OFICINA ORBITAL

Inconjuntos

Silvina Rodrigues Lopes

Como indica o título da reunião de textos narrativos breves, passíveis de serem lidos numa conjugação indicadora de um único e experimental relato, Inconjuntos apresenta a poeta e grande referência da teoria em Portugal numa experiência intrigante, inovadora.

Logo desponta à leitura do livro mais recente de Silvina Rodrigues Lopes uma fiação do fragmentário. São personagens-situações que ganham a cena numa tomada tão geral quanto metonímica. Algo que aguça o trabalho de linguagem a contar de agrupamentos guiados por um senso refinado de observação e também de elipse.

Sob o signo misto da indeterminação e de uma propositiva sequencialidade, os textos se reúnem e, a um só tempo, se dispersam, de modo a produzirem um projeto construtivo capaz de incidir em posturas muito pontuais na contemporaneidade, tendo em seu movimento reiterativo traços imperceptíveis dotados de uma abrangência necessitada de crescente expansão, bloco a bloco, à medida que se compactam emergências, “expoliados”, “nevoeiros”, “exames”. Poder-se-ia acrescentar a disseminação de verdadeiros enxames grupais, topológicos, captados pela linha certeira de uma crítica comportamental e cultural extraída de um contexto bem recorrente na atualidade, extremamente corporativado.

Entre “multidões” e “romances esquecidos”, Silvina reinventa o livro de narrativa, conduzindo quem o lê para um corpo coletivo onipresente, apreendido em dimensões de sensorialidade, de apurada sensibilidade, inseparável de um percuciente sentido investigativo do que faz hoje o humano e dos modos de suscitar na arte a criação de formas e seu poder atualizador de problematização. Mesmo quando a (s) narrativas (s) ganha (m) um foco mais individualizado, lida-se com papeis, maneiras de ser/existir numa conjuntura afrontadora em que o livro de literatura se mostra como espaço de inscrição de tudo que se relaciona a juízo, lei, normatividade, núcleo de conjunto/conjunção. Quanto mais se dilaceram e se desmembram universos agregados pela tentação da síntese e por sinais acolhedores de afetos e pertenças grupais sob a tênue insígnia de uma “condição humana”. Extremada solitude e expandida multitude se intercambiam em Inconjuntos.

Mauricio Salles Vasconcelos



PERSEGUIÇÕES

Os papeis agitavam-se naquelas mãos. Eram talvez pedaços de argumentos, anotações esquecidas entre as listas de compras. Ou não era nada disso, era a perseguição do acaso em bocados de histórias como bocados de espelhos.

Repetia sempre. Esperava conseguir alhear-se de si e deixar que as palavras se espalhassem formando a escrita a decifrar de novo. Não queria exprimir-se nem confessar-se. Apenas deixar passar o que lhe partia o coração, aquela sede que se instalara e mesmo quando já não era sentida ia partindo os pedaços inermes. Tudo sem conjecturas. Pois como é que alguém podia ficar só, frente às ondas, num dia e numa noite de inverno, repetindo “amo-te”? A quem se dirigia? Era o começo e o fim de uma história extremamente lenta ou acelerada. Dos lábios que se movia não poderia vir apenas a saudade expandida. Enquanto as ondas, as nuvens e as chamas dispersavam os sons formados, estes eram lançados pelas mãos à parede branca, como quem constrói uma fogueira e se chega ao fogo. O efeito desejado era o de ver de perto e permanecer aí.

A memória em fogo. Não, não conseguia representar como se não existisse. As palavras só podia dar o seu corpo. Arrancava-se dele, abrindo umas feridas e sarando outras. Talvez por isso fosse enlouquecer sem nunca conseguir representar. Diziam que se apropriava dos papeis. Mas, na verdade apenas se esquecia

Penso em como desde sempre o fogo foi o mensageiro, aquele que devorou os papeis escritos e se aliou ao vento para que espalhasse as cinzas. Houve quem tivesse querido guardar o fogo e ignorasse o manto cinzento que ele espalhava.

A paciência vem do fogo invisível, aquele que ardendo sempre volta repetidamente como o verão, como as laranjas.

Como quando os pés tocam o chão, sem ruído e sem descrença.



PÉ EM FALSO

Quem naquele dia assistiu ao espetáculo que teve lugar na sala H deu conta de uma situação extraordinária: riscos negros, intransponíveis, sobre o chão de mármore branco, eram sinais de um desastre.

Havia pessoas dobradas sobre si próprias. Pareciam novelos ou ouriços. Por vezes rebolavam no chão. Outras vezes erguiam a cabeça que habitualmente mantinham baixa e escondida pelos braços. Expunham à luz os olhos assustados e pareciam ferir-se, retrocedendo para a posição inicial. Ficaram durante muito tempo nessa hesitação. Até que se ouviu uma música e o movimento dos corpos passou a acompanhá-la, gerando-se o ruído de uma batalha. A distância brilhava armada diante dos nossos olhos.

