Graça fugitiva

(Tiago Cfer)

por Tiago Cfer

Autor do ensaio Desabrigo-Mundo - Narrativa Século XXI (a ser publicado em breve)


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O ato de escrever vem se desligando de um trabalho de linguagem (negativo) capaz de perfurar as conjunturas atuais. Fabulação, construção narrativa, parecem menos importantes que a publicação. Evita-se pensar a composição. Há pouca crítica, muito coaching. Importa a construção imediata da imagem do autor. Logo, divulgação e distribuição do livro, publicidade, entrevistas, criação de tendências. Raramente surge um livro que confronte essa situação, o dilema do politicamente (in)correto, as condições de normalidade, as respostas automáticas às leis do mercado, governo, academia, internet.

Independente de seu gênero, nota Jean Bessière, “a literatura traça origens no presente, figura os possíveis e, consequentemente, justifica o real, constrói e reúne os jogos de dissenso”[1].

Nessa época em que há mais autores que leitores, festas e premiações literárias ganham um tom de colóquio narcisista assistido por espectadores entusiastas. Verdadeiros talk shows de grandes marcas onde são apresentadas as vivências do escritor, seu currículo, viagens, adesão a causas... Há espaço para opinar sobre tudo, exceto pensar as complicações que a escrita enfrenta nesse contexto. Quanto menos conflito, melhor a festa. Assim, o texto vai sendo substituído por imagens, trejeitos, looks.

Não é esse o caso dos autores e livros que abordo aqui. Botika – Uma autobiografia de Lucas Frizzo (2004) e Búfalo (2010); Fausto Fawcett – Favelost (the book) (2012); e Mauricio Salles Vasconcelos – Ela não fuma mais maconha (2011), Telenovela (2014), Bráulio Pedroso (Novela da noite) (2018). Pouco estudados e comentados, estes livros, analisados em conjunto, formam um panorama expressivo da escrita narrativa desde o início deste século. Uma questão prévia é a de que seus autores estão distantes do quadro instituído pela “literatura brasileira contemporânea”. Não constam nas listas cotadas anualmente por suplementos literários, revistas e cursos universitários. Todavia, não seriam escritores assim, que constroem sua obra sem intenções de coincidir com a época, mergulhados “nas trevas do presente”, como diz Agamben[2], que forneceriam mais elementos para a literatura traçar “origens no presente”, elaborar os “jogos de dissenso” da época? Não é mais ou menos isso o que boa parte da crítica defende, mas não assume?

Trago esses livros em conjunto não porque pretendo estabelecer entre eles uma identidade. Pelo contrário. São estilos e composições bem distintos. Formam, como escreve Damián Tabarovsky, uma comunidade dissensual, negativa, “na qual o inacabamento é o seu princípio, mas tomado como termo ativo, designando não a insuficiência ou a falta, mas o trânsito ininterrupto das rupturas singulares. Cada escritor inaugura uma comunidade”[3].


Descontinuidade, figuras em movimento. Cada livro começa com uma interrupção, atravessa o fluxo de comunicação e informação diário que subordina os acontecimentos a um processo passível de cálculo, governo e controle. Inicia um jogo ainda não formulado, sem nenhuma relação com as constâncias reconfortantes do reconhecimento. Literatura não é feita para compreender, mas para cortar. Que aconteceu? “Parece ter chegado a um limite. (...) – Foi assim que você perdeu o fio do tempo, da história que se seguia... (...) Era preciso que saísse dali, pois se esgotou, como se fosse alguma coisa além dela mesma.”[4] “A novela continua a passar na TV, sem mais a presença da mãe. (...) – Nós duas nos sentamos aqui e conversamos por cima do que passa na TV. Todas as noites. A gente se reunia. Olha, já estou falando em passado, e aconteceu ainda agora.”[5]

Há, nos romances de Mauricio S. Vasconcelos, um começo suspenso, indagador, do qual a trama decorre multiplicando personagens, ambientes e focos narrativos. Ao passo que nos livros de Botika e Fausto Fawcett o leitor já é introduzido em uma ação aparentemente disparatada desde o início. “Sempre pensei em morar em São Paulo. Hoje acabo de decidir ir de verdade, agora sim. Acho que vou sair agora, correndo, sem mala, sem gosto de nada na boca.”[6]

Palavras iniciantes que nos interpelam e nos arrastam para frente. Abalo de um começo, a partir do qual as figuras narrativas emergem, são postas em movimento. “Meus territórios estão fora de alcance, e não porque sejam imaginários; ao contrário, porque eu os estou traçando.”[7]


Nota/desenho do autor sobre o romance Ela não fuma mais maconha.


