Cintya A Nunes

Formada pela ECA-USP, trabalha como redatora publicitária e criativa estratégica, com publicações ficcionais em alguns sites literários como o Germina e a Revista Philos. Autora do blog escrevinhacoes.wordpress.com

Acelerador de partículas

Aquele homem que costuma apontar o dedo para o lago. Aquele que costuma arremessar pedras no lago e observar as circunferências que se criam na superfície, as intersecções dos redondos aquáticos. Observa-se no espelho, rasgos da pele, marcas dos anos. Tem um espaço dentro dos seus vincos que não diz. É escavando esse não dito - para ele de suma importância - que descrevo seu porta-retratos.

Fuinha paralisa acelerador

de partículas de 27 km de extensão.

Animal causou interrupção das operações após mastigar cabo de alta tensão em parte do equipamento localizada perto de Lisboa, afirma o engenheiro Dimas Veiga Filho, filho do famoso físico Dimas P. Veiga.

Os neurônios se chocam errado às vezes e irrompem a atmosfera torpe, ao que os médicos chamam de Alzheimer. Parado não aparece. No barco pescando sim. Dimas amava pescar. Passou a vida juntando minhocas. Desafiava o animal e sentia um prazer danado trazendo à tona o submerso. Já não lança exatamente a isca, já não lida exatamente com o anzol.

Quatro rugas profundas no centro da testa, vincos nas laterais dos lábios, traços próximos à área dos olhos, uma aspereza. Está tudo lá. Os anos estudando fora, o dedo amputado fazendo uma pesquisa, a filha que não vingou, o prêmio internacional, o apartamento nos Jardins, a primeira mulher, a segunda mulher, os demais filhos.

“Vou ficar um pouco aqui, à beira deste lago. Me deixe só, por favor.”

Vivo à mercê de lagos frios,

Como peixes, mastigo espinhas,

volto para a beirada e volto de novo,

bebo toda a água e seco a terra,

- em solo seco nada crescerá.

foda-se seus jardins particulares, suas hortas necessárias,

Ninguém de mim fez planta.

Poupo os pássaros, nestes eu reconheço certa liberdade.

Ministro das Energias anuncia compra de novo equipamento.

Segundo as autoridades, a demora na compra no novo acelerador de partículas

se deu por conta do corte de verbas da atual gestão.

A ciência de Dimas consistia em estudar uma ampla gama de fenômenos da natureza, analisar as partículas subatômicas e até o comportamento do universo como um todo. Em 1978, se transfere para Genebra, conhece Nádia, analista de sistemas. Não humanos. Os humanos são mais complexos, o começo da tremedeira, das pequenas partículas do cotidiano que vão bombardeando a gente por dentro, por fora, até desaguar num rio onde eu hoje pesco peixes, robalos gigantes que me tiram do tiroteio. Nádia o traiu, Nádia teve amantes, fez filhos com ele, tiveram uma fuinha de estimação. A segunda esposa, a maior, a mais dolorida, a mais amada, de uma dor que junta com as pequenas e vira corpo dentro do corpo.

Antes de mim outros agonizaram,

e vão continuar muitos,

estão cantando a morte e a prisão.

Rapazes e moças fatigadas se entregam, gente se pisoteia,

no centro da cidade vencida.

Resisto nu nem sei como,

resolvo atirar-me ao profundo.

É com ajuda muda que Dimas caminha, sua muleta sempre o acompanha. A esposa já se foi. A segunda. A primeira ainda vive, mas ele não sabe como. Era distraída, não veria o rio com ele hoje. Nádia também não, mas veria os reflexos do arremesso da pedra. E quantas foram! Muitas.

Decide botar a ponta do pé dentro da água, tira os sapatos cuidadosamente, sentado na terra que margeia o rio. Joga primeiro a muleta. Desabotoa a camisa, tira o relógio.

No momento certo, quando as moléculas se agitam em seu grau de energia máxima, ocorre a transformação.

Uma explosão nuclear de teste é uma experiência

que envolve a detonação de uma arma nuclear.

As motivações para o teste podem, normalmente, ser categorizadas:

-Relacionadas com a arma em si

(verificar que a arma funciona, ou estudar como funciona);

-Efeitos da arma (como a arma se comporta sob condições diversas, e como as estruturas se comportam quando submetidas à arma).

Melhor que a imagem do porta-retratos é a da superfície da água. Dimas em nuances que se elevam e abaixam conforme o movimento aquático. Dimas úmido, redondo, monocromático, ateu, trêmulo.

Um peixe, voluntariamente, sobe ao seu encontro para um farelo de pão.