Ficaram ali, imaginavam-se longe dos aplausos do público. O espetáculo decorreu durante algumas horas, até que os atores, exaustos, juntaram as folhas escritas que estavam sobre a mesa e distribuíram-nas ao acaso.

Era o começo ou o fim?

Ficou a hesitação, a ameaça de um pé em falso.

Sinais e pegadas desfizeram os riscos traçados. Desapareceu o que parecia estar no olhar mais próximo. Sobre as teorias soterradas cresceram os lírios do campo. Porventura não é a vida mais do que lágrimas?

Onde os olhos ardem, aí é a realidade. Não basta ver, dizer, ser amador de enigmas e inventor de problemas. Não basta nada. É preciso entrar na voragem e desaparecer. Ver ainda o desfazer da imagem e a água que a traz.

O céu que roda antes de desabar, ou a estrela em que poisamos os olhos numa noite em que por acaso deixamos a janela do quarto aberta.



OS INQUISIDORES

Naquele dia deixou-se ficar durante quase toda a manhã sentada no mesmo banco enquanto o elétrico circulava regressando ao ponto de partida e recomeçando. Chegou ao emprego já bastante tarde e retomou a execução normal das suas tarefas, embora soubesse que estava cada vez menos ali e cada vez mais em lugar nenhum.

Então teve receio de enlouquecer. Ninguém compreendeu porque parara e todos se voltaram, inquisidores. Ficaram despertos para qualquer coisa que consideravam grave. Nunca admitiriam que exultavam com o mal alheio, mas era isso que se passava. De olhos brilhantes, sobrancelhas levemente franzidas, farejavam a caça.

Não, não é normal alguém chegar a meio de uma resposta e parar como se nada tivesse acontecido. Sem sequer se lembrar de ter esquecido alguma coisa.

Mas foi isso que me aconteceu. Parei ali, antes da palavra que, se a dissesse, iria maltratar. Assim, fiquei em suspenso, faltou-me a respiração, a memória e até o olhar passou a ser menos nítido. Não olhem para mim como se eu fosse uma fraude, uma injúria, ou até um mal irreparável. Os juízos severos têm muitas vezes efeitos catastróficos. Podem destruir montanhas ou levar as baleias ao suicídio. Parei com receio de maltratar as palavras, ou em palavras, ou com palavras. Palavras, palavras, palavras, que se repetem, e um dia...

Teve receio de enlouquecer. Que palavra teria esquecido? Continuou a balbuciar a sua inocência, aquilo que não lhe tinha permitido continuar. Já não sabia onde colocar as mãos, sentia as pernas fraquejarem, um nó na garganta. Ninguém disse mais nada. As compras foram esquecidas. E todos foram embora abanando a cabeça em sinal de “vejam só, como vão os tempos”, o que era uma maneira de sacudirem a vergonha que os assaltava e fugirem como se não tivessem percebido isso.

Fiquei eu. Apesar da vergonha, ou por causa dela.



A MULTIDÃO

Parecia-lhe que iam todos cair num molho e transformar-se num animal de muitas patas e muitas cabeças.

É isso a multidão, uma estranha onda humana que se move como se fosse um corpo apenas, feito de milhares de olhos desvairados. Garras, pés, garrafas, cartazes e muitos gritos fecham o quadro. Mas o que é uma multidão? Seriam as multidões temíveis e dispensáveis, ou apenas temíveis?

Ao afastar-se levava uma carga imensa. Caiu. Nenhum raciocínio lhe deu a mão. Foi olhando os enjaulados, cada um transportava as suas grades e protegia-as, imaginando à volta um dístico que avisava “pintado de fresco/não é permitido tocar”. Parecia-lhe que acreditavam que estavam juntos e que gritavam isso mesmo para acreditarem ainda mais, para terem em que acreditar, uma vez que nunca tinham sido ouvidos, nem por deus. Era esse o problema, precisavam de gritar e eram excedidos pelo grito que deles se apropriava e se fazia medonho como uma imitação do todo-poderoso.

Não procuravam o caminho direto do grito à violência. Era o caminho que vinha ter com eles, que lhes roubava o grito.

No final, a linguagem técnica encarregar-se-ia de fazer o saldo dos prejuízos, os sociólogos falariam de tendências e a literatura exibiria didaticamente as perversões, se possível incluindo vestígios de apocalipse.


Silvina Rodrigues Lopes. Inconjuntos. Lisboa: Vendaval, 2021.