O JÚBILO DA VIDA NA TERRA 


(Tiago Cfer)

O júbilo da vida na terra – Sobre A lágrima macrológica (Hospital Brasil), de Mauricio Salles Vasconcelos 


A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, ideias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos. 

(Robert Smithson)


E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho, nada do que não era antes quando não somos mutantes

(Caetano Veloso)



Há quarenta e cinco anos “Os limites do controle”, de William Burroughs, foi publicado pela Semiotext(e) (1978). Proferido em modo embrionário no evento Schizo-Culture (1975) – no qual participaram figuras como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jean-François Lyotard, John Cage, Michel Foucault, Ti-Grace Atkinson (dizem que Louis Wolfson esteve no evento ao modo de Kafka, uma presença fantasmal) –, o texto considera que “é uma regra das estruturas sociais que qualquer coisa que não seja necessária irá atrofiar e se tornar inoperante ao longo de um período de tempo”. Referindo-se às “sociedades de controle”, posteriormente apreendidas por Deleuze em “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle” (1990), o autor não deixa de demonstrar como elas implicam uma auto-intoxicação global generalizada.

Decorridas quatro décadas deste artigo seminal, nos vemos em pleno ano vinte e três do terceiro milênio a combater políticas letais de Estados-Capitais que, aparentemente, tomaram todos os espaços da vida.  

Apesar de o cenário à época do Schizo-Culture já fazer “1984 de Orwell parecer uma adorável utopia”, lê-se em “Os limites do controle” que uma “revolução cultural de dimensões inéditas” se realizaria com a instauração de um direito de que “toda pesquisa científica esteja sujeita ao escrutínio público, e que não deveria haver algo como pesquisa ‘ultrassecreta’”.

William Burroughs conclama o direito de o conhecimento gerado pelas pesquisas científicas estar à disposição total da sociedade e dos indivíduos, jamais restritas às forças armadas, militares de Estado. Ou seja, ele exige um desatrelamento da pesquisa das condições históricas para liberá-la ao devir.

A regressividade que testemunhamos de 2019 para cá, após todas as mutações tecno-psíquicas-sexuais que o século XXI nos entregou, força-nos a uma transfiguração do sentido do “político”. Apesar de o desastroso governo de Bolsonaro ter propagado pelo país discursos e mentalidades de ódio demencial, destrutivos de laços solidários e humanitários conquistados a muito custo, torna-se evidente que sua efetivação se sustentou, e ainda se sustenta, pela via de uma farsa ridícula e criminosa cada vez mais objetada por toda e qualquer vida inteligente. As atrocidades e os disparates políticos a que fomos submetidos nestes últimos dificílimos anos, combinados à crise sanitária da Covid-19, são indefensáveis e não têm mais cabimento no estágio de consciência que a humanidade alcançou em plena terceira década do terceiro milênio.

Neste meio hediondo, foi com grande alegria que recebi de meu amigo, companheiro de pesquisa e vida, Mauricio Salles Vasconcelos, logo após o fim do confinamento em 2022, o arquivo de seu livro produzido ao longo desse tempo de muita dor e sofrimento, A lágrima macrológica (Hospital Brasil). Fez-se necessário criarmos juntos, neste presente ano, um selo editorial para publicá-lo, a Ar Livre Edições.

O ponto mais alto do livro consiste no modo como Mauricio se apropria da “transversalidade viva”, conceituada por Félix Guattari em seu texto “Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade”. Há uma fina e belíssima maneira de o ensaísta se contrapor aos identitarismos regressivos do presente, também em sintonia com teóricos como Achille Mbembe, Laurent Dubreuil, Paul B. Preciado, Avital Ronell. E é o tratamento transversal vivo que Vasconcelos confere à ressurgência de nacionalismos de todas as espécies que eu gostaria de sinalizar neste breve texto.

Em meio ao silêncio ou à compactuação cínica da imprensa e das universidades com a situação duplamente letal e desastrosa do país (política e sanitária), sempre sob o abrigo esgarçado da liberdade de expressão e da opinião, de estudos culturais, pós-coloniais e identitários, o pesquisador e escritor transforma a dor de nossa época – quando o ser humano se vê situado/sitiado (ele reitera a proximidade entre estes dois termos ao longo do ensaio) em um estado internalar precário e degradante (hospitalar) – em força combativa, sensível, perspicaz.

Com A lágrima macrológica (Hospital Brasil), observa-se uma verdadeira mutação da política da escrita, da análise e do corpo do pesquisador/escritor. A transfiguração da lágrima macrológica, de representatividades ressentidas e magoadas, em lágrima prismática, criadora, vital, se efetiva em uma composição textual capaz de atualizar o existencialismo da revolta de Albert Camus em um estilo filosófico proveniente da “Geofilosofia” de Deleuze e Guattari. Testemunha-se aí uma espécie de júbilo da vida na terra, sempre em exposição e investigação.

