ARTE – CIDADE  MATERIAL – MONUMENTOS DE VIDA 

Lais Myrrha 

(1974, Belo Horizonte, Brasil). Vive e trabalha em São Paulo, Brasil. Possui mestrado em Artes Visuais (2007) e doutorado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Realizou exposições individuais na Galeria Millan, São Paulo (2023); Pinacoteca do Estado de São Paulo (2021); Museu de Arte Blanton, Austin (2017); Galeria Athena Contemporânea, Rio de Janeiro (2017); Broadway 1602, Nova York (2017); Sesc Bom Retiro, São Paulo (2017); entre outros. O seu trabalho integra exposições coletivas no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, (2022); Museu de Arte Moderna de São Paulo (2022); Centro Cultural Maria Antônia- USP, São Paulo (2022); Galleria Ron Manos, Amsterdã (2020); Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro (2020); Bienal de La Habana (2019); Palácio das Artes, Belo Horizonte (2019); Sala de Arte Santander, Madri (2019); Bienal de Gwangju (2018); Museu de Arte de São Paulo (2017); Bienal de São Paulo (2016), Los Angeles Municipal Art Gallery (2017); e Bienal do Mercosul, Porto Alegre (2011); entre outros. Recebeu o Prêmio Homenagem Arte e Patrimônio do Paço Imperial, Rio de Janeiro (2013), Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais (2012) e Bolsa Pampulha do Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte (2003). Esteve em residência no IASPIS (International Artist Studio Program in Stockholm) em 2022.

foto: Levi Fanan

     Em sua exposição Fundamentos da Pedra (Galeria Milan, São Paulo, 2023), Lais Myrrha dá sequência à reinscrição do monumental vinculado a concepções de cidade e história. Incide nas pedras fundamentais aderidas às noções de documento, arte, nacionalidade e memória. Com um vivo sentido especulativo, a artista escava genealogias do fazer arquitetônico indissociável de lastros culturais e econômicos. Mune-se, intrigantemente, de um repertório literário mobilizante com o qual intensifica o revolvimento de camadas ideológicas, mineralmente cravadas nos modos de ver e instituir imagens-de-mundo e lugares.

Sob o influxo do Aleph borgiano, remontado às epifanias da finitude provocadas pelas oscilações visionárias do Quincas Borba machadiano, Myrrha encontra em João Cabral de Melo Neto um foco preciso e, também, indagativo acerca do propósito desmontador que a faz ganhar solo sobre o matérico, aberta a todas as dimensões dos imateriais e dos incorporais definidores de vida/arte, arquitetura/armação conceitual dos signos da criação a contar de territórios. Assim, seus projetos reveem a concepção dos mais básicos alicerces (manuais, ambientais), dispondo simultaneamente da desbravação de circuitos fabulativos incessantes, renovadores nos modos de se situar nos espaços, nos tempos e nas esferas de invenção e incisão crítica, indispensáveis à história e à arte agora.

       Em seguida, lê-se o texto escrito por Laís Myrrha na apresentação de Os fundamentos da pedra.

                                                                          MSV

foto: Ana Pigosso

A PEDRA FUNDAMENTAL

 

A pedra fundamental que marcou o espaço onde a nova capital do Brasil seria instalada não é propriamente uma pedra. O obelisco, inaugurado ao meio-dia de 7 de setembro de 1922, emblematicamente, feito de concreto armado e pintado de branco, situa-se no meio do caminho entre dois tempos: o de um passado colonial, em que as cidades cresciam ao redor de praças, com suas cruzes e pelourinhos, e o de um futuro moderno desenhado pela cidade-imagem de vastos espaços, com seus edifícios-esculturas erigidos não mais ao redor da cruz, mas sobre ela. Há quem sustente que a insistente aparição de obeliscos em nossos largos e praças são uma espécie de reminiscência, de memória dos antigos pelourinhos.

