MUTAÇÕES DA ESCRITA NA ÉPOCA DO VAMPIRISMO PORNOGRÁFICO (PARTE 4) — ROMANCE: CIRCUITO NERVOSO


(Tiago Cfer)

Tiago Cfer é escritor. Autor do ensaio

Desabrigo-mundo: narrativa século XXI.


Se em Beckett o mal-estar da época ganha uma configuração constrita, rudimentar, enxuta, a partir da qual a narrativa irá se desenvolver em proposições linguísticas descontínuas, expansivas – formas e conteúdos ilegíveis para uma linguagem familiar, vernácula –, observa-se em Campos de Carvalho que a operação narrativa funciona também numa espécie de transtorno: a infiltração de enunciados ilógicos e excêntricos na linguagem comum arremete toda e qualquer familiaridade do leitor.

Cada um ao seu modo faz do trauma, da agonia, angústia e paranoia, condições existenciais a serem redimensionadas pela fabulação. Sem comentar tais condições, Samuel Beckett faz suas personagens espasmarem surpreendentes (diferentes) modos de existência. Em Campos de Carvalho, essas condições até são tratadas, mas de uma maneira completamente inesperada, fornecendo para a tragicidade da existência tonalidades estranhamente bem-humoradas. Não que em Beckett não haja humor, muito pelo contrário, mas em alguns livros, como no caso de Como é, ele suscita comunicações bem mais ásperas.

O autor de A lua vem da Ásia transforma a doença dos nervos, ou a esquizofrenia de sua época, em um campo intrincado, abstruso, a ser sondado e desembaraçado pelo narrador. Entretanto, seu cuidado para manter as personagens em uma posição de total desconhecimento das causas e razões que as aflige, ao mesmo tempo em que testemunha uma obsessão por sustentar o banal em suspensões silogísticas extraordinárias – obsessão inclusive capaz de provocar gargalhadas no leitor –, também extrai das situações em que elas se encontram, e de seus delírios, métodos rigorosos que irão abrir diferentes perspectivas para a narrativa. O que acaba gerando movimentos insuspeitos, realidades alternativas, geralmente aberrantes, e faz de Campos de Carvalho um exímio examinador e expositor da loucura.


Astrogildo, o protagonista de A lua vem da Ásia, pensando estar num hotel, enquanto na verdade encontra-se no hospício, em meio à rotina da internação constrói, com o tempo, a consciência de que é prisioneiro de um campo-de-concentração. Tais espaços – hotel, hospício, campo-de-concentração –, e suas funcionalidades, confundem-se em uma trama cujo pano de fundo é a guerra, paranoia e fuga. Seus signos são enunciados, contudo, sem a gravidade ritualística da confissão de pacientes ou combatentes, mas com a tranquilidade zombeteira de um veterano combalido e, paradoxalmente, cheio de energia. Neste velho jovem, ou vice-versa, a exaustão se converte em fúria, tal como nos atesta sua avidez criadora.


Fiz-me peripatético porque a palavra se ajusta como uma luva ao meu temperamento protéico e sonambúlico – da mesma forma como me considero funâmbulo, clown, sacripanta, autóctone... sendo como sou uma legião de criaturas, como o louco do Evangelho, qualquer nome que eu me dê será sempre um nome adequado a um dos mil espectros que compõem o meu EU fabuloso – ou, para ser mais modesto, o meu pobre universo.[1]


Um personagem peripatético num mundo sem ser nem deus. Sem Aristóteles. Logo no início de seu “diário de guerra e paz” (transformado posteriormente em “Diário dentro da Noite”, e depois em “Diário íntimo”), ele adverte: “Aos 16 anos matei meu professor de lógica”. Feito os personagens beckettianos, “escreve sobre o seu corpo a litania das disjunções”[2].

Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari demonstram como, para além da linguagem domesticada – teológica, familiar, clínica –, a experiência da loucura em Schreber nos dá testemunho de uma biografia extrapolada de todas as lógicas que tentam apreendê-la. Mesmo Freud tendo observado que Memórias de um doente dos nervos expõe de modo inédito uma “percepção endopsíquica”, e se precavido com o registro no seu primeiro ensaio sobre a psicose de que suas investigações a respeito dessa patologia vêm de antes da leitura do livro, sua “ética de profissão” não lhe permitiu tocar o fato de que a vida de Daniel Paul Schreber serviu de “centro de captação de energia” para seu psiquiatra, Flechsig, desenvolver uma teoria sobre doenças nervosas sob o direito de realizar a autópsia do cérebro do paciente para defendê-las.

A teoria do presidente Schreber de que a alma é feita de fiações de nervos interconectados, caóticos, longos fios esticados, estendidos de quaisquer lugares do horizonte celeste, com terminações nervosas em sua própria cabeça, apresenta a obra autobiográfica como espaço desdobrado e prolongado em um vasto “procedimento de inscrição”[3] entre teoria e vida. Escrita solar, sideral, suas memórias testemunham um grande voo técnico, tecnológico, capaz de compreender Deus como uma espécie de regente cósmico jogando com a matéria aleatória da vida – raios e fiações nervosas que escapam de suas mãos. Friedrich Kittler considera que, oitenta anos antes do Pink Floyd, Daniel Paul Schreber poderia muito bem ter clamado a canção “Brain damage”.

O corpo que representa um real “inidentificável” para Freud, e “totalmente impossível” para o médico Flechsig, é o corpo de uma vida suplementada em texto. Corpo textual que excede os limites das ciências de sua época na constituição de uma teoria celestial, cosmográfica. Kittler, em seu ensaio “Flechsig/Schreber/Freud: uma rede de informação na virada do século”, chega à bela definição de que “a loucura é tecnológica, e Deus, muito diferente da visão cristã, é um deus dos canais de informação construídos por Marconi ou por Siemens”[4].