Ponto de vista de lugar nenhum. O que torna fecundo o desenvolvimento narrativo não é a adesão a uma ideia de verdade, a um discurso moral, um sentido reparador do mundo. Independente da vontade ou satisfação do narrador, a matéria com a qual ele compõe a trama, a linguagem, segue exterior, indiferente, contingente.

Não por acaso, o narrador nestes três autores parece estar na posição frágil e aberta de uma criança que, à noite, se abisma com as coisas do mundo. Reverso do velho e sábio benjaminiano, sua posição é a do recém-nascido perplexo com as imagens e sons do universo, “grande junção” informe para a qual o mundo se apresenta incipiente: “ponto de vista de “lugar nenhum” [que] se diz pelo próprio lugar de ação”[8].

Filosofia-ficção. A noção decisiva desenvolvida pelo escritor norte-americano William S. Burroughs de que a linguagem é literalmente um vírus nos fornece duas hipóteses complementares: o mecanismo da linguagem é destruidor, violento; qualquer projeto civilizatório é pandêmico, pois constituído por linguagem. A vacina contra esse vírus é a própria linguagem. Combate-se a linguagem pela linguagem, seu antídoto.

Nesse sentido, os romances em questão servem-nos de laboratório de pesquisas. Contra a função repressiva da língua, os comandos que nos imobilizam como meros receptores e reprodutores da ordem, Botika constrói narrativas mais violentas que a violência instituída. Fausto Fawcett engendra uma contra-antropologia. Mauricio Salles Vasconcelos desenvolve uma escrita musical oposta ao muzak dos elevadores nacionais, uma escrita televisiva oblíqua à teletransmissão que molda o trauma diário. Seus livros formam mapas, maquetes, esboços de linhas transversais articuladas aos phylum maquínicos das tecnociências. Realizam uma transdisciplinaridade viva (como bem propõe Guattari) entre urbanismo, arquitetura, artes, ciências sociais, humanas, ecológicas, no traçado de uma ciência em formação. Abrem novos espaços, “extrarradiais”, segundo a expressão de Agustín Fernandez Mallo.[9]

Búfalo pode ser lido como um catálogo de arte que toma o projeto escultórico do artista plástico Tunga – “agrupamentos de formas expansivas” – para criar linhas reconfiguradoras do corpo na cidade. Favelost como um tratado da destruição e da subjetivação pós-humana no Brasil. Bráulio Pedroso (Novela da Noite) acaba por se revelar também como ensaio que se desprende do simulacro de realidade produzido pela televisão, ao elaborar proposições filosóficas, entre o aforismo e o koan, demonstrando um pensamento compacto, ágil, capaz de perfurar a imantação televisiva do real.

Trata-se de um projeto inverso ao da “Filosofia da composição” de Edgar Allan Poe. Uma “filosofia em composição”. Narrativa literal, escreve escrevendo-se. Escrita em exposição. O que não tem nada a ver com escrever com as próprias neuroses (diagnóstico deleuzeano em “A literatura e a vida”), mas com a formação de um pensamento planetário em sua graça fugitiva: “O pensamento planetário não é unificado: ele implica uma profundidade do céu, uma extensão do universo em profundidade, aproximações e distanciamentos sem meio termo, números inexatos, toda uma filosofia-ficção”[10].



[1] Bessière, Jean. “Notas sobre o estado da literatura e da crítica francesas contemporâneas – A respeito de duas vias da criação literária hoje”. Cerrados nº 36, Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura. Acesso em 10/01/2021: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/14112/12434 .

[2] Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 63.

[3] Tabarovsky, Damián. Literatura de esquerda. Trad. Ciro Lubliner e Tiago Cfer. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, p. 20.

[4] Vasconcelos, Mauricio Salles. Ela não fuma mais maconha. São Paulo: Annablume, 2011, p. 9.

[5] _________. Telenovela. São Paulo: Giostri, 2014, p. 9.

[6] Botika. Uma autobiografia de Lucas Frizzo. Rio de Janeiro: Azougue Editoria, 2004, p. 9.

[7] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p. 72.

[8] Bessière, Jean. Le roman contemporain ou la problématicité du monde. Paris: Presses Universitaires de France, 2010, p. 322.

[9] Mallo, Agustín Fernández. Postpoesía – hacia un nuevo paradigma. Barcelona: Editorial Anagrama, 2009: “Se há algo que compartilham as disciplinas que realmente podem ser chamadas de contemporâneas, é a indefinição na hora de identificá-las, nomeá-las e catalogá-las. Essas zonas indefinidas é o que comumente chamamos extrarraios” (p. 93).

[10] Deleuze, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica de Luis B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 205.