 

Foi olhando para um monumento pouco vistoso, insignificante e um tanto suspeito que comecei a esboçar esta exposição, pelo riso que me provocou imaginar políticos da época e algumas pessoas célebres inaugurando a “Pedra Fundamental da futura capital dos Estados Unidos do Brasil”, que, convenhamos, é um tanto mal ajambrada. Depois, pensando melhor, cheguei a outra conclusão. Talvez nem tenha havido celebração alguma no local, e a pedra fundamental possivelmente foi instalada por um grupo de trabalhadores que lá chegou, depois de uma longa e exaustiva viagem. Devem ter permanecido pela região por alguns dias, debaixo de um sol inclemente, com pouca água e dormindo em barracas improvisadas. Enquanto isso, em algum lugar do país, o feito devia estar sendo brindado ao redor de uma mesa farta. Meu riso cessou. Nunca soube como foi a inauguração, ou mesmo se houve alguma. Nem procurei saber. Não sei se no Rio de Janeiro o fato foi celebrado ou se motivou conspirações e protestos contra o marco que anunciava a destituição da cidade de sua importância capital com a finalidade de conectar o norte e o sul do país.

 

Continuei a olhar para aquela pálida pedra fundamental e ela frustrava minha expectativa de encontrar um grande pedaço de rocha bruta com apenas uma das faces lapidadas para abrigar alguma inscrição ou acomodar uma placa. Eu pensava que uma pedra que se preze, de nascença, como escreveu João Cabral de Melo Neto, deveria “entranhar a alma”, deveria guardar a ideia de um sítio ainda intocado pela ocupação humana ou de um tempo inorgânico. Olhar insistentemente para o branco de sua superfície, sob a luz intensa e ofuscante do cerrado, torna difícil perceber a imprecisão de suas arestas manufaturadas e faz do obelisco uma brilhante alegoria de carnaval.

 

Então, compreendi que a pedra fundamental de Brasília era uma representação, um modelo ou uma maquete de um monumento genérico (o obelisco), cuja alvura tal- vez sirva apenas para esconder as marcas deixadas no concreto pela ponta dos dedos dos trabalhadores e da fôrma precária usada em sua construção. Em resumo, o branco serve para apagar seu fundamento. Percebi que aquele triste monumento contrabandeava, de modo insólito e silencioso, operações econômicas e sociais ad- vindas desde o Brasil colônia. Era mais do que uma maquete. Era quase um ensaio daquilo que veio a seguir, a construção de Brasília.

 

Em 1922, o concreto armado de que foi feito o obelisco ainda era uma tecnologia pouco utilizada, e certamente quem o planejou não previu que esta seria a técnica predominante usada na construção da futura capital, muito menos a que ponto a imaginação de um artista (arquiteto) poderia conduzi-la. Em 1922, os problemas fundamentais que alicerçam a história da construção civil no país e os do Brasil colônia não eram tão diferentes, sobretudo naquele momento: contrabando, desvio e superfaturamento de materiais, maquiagens, penduricalhos de toda sorte, exploração dos corpos dos trabalhadores, precariedade e inventividade. De súbito, olhando ainda mais de perto a decepcionante pedra fundamental de Brasília, percebi que ela se convertera numa espécie de oráculo gigante, como qualquer outra coisa pode se converter se a mirarmos detidamente, se começarmos a pensar sobre sua história e função, sobre seus fundamentos. Como o Aleph de Jorge Luiz Borges ou o delírio de morte de Brás Cubas, vi através do obelisco uma avalanche de tempos e imagens, desde as várias igrejas mineiras recobertas com folhas de ouro e as da estória do santinho do pau oco até as pilhas e pilhas de madeira usadas nas formas para a fabricação do concreto armado que daria a Brasília sua singular aparência, me fazendo pensar nas várias soluções improvisadas encontradas durante o período de sua construção. Vi os modelos brancos e leves dos edifícios e o peso de sua concretude real. Vi que tudo era imagem, desejo, ilusão, alegoria, corpos e peso brutal, desde o início, feitos à mão.

 

Lais Myrrha 

Publicado em 12/07/2023