Está presente também em Campos de Carvalho essa “loucura tecnológica”, uma experiência textual multitudinosa. A exploração do espaço do romance acontece para fornecer estrutura e povoamento ao delírio. O autor condensa em seu livro a rigidez, a petrificação do mundo paranoico, e também a fluidez do mundo das metamorfoses, tal como observou Elias Canetti sobre essas duas características que se embaralham entre psicose e poder soberano em “O caso Schreber”[5]. O personagem-narrador que não reconhece a mãe, chegando a vendê-la para um companheiro do hospício, monta uma trama paranoica (na qual a mãe é cúmplice de médicos e enfermeiros – ou, em sua acepção, de espiões e torturadores) à medida que prepara sua fuga inadvertida do “campo-de-concentração”.


Como acreditar na afeição materna de uma mulher que assim se alia, sem o menor escrúpulo, ao meu maior inimigo, como que esquecida de todo o mal que ele me fez e me fará ainda outras tantas vezes, tantas quantas sejam necessárias para que eu afinal revele o meu segredo, que eu mesmo não sei qual seja? Que mãe é essa, desnaturada e hipócrita, que nem ao menos sabe simular um pranto autêntico, com seu olhar parvo e ao mesmo tempo cheio de malícia, que não tem nada do meu olhar dentro do espelho? Mãe dessa espécie, por certo o Estado as cria e cultiva em estufas especiais, para que possam trair no devido tempo os seus filhos adotivos e entregá-los de mãos atadas aos inimigos do gênero humano, que os desindividualizam e os tornam bons cidadãos, com o direito de partirem para a guerra ou de morrerem fuzilados de encontro a um muro qualquer, numa clara manhã de primavera. Com o asco que me vai dentro do peito, sinto desta vez força suficiente para cuspir-lhes em pleno rosto, à minha mãe e ao seu cúmplice adiposo, obrigando-os a um salto espetacular para trás, de surpresa e de espanto, que por sua comicidade provoca em mim uma crise convulsiva de gargalhadas, que até agora ainda não cedeu de todo.[6]


O romance A lua vem da Ásia está dividido em duas partes: “Vida sexual dos perus”, momento de confinamento, imobilidade e desenvolvimento de uma narrativa esmiuçada em minúsculas percepções de um mundo encenado em permanente permutação com detalhes políticos, econômicos, fragmentos de realidades, substratos que compõem a rotina hospitalar; e “Cosmogonia”, que se dá a partir da fuga de Astrogildo, em uma deambulação pelo mundo decorrente de sucessivos deslocamentos e mutações de lugares, culturas, tramas relacionais, que fazem do personagem “uma legião de criaturas... mil espectros que compõem o EU fabuloso”. Cada parte é composta por capítulos do diário do narrador, numerados e nomeados segundo uma lógica qualquer, ou uma contra-lógica que melhor aproxima a numeração e nomeação do teor textual de cada capítulo.

Algo curioso ganha destaque nas duas partes. Tanto em “Vida sexual dos perus” como em “Cosmogonia”, o narrador redige uma carta – respectivamente “Carta aberta ao Times” e “Segunda e definitiva carta ao Times”. Na primeira, expõe o abuso de que os pacientes – prisioneiros – vêm sendo vítimas. Na segunda comunica o seu suicídio. Enquanto compõe o diário desenvolvendo e expondo experimentos de renovação e expansão da linguagem romanesca, o autor lança mão das cartas para mostrar a um público mais amplo, posterior, que as técnicas de internação e insulamento, ao mesmo tempo em que exploram vidas, forçam a criação humana à constituição de novos elos para sua subsistência. Eis a ambiguidade do vampirismo político, algo que a produção de um cineasta como Jean Rollin testemunha: extrai-se da exploração libidinal, pornográfica dos corpos, concepções revigorantes para a existência.

Ainda sobre Schreber, Friedrich Kittler observa que “os psicóticos são sujeitos da ciência”. Que os loucos “são analisados com os métodos mais modernos e, por isso, registram o avanço do processamento de dados com precisão histórica”. O desembaraço da inteligência e da sensibilidade é acompanhado pela especialização de técnicas de controle.

Talvez com A lua vem da Ásia Campos de Carvalho nos ofereça perspectivas para uma nova ciência da ficção, algo que fica expresso em seus outros romances: o poder de uma escrita para manter-se num espaço sem ponto de apoio nem de parada, a fúria da ação narrativa em sua imediaticidade que impede toda apreensão e cria sínteses, saídas para a vasta e complexa existência humana. Irrupções enunciativas, palavras e registros que não se ocupam com restituir algum sentido, alguma memória no leitor. Mas em promover movimentos, o riso e o esquecimento em inscrições no real que ocorrem de um modo tanto mais forte quanto mais se desprendem do indivíduo para tornarem-se linguagem do delírio, irrompimento de consciências mundiais.

Como a cena do filme em que Astrogildo figura apenas no instante de uma explosão, tornando-se famoso pela precisão de sua aparição, A lua vem da Ásia, em sua breve extensão, nos apresenta todo um circuito nervoso do romance.



[1] CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 154.

[2] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 25.

[3] Ibid., p. 26.

[4] KITTLER, Friedrich. A verdade do mundo técnico: ensaios sobre a genealogia da atualidade. Organização Hans Ulrich Gumbrecht; tradução Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017, p. 116.

[5] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Posfácios: Elias Canetti e Roberto Calasso. Tradução e introdução: Marilene Carone. São Paulo: Todavia, 2021, p. 415.

[6] CARVALHO, Campos de. Op. cit., p. 59-60.