Poetas na pauta do tempo

(Lyn Hejinian e João Vário)

Lyn Hejinian (1941), poeta e ensaísta seminal na cena contemporânea dos Estados Unidos, teve seu livro My Life in the Nineties (2003) recriado de modo livre por Mauricio Salles Vasconcelos, seu tradutor em língua portuguesa (Minha Vida, publicado em 2014 no Brasil). Além da entrevista concedida ao Lápis, por ocasião do lançamento dos poemas de Desde os anos 2000 (Minha Vida) – Editora Lumme, 2020-2021 –, MSV participa, também, do site com a tradução de um dos blocos em prosa integrantes de Minha Vida nos Anos Noventa. A leitura deste fragmento se mostra imprescindível em correspondência com um trecho do admirável Exemplo Coevo (1998), livro em que o grande poeta cabo-verdeano João Vário dispõe do ano de seu nascimento, 1937, como eixo investigativo de uma incontável série de interrelações com sua vida, o destino africano, os rumos do século XX, mapeando diferentes eventos nas artes, nas Humanidades e nas ciências, na iminência da deflagração da Segunda Guerra Mundial.

Com uma voltagem impactante, dotada de forte ressonância testemunhal e documental, no compasso de uma sonda indagativa de alta qualidade, comparável aos projetos de Eliot, Pound e Saint John-Perse, referências-guia de Vário, temos aqui um extrato de outro trabalho escritural concebido por uma clara localização em dado instante da História. Eis o que lemos no andamento propositivo e simultaneamente autorreflexivo em torno de existência e linguagem, propiciado por linhas de poesia/pautas do tempo.

