Me preocupava. Não só pelo silêncio constrangedor, mas pela perturbação suscitada entre eles, duas posições políticas delimitadas, o “W/M” de Wes e Mika. Não tinham nada a perder e percebi que não poderíamos fazer nada asiático ali sem faltar com a verdade. Esse era o nosso limite, uma recusa em representar qualquer manifestação cultural. Precisávamos de uma terceira posição. Me perguntei se seria esse o plano de Aisha desde o início. Uma armadilha contra o butô, em favor do humanismo. A comissão europeia havia me selecionado, sim, por mérito das minhas criações, ou seja, dos atos falidos que eu fazia com o corpo, dos palcos que preenchia de alimento em decomposição, da respiração mais lenta do mundo que me propunha a executar e chamar isso tudo de butô – meu butô... Uma cerimônia do chá visceral...
Reuni forças:
Trabalhemos com este paradoxo: uma traição à cultura japonesa, eu disse, a essência do butô é se manter fora dela, fora de qualquer lugar cultural, sem deixar de tecer nossa investigação profunda da política brasileira. Mas fora do alcance das garras imperiais. Podemos caminhar por aí?
Aisha: “Que coisa clichê, francamente.”
Nessa hora, já ouvíamos os estrondos (os “baques”) que vinham de longe. Um único estrondo contínuo vindo de cima, espécie de tempestade. Todos nós nos calamos. Suor. Olhos para o teto, olhos para as janelas, olhos nos olhos.
Aisha apontou para Giulia: uma engenheira de ascendência asiática, alta e magra, estalando dedos, tomava a palavra por último. Diante do W/M havia me esquecido da sua presença, uma face pálida, sumindo-se no espaço. Propôs a utilização de máquinas e realidade aumentada como pesquisa. Confessou sua vontade de pesquisa com muito custo em uma voz muito baixa. Isso seria uma conciliação? Os aparelhos dela não possuíam um posicionamento político.
Aisha coçou a nuca e olhou para baixo enquanto Giulia mencionava suas últimas criações em torno de máquinas portáteis. Eu olhava atento a cena, triunfante para o caminho aberto segundo a visão de cada coreógrafo. (Você que chamou ela, Aisha! Você que selecionou a Giulia, uma engenheira!)
Traríamos assim, à tona, a camada hyperpop como recorte asiático para a peça, em uma afronta direta à ideia aterrorizante do “louvor às sombras”, do bonsai que erroneamente imaginavam emanar de Satiko, a minha antiga mestra. Sua casa no interior de São Paulo, em realidade, representava o oposto: calçadas com musgos, um jardim ao léu acumulando todo o resto da relva que procurava fugir das construções, aquelas sim, de arquiteturas límpidas. Senti um alívio com misto de incerteza, de “medo de morte” inconsciente. Além dos estrondos, uma espécie de energia solar se intensificou, incrustada na crosta terrestre naquele fim de tarde e contra todos: terminamos as falas, terminamos o ensaio. Nada fora decidido. Todos se dispersam e voltam para suas casas.
Uma espécie de energia solar se intensificou naquele fim de tarde. Perto do metrô, o mormaço do engarrafamento se misturava ao vapor dos alimentos e fumaça dos lixos, todos suavam naquela ilhota de calor, todos gastavam energia na névoa vermelha. Abarrotamento, lentidão e uma matilha de cachorros, soltos! – caçando qualquer coisa em uma missão inadiável. Na praça, os cachorros. O rapazinho ao meu lado parecia ter cheirado pó dizendo palavrões a eles. Me assustei com isso e perdi-os de vista. Para onde foram os cachorros?, perguntei. Saí andando dali e um desdobramento material iminente ganhou tração não apenas a nossos olhos, mas dentro da própria existência, convertendo-se em uma caminhada em suspensão. Andar de forma suspensiva no chão esburacado sem chegar a ponto algum, sem sair do lugar. Fingi ser o cachorro, cínico, e continuei com minha fuça.
Sombra, abismo, subsolo.
Estamos diante da curadora: ela toma café. Sempre caio na armadilho do abraço cultural, mas dessa vez ouço sua voz antes mesmo de me sentar:
– Precisamos conversar sobre o que o foi decidido no ensaio, e em especial sobre sua condição, ela diz. Como você está? Sobre as máquinas da Giulia, não haverá tempo para montá-las, eu sei do seu entusiasmo, mas precisamos desistir dessa ideia. E vamos combinar, qual é a garantia disso tudo? Ela me ligou hoje, perguntando sobre a verba para a montagem das máquinas, eu disse que não sobrara mais nada. Ela ficou em silêncio e disse, tudo bem, eu mesma posso montar um primeiro protótipo. Ela se prontificou e quis aprofundar um pouco mais o assunto comigo. Me mostrou umas fotos horrendas que me fizeram ter vontade de perguntar: você é formada em engenharia? O que você faz da sua vida? Ela tem uma dessas “máquinas” dentro do corpo. Fez uma cirurgia na sua própria casa, sem anestesia nem nada. Ela está completamente fora de si, muito diferente das apresentações solos dela que vi em Amsterdan. Eu honestamente não a quero mais conosco. Sem contar que ela não parece estar a par da atual situação que o país enfrenta. Eu perguntei a ela como combateria o cenário de destruição generalizada em curso, como pensaria o espaço cultural nesse contexto, e ela me respondeu: usando a realidade aumentada para criar um espaço de pertencimento, a todos os coreógrafos, mas também a qualquer um que entrar no espaço cultural. Não apenas achei uma ideia distante do senso asiático e do proposto por Wes, mas perigosa até mesmo a nível de teste. Se ela ligar essa máquina no ensaio, nada garante que não teremos um piripaque.