, irmão, amigo, pai, namorado, mãe, agora que chega em casa e não dá por ele? A caverna, como costuma chamar sua casa-dormitório-diurno de 10m2 na East 14th Street. O chão batido de terra nem sempre foi assim: piso de madeira quando se mudou. Inquilino, com poder de lei para se estabelecer no imóvel, desaparece na leva de suas demandas básicas, em uma equidade perversa com o valor, quase fixo, do aluguel no correr dos anos. Coisas da democracia da América do Norte, como diz, quando avalia sua condição de moradia. A parede sem janela, um vitrôzinho rachado, o ferro, coisa viva já carcomida. Na prateleira onde deposita a chave quando chega, o exemplar de A Volta ao Mundo em 80 Dias: gordura, vermelho e nódoa a encapar os anos perdidos, sem direito à viagem de volta. Ao lado, a xícara predileta, trincada, rente ao coador de café, acima de volumes velhos roídos em esquecimento. A não ser pela caixinha redonda, embalagem daquelas de queijo, a gravura já ensombreada com a manipulação dos dedos – um despiste – onde deposita, a cada aurora, a féria do trampo, uma autêntica economia de valores acumulados para a criação latente de um futuro pronto a explodir a qualquer instante, ou em edição extraordinária: suas estratégias. Um pouco abaixo, monturos dentro do lar: território todo ocupado sem dar sinal; no entanto, sagrados cada coisinha e pedaço de centímetro. Onde o olhar não chega, a mente não comparece discernente, neste século onde só o cansaço ganha massa. Em exaustão imemoriada, sem pés e mãos, cardíaco sem diagnóstico, seus fantasminhas especulam os alertas e deslocamentos das sirenes. Um café urgente cheira e aquece, prepara o corpo quase em pane diária para um sono improvável, mas cotidiano. Graças, dádiva sim, porque reconhece e faz, desde que possa, o bem da vida: é assim que sente tudo. Incrível, esse momento quando faz o café perto do nascer do dia, enquanto mobiliza energia para afastar toda recordação involuntária da época em que chegou aqui há décadas, lindo, dançarino, uma pasta larga repleta de desenhos, criações à guache, o cachecol dado pela irmã, um charme ambulante a pulsar streets and avenues, o assovio à toa, for free, uma voz embalada por entonação singular, apreciada pelos amigos que ficaram em compasso de espera para quando ele voltasse das férias americanas. Ao lado, o tanque-pinga-pia-tudo-junto, porqueira, coisas da América carcomendo em limite a parede. O corpo. Ali mesmo, sem ar, lava os figurinos do show e estende na corda, pronto a roçar neles a cabeça de maneira persistente e enlouquecedora. Um desacostume que o tempo não sana. NUNCA! Mas, o café! Este anuncia a luz matutina para a cidade-cus!

Cadê o bichano. Nesta altura quando é certo receber a lixa úmida da língua na nuca, a certeza da sua ausência. Sem explicações plausíveis: hoje como sempre foi, nada foge à rotina de deixá-lo em casa no melhor dos mundos domésticos da bichanice, quando sai para o antro-neon ali do lado, onde religiosamente trabalha atravessando a madrugada. Vezes incontáveis prestando serviços extensivos à sua atuação principal. E porque não dizer: no exercício das noites, suas apresentações foram se tornando um combo de entretenimento e autoexposição extremada para certa parte da clientela do antro. Um adjutório, como dizia a mãe; de efeito minguante, com o passar do tempo, e cada vez mais necessário. De repente, a dúvida desarrazoada se seria caso de morte, ou se a vida pode estar em jogo ainda. A zoeira na cabeça, o lembrete do gole de Rivotril por vir, essa intromissão de uma dificuldade crescente para sorrir ou sentir raiva na dose e na hora exata do desejo, e o embaraço nas sequências. Muito cedo para conferir com o seu colega, hoje em descanso: o idoso de plantão das madrugadas, porteiro sem aposentadoria do clube-antro vizinho. De toda forma, a certeza de que morar perto do serviço é o melhor que se pode fazer. Aconteça o que acontecer, esta certeza salta automática.

Uma volta correndo na quadra, de prontidão para atender ao chamado. Conviver ao ar livre com a dor presente desconhecida, jogar fora o desgosto da noite, à espera de mais um naco de vida unido a si. Neste ponto, nada bate de mais contundente e palpável. Abre a porta de casa, detrás da escada do prédio, ao lado do estreito cômodo de depósito do lixo. Talvez fosse bom averiguar quanto pagam para recolher, organizar e depositar na calçada todo o resíduo dessa edificação...é bem possível que eu seja a pessoa daqui a lidar de maneira mais consciente com os descartes que produzo; além disso, parece que os meus sentidos já se acostumaram com essa proximidade estreita e continuada...A parte mais difícil seria esta aversão em mim para lidar com a escala tendencial de desperdício instituído, e ter mesmo de me conectar mais de perto com porções aumentadas de estados putrefatos.

Só o som. A campainha avisa e mostra o corpo inanimado. O animal entre as mãos de um desconhecido, o rosto enorme do vizinho novo no rasto daquelas mãos de morte e entrega. Bem que eu pressenti um aviso quando caiu e quebrou o copo de séculos e eu disse pra mim, isso não é nada, o que importa afinal um copo...sim, um dos raros objetos a me aguçar a vontade, já tão cansada para reunir forças e criar um mundo diferente desse viver aqui. De imediato cava a terra de 10 m2 em local indicado por geoprocessamento impetuoso e convulso, uma cova funda, larga o suficiente para caber com folga o corpo desta excelência: Amizade/O Saber Entre Espécies. Odorico Paraguaçu, duas palavras indizíveis pelas pessoas onde moro, essa outra língua onde reinvento a minha disposição para começar a procura de quem nomeia comigo. Das companhias de agora, – os cacos do copo e o corpo inerte –, claros sinais apresentados ao meu pensamento, de que seria assim se eu quisesse: uma inteligência nova a apontar saídas aqui, onde parecia não haver nenhuma chance; uma rotação completa no eixo de toda essa exis- tência ainda por cumprir-se.

Alô. Maninha? Chego depois de amanhã para uns dias esticados. Surpresa? Não se preocupe! Sei do meu quarto fechado por todos esses anos e tudo o mais, querida. Muita saudade. Assim que me instalar no Portal da Cidade e tomar uma boa chuveirada – deve estar calor aí, não é – vou ver vocês.

Se ajoelha e puxa a mala debaixo da cama; destampa, bota a mão só um pouco trêmula e certeira no maço de notas, gordo, cashs-olvidados-pero-no-mucho, ciência coletiva imigrante. Extrai de dentro da maleta o que vai deixar para trás, – reúne e introduz algo daqui e dali –, pequenas importâncias, carga leve. Nesta altura constata em si um saber de munir viradas. Sem se aperceber como fato, mas como o próprio existir...a sensação forte de haver se dedicado laboriosamente a esse plano submerso no Hudson, seu curso de grandeza e silêncio. A água no corpo, pingadinha e sorvida nas porosidades. Saca os dólares da caixinha-camuflagem, conta e reconta, enrodilha apertado o elástico, mete metade no fundo do bolso. Abre a porta, não retira a chave, apaga a luz às suas costas.

O desatino do sol.

Publicado em 10/01/2024