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LYN HEJINIAN


Eis aí um risco

de felicidade

Um happening. Uma homenagem a Flaubert. Era uma vez uma princesa que se transformou em salmão e depois saiu dali dele. Palavras nada negam – mas esta proposição é falsa, uma vez que se as palavras nada negam (ou seja, não negam), elas não podem negar (isto é, negam não). Uma palavra para guardar continentes de frutas e órgãos. Escrita-razão. É uma política, uma chance. Se recebemos nosso próprio destino ao nascer, a pergunta que se deve fazer a uma criança é como ela se comportará enquanto aguarda seu destino. Sou encaminhado para o quarto 117, mas não consigo encontrar onde – Disseram-me que existe, mas está no "mundo-dobra" para o qual meu duplo já partiu e, sendo assim, já estou lá. Foi fácil passar entre as barreiras que foram colocadas – eu apenas virei de lado e me contorci (todos por quem passei evitavam seus próprios olhos). Os animais parecem ter perdido o medo, um coelho selvagem se aproximou, um beija-flor paira no pedaço, jardim familiarizado. Onde há fronteiras há barbárie. Então o ganso cigano pulou na cama e bicou minhas coxas até que não houvesse mais formigas. Isso acabou por criar uma situação clínica, fixada em especulação. Abaixo de si o equador se enterra – mas os filósofos ao redor de um lago sempre pensam em penetrar no profundo. Bem poderia nada escrever – contagem até zero, retrocesso reserva um polo. Pane perfeita porque pura prece produz perfeição. Tenho mais é que correr e se eu quebrar nada haveria até antes. Estava parada na máquina de xerox com um curativo em meu olho oculto por óculos escuros pronta para fornecer "sob demanda" uma anedota exibida, inútil, por que explicar, meu bem, só dizendo até mais. Os abutres voaram tão perto que pude ouvir o bater de suas penas e o estranho som que emitiam, mais estalidos do que chamados, um chocalho similar a grandes sementes guardadas numa lata. Fugitivas sobrecargas de poder, espécie, estação, forma, raça, localização, gender. Multum in parva – um pequeno seixo avermelhado; multum in nihilo – faz proliferar praticantes. E aqui está uma mulher em quem uma professora da segunda série depositou fé na matemática. Tudo quanto é serviço enclausura, reclusão busca serviço. Passei por cima do trecho em livro de entomologia. De alguma forma, algo real parece a causa desta afirmação aqui ser verdadeira. Surgiram, enfim, sinais crescentes de sonhos – arrastaram-se mais adiante, seguindo a mulher emoldurada por sua cadeira, para quem tantas pausas ocorrem a ponto de fazer contagem adiante e atrás, ultrapassada a todo momento. Os alto-falantes se transferem, dando lugar aos alto-falantes internos e aos alto-falantes eles mesmos. Fatalidade não tem falha. Com 100 anos quase, a velha, cada vez mais próxima da surdez total, era capaz, no entanto, de agradecer e estender elogios aos seus visitantes, sabendo de longa data um estoque completo de frases e onde deveriam se aplicar, preparada também com saudações do tipo" é lindo ver você "ou "como você está linda ", tudo passível de cair num lugar comum qualquer. Seus sorrisos se esticaram exaustos bem no rosto. Sepultei a sinuosa serpentina do cabelo. Com todo amor, coloquei a cabeça em meu colo, mas estava de cima para baixo e parecia a de um ciclope com sua ocula dentata. Conhecemos as pessoas pelo que fazem, com certeza, mas também pelo que acontece com elas. Um cowboy vai querer ser conhecido por balançar seu chapéu para que um indivíduo real possa ser pensado pela visibilidade. Em resposta: aforismos por fora. Revelei o segredo e contemplei o fantasma de tê-lo contado. Sendo informada por minha irmã que meu sobrinho deseja obter diploma universitário em história, conversei com ele movida por um entusiasmo que eu sabia ser "contagiante" da interminável re(ou pro?)gressão que constitui as interpretações do que chamamos "história", interpretações em que cada uma delas tem uma história, a qual, por seu turno – não! ele interrompeu, não me diga isso! durante toda a minha infância, tive pavor do infinito! e é por isso que sempre quis estudar história –, é limitada ao passado! então não comece a me dizer que o passado é infinito! Aquela floresta com o riacho passando por ali agora tem o status de um parque estadual e a velha cidade fantasma no final da trilha de cinco milhas é um museu abandonado. Eu poderia preencher cadernos com coisas passíveis de serem interpretadas de forma diferente, um vômito até. Não, não estávamos afundando. O mar tem dureza. Somos avisados sobre os obstáculos da bússola e do sol, estamos sempre em preparação. Correndo em direção ao pôr-do-sol com meus olhos ensolarados, eu me espraiei no ardor. Achei os pássaros ameaçadores, mas o presságio era bom. Permanecemos dentro e fora das evidências. Eu tinha certeza de que nossa conversação, não importava o grau que a animava, não importava a força de nossos acordos ou divergências, era tudo o que se pretendia para o bem geral. Tem feito calor demais, ou melhor, o tempo se intensificou, tornando-se concentrado, de modo que todos fiquem suando como se sentissem perigo. As pessoas mais estranhas participam de eventos, alguns dos quais não duram mais que um segundo e outros se desenrolam há anos já. Uma pausa, um olhar, uma rosa, um chapéu de tricô, a passagem de um transeunte: alguma coisa no papel. Eram fanáticos, chamavam papai de Facção. Uma dispersão turbulenta de tinta na água desenhada por fontes ruma para o interior do meu mundo. É difícil se desviar de água em movimento, fogueira benéfica na qual se queimam as vestimentas. Criar sentido para os significados em transmissão é o seu significado. O curral o lote por inteiro. O seu Vil diante da minha Vidinha foi convincente alarme para a correria das enfermeiras. Pensei ter visto um cobertor amassado na cama, mas então entendi o improviso do pé sobre a cabeça. O que vive na sepultura são ossos e reputação, tudo o que jaz é experiência. Aconteceu em um piscar de olhos, mas sempre depois da lembrança do rio pela princesa – sombras salpicadas, ondulação das correntes de água quente no frio, lenta queda das pedras em riachos, na parte mais rasa. Tudo isso, se você tiver tempo.

(Tradução de Mauricio Salles Vasconcelos)

7º Bloco de My Life in the Nineties. Nova York: Shark Books, 2003.






JOÃO VÁRIO


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Ou estar aqui com os anais das famigeradas efemérides

que declaram que é homem isto que lemos

e enceleira a dádiva e a dívida

como suspeita sujeita ao melhor do seu luxo,

crepitar do fogo que o desafogo levou para os céus

e lá deixou apagar-se com a premonição e os limites;

condão de fazer com nitidez o que não houve,

mas há-de ser para que sejamos ditos,

mesmo quando o sarcasmo transbordar a labareda,

onde raros, miúdos, muito espaçados e ouvidíssimos,

os frêmitos, que são a razão de viver das quimeras,

anunciarem que contamos o que deus quis,

mas não levou para muito longe

de nós para cortar em silêncio.


Porquanto houve esse remoinho

e a brasa que ficou e a que partiu

para ser a relíquia do desafio, amostra reabilitada,

e houve o que somos, o que se quis que fôssemos

e tudo o que o azar acumula para perdoar devagar,

sem fazer todo o ruído que a desforra preconiza

e sabe que não se leva mal a organizar tanto o mal.

Mas nós, que não guiamos a certeza com o que o corpo faz,

também levamos mais para diante o que fica atemorizado,

como o carinho, a perícia, o passado propício, o nascimento,

enfim, o que não amealha muito bem a opacidade,

já que lavar a alma é o dever essencial da esperança.


Ah quanta foz diz a persistência do rio!

Todavia, a celeridade é bem um alho da perpetuidade,

esse que é da boca quando imita a parábola

sem agarrar o melhor volume divino,

porque foge com os prelúdios, a saciedade, o sufrágio.

Assim, o que destoa tanto, quando se mede a impassibilidade,

mostra-nos agora, porque já não resta

muito refúgio para o ânimo, o círculo aonde

a herança conduz, enquanto pode,

todos os momentos soberanos da indignação

e somos quanto acorda com o fôlego explorado,

logo que houve também o resgate e a extensão da melodia.

Como a deferência, a referência, a tarefa exemplar

refletem a ingenuidade e o esforço

com que durante todo o nosso tempo de vida

deixarmos atenuar junho, setembro,

o ventre de tal gravidez, a ilha insossa

e o pânico hoje rememorado como

uma baía com muita brisa preliminar,

tal não há uma madeira, uma maneira, uma urgência

para inscrever os nomes de todos os que nos precedem

ou na morte nos seguem

e nem deus o sabe porque é menos imortal

que a esperança

e só se diz do arrojo dessa peculiaridade

o que escapa ao patrimônio comum

do espanto e do milagre

que cada elo urdem entre os humanos desígnios.

Que é como quem diz: tudo o que

assim acontece sucessivamente

a terra fecha do lado da liberdade

e premedita.


Como a seu tempo, em Londres, Gabo e Ben Nicholson

Plastic and Pure plastic art (figurative

and non figurative art) editam.

(Autor: Pieter Cornelis Mondriaan, dito Mondrian,

oriundo duma família de protestantes calvinistas,

nascido em 1872, ao sétimo dia de março,

em Amersfoort, pequena cidade do centro da Holanda.)


Tal imprecisos, irrefutáveis, chegam os fados.

Dez mil soldados italianos entram

a 4 de janeiro em Espanha,

a 31 de maio couraçados alemães bombardeiam Almeria,

E Hitler, Mussolini, Ysoky Matsuoka,

tais deuses menores, inominados, o Olimpo recebe.

Não narraremos esses delírios:

apenas assinalamos o valor dos mitos.

Sabe-se que os homens são fracos, volúveis,

que esta terra é pequena e molesta,

e o bem e o mal apenas são esse tédio das eumênides,

porque, em verdade, os justos não se revoltam,

as musas são imperturbáveis

e não pode haver Sodomas e Gomorras indefinidamente,

porque o homem olha e é Deus que se faz estátua.

Tal, se nos interrogamos sobre o sentido do desvelo

ou da violência, como ele as duas metades

do nosso corpo separa, dando metade

às nossas camas e a outra metade distribuindo

por estranhos como moeda de pobre ou erva de Constantinopla,

o fundo tocamos de tal imprevidência e a abundância

que a vida reduz a essa conta divina: o âmago irreconciliável,

a casa, a mulher e tal dom da imaterialidade, da decifração.


Homem de pouca fé, porque temes o peso dos teus passos?


Imaginamos, pois, o júbilo de Benn

(esse médico de Berlim, dermatologista de sua especialidade,

poeta que ouvimos melhor que os mais,


dividido, como nós que é ele),

quando nesse ano de registro de Arthur Kopit,

de Peter Stämpfli, de Albertine Sarazin e de André Gluksman,

se muda para uma casa que ama

(ó casas que tanto peso tendes na celeridade dum homem),

essa casa sita na Bozenerstrasse, 20,

onde residirá até a sua morte, até 1956.


Ah todas as coisas são melhores que o uso delas.

E com presságios desfavoráveis ou funestas agressões

tudo está aqui disposto para a contiguidade:

importa escolher o sortilégio ou a providência

que nos convém sem crueldade desmedida.

And this is the price of life in the occident1.

We are in the rat’s alley2

where the dead men lost their bones.

Lord of his work and master of utterance

he who turned his word in its season and shapes it3.


Era o ano da criação do campo

de concentração de Buchenwald,

época do nazismo e do assassino racismo, da shoah,

o ano da Guernica, da batalha de Madri.

Porém, nesse ano controverso e incompreensível


(o mundo nunca desnudou tanto as suas maniqueias raízes)

todas as cabeças criadoras a sua vara molham e vêem.


Tal Paris uma Exposição Mundial apresenta com vasta decoração mural de

Miró, e o Pavillon des Temps Modernes, de Le Courbusier (realizado em

quatro meses, inaugurado a 17 de julho),

e Le Transport des Formes, de Léger, no Palácio das Descobertas, Le

Médecin]

Volant, de Darius Milhaud, no Teatro Scaramouche, Asmodée, de Mauriac,

encenada por Coupeau, na Comédie Française

e David Triomphant (de O Livro dos Reis se trata) que Lifar cria a 12

de junho com Yvette Chauviré na Ópera

e, entre os editores, se fala do manuscrito de La France et son armée,

terceira obra de Charles de Gaulle.

Tal De Valera a soberania da Irlanda proclama

e lhe dota da sua nova constituição,

Getúlio Vargas a ditadura no Brasil instala,

Franco a Espanha amarra no seu bigode,

Delvaux pinta Les noeuds roses, Sirènes,

Femmes arbres & Proposition diurne,

e Gershwin, Roussel, Szymanowsky

e William Gillette morrem. E Paris constrói o Trocadéro.


Que vos dizíamos nós?

Nesse ano de grandes infortúnios e de grandes obras,

o mestre do dodecafonismo

seu Quarteto No 4 para cordas compõe,

Renoir realiza La grande illusion,


Steinbeck Of mice and men escreve

E.E. Cummings em Londres publica

1/20 (One over twenty): Poems

e outro poeta, William Carlos Williams, observa:

Toda arte é objetiva. Ela não declama,

não explica. Apresenta”.


Ah certamente o mundo nunca desnudou tanto

suas maniqueias raízes como em tal tempo.

Tal foi o ano mil novecentos e trinta e sete

desta era: as chagas, os fastos, a natividade.

E a criança enferma de outrora

(como se o seu tempo de vida enchesse

de prazos e de precedências, de homologias)

vive, hoje, sob os latos signos da ciência e da poesia,

uma vida de homem falando de Hans Krebs, de Nelson Mandela,

de Osvaldo Alcântara, de Jorge Barbosa, de B. Leza

e esperando pelo inquiridor do século4

durante os meses ímpares.



Extrato do “Canto Terceiro” de Exemplo Coevo.

VÁRIO, João. Exemplos. Livros 1-9. Mindelo, Cabo Verde: Edições Pequena Tiragem, 2000. ps 438-443.














































































































































1 Pound, Cantos, Canto XXII: 105

2 Eliot, The Waste Land, II. A game of chess: 65

3 Adaptação de Lord of his work and master of utterance/who turned his work and shapes it. Pound, Cantos, Canto LXXIV: 469

































































4 Variação de Onde está o inquiridor deste século? I aos Coríntios 1: 20