Contrapondo-se ao ansiado “retorno a um normal, como se nada tivesse ocorrido”[1], Mauricio Salles Vasconcelos nos apresenta uma revolta criativa em forma de ensaio que transita entre bio-relato, ficção e teoria. Não apenas conecta argutamente filósofos, escritores e artistas para traçar um outro panorama de país enquanto compõe enunciados coletivos surpreendentes, vindouros, como também nos dá um exemplo de como a pesquisa, a apreensão e a transformação do tempo presente exigem uma metamorfose, uma mudança de atitude daquele que pensa e articula com o mundo em que vive.

Me utilizo ao menos de três procedimentos/proposições com os quais o autor subleva-se contra a pobreza de todas as ordens que acossa a realidade: a filosofia opera com a criação de conceitos que interferem e se conectam com as condições históricas, jamais visando tornar-se historicamente reconhecida, mas justamente para arrancar dessas condições o que não é histórico, o intempestivo, inatual, inorgânico, infinito; ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam o presente, ante a virulência de modos de existência e pensamento-para-o-mercado, e em meio a compromissos vergonhosos que estabelecemos com a época, a criação de conceitos apela a uma terra e um povo que ainda não existem (Deleuze e Guattari); ao contrário do ressentimento, a revolta recusa a humilhação sem exigi-la para o outro, mas reivindicando uma nova humanidade em que todas as respostas e decisões sejam formuladas por cada existente nos limites de sua inteligência e racionalidade (Camus).

A criação de conceitos, de maneira muito diversa à projeção de figuras, palavras de ordem e informações, não opera com abstrações e fórmulas de endereçamento a um futuro programado. Seu uso da razão nada tem a ver com as técnicas de controle e vigilância da racionalidade em situação. Mas se dá em uma conjunção e conexão com o meio e o ambiente sob a liberdade contingencial do encontro. Assim, a noção de lágrima macrológica não surge como forma de identificação e acusação das estruturas impeditivas e paralisantes que determinam a realidade. Nasce de condições que, sim, delimitam e asfixiam a existência. Contudo, a perscrutação dessas condições conecta o conceito ao seu aspecto fisiológico, corporal, não apenas mental e teorizante. O uso excessivo de máscaras e produtos de esterilização, o confinamento em ambientes assépticos, o temor às excreções do corpo do outro, o terror diante do estranho, o isolamento, “a lástima, o látego”[2] revertem-se em lágrima nos olhos do telespectador internalar.

A lágrima tanto revela o choro empedernido dos tiranos que agonizam e blasfemam diante do desmoronamento de sua representatividade oportunista –

Ninguém representa ninguém (...) Talvez daí decorra uma lágrima que se agiganta (...), a alastrar uma recorrência infindável. Por efeito de tal cisão básica (replicantes eus irreconciliáveis, rebatidos no abrigo do identitarismo), se mostra mais agravada pela ordem parasitária da macrológica capital...”[3] –,

Como explicam a dor e a ira de uma “minoração potencializada, autonomizada, pluralizada em seu mover multivetorial, que sofre a presença da lágrima, dela se libertando. Não obstante a dor cravada no corpo (em sua história)”[4]. Do mesmo modo, o hospital que é uma instituição de biocontrole e encarceramento também é um limite suscitador de revolta e fuga.

Como expõe Camus, o homem revoltado é um homem que diz não ao estado de coisas (“as coisas já duraram demais”; “até aí, sim, a partir daí, não”; “assim já é demais”; “há um limite que você não vai ultrapassar”), ao mesmo tempo em que diz sim ao que deseja: É por isso que o escravo revoltado diz simultaneamente sim e não. Ele afirma, ao mesmo tempo em que afirma a fronteira, tudo o que suspeita e que deseja preservar aquém da fronteira. Ele demonstra, com obstinação, que traz em si algo que “vale a pena...” e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir”[5].

 A revolta que o Brasil governado por Bolsonaro provoca no autor de A lágrima macrológica, em um contexto de pandemia e brutalidades de todas as espécies, de algum modo coincide com um certo espraiamento em seu modo de criar relações cognitivas e sintagmáticas capazes de abrirem espaço para um existencialismo geofilosófico:

A política começa aí [com a “minoração potencializada”]. (Nesse estar-aí da barragem diária de transformações, na torrente de informações sobre o que se é enquanto demarcação de limites estatísticos, computáveis). Tem um início renovador para todas as causas, quando se descartam, nos mínimos movimentos, as reincidências de poderes necrosados, que se bifurcam nas veredas da vedação, na grande lógica da autofagia (por conta de uma autoposição) em detrimento da partilha producente para todos os vivos[6].

Ao invés de veicular a imagem de um Brasil publicitário e comercial – “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil... jardim florido de amor e saudade, terra que a todos seduz...” – pos(t)ado para cartão-postal, Mauricio parte da “tarde cinza” de um vasto aterro sanitário que vem se tornando este país historicamente comandado por exploradores de todos os níveis – senhores, corruptos, milicianos, michês. Flagra o devir-lava-jato-furna-da-onça do Brasil, contrapondo à lastimável situação da nação uma memória crítica e fabuladora irrompida neste mesmo solo. Assim ele apreende Narciso em tarde cinza, romance de Jorge Mautner de 1965, ao lado da canção “Louco por você” (“tarde cinza, lágrima prismática...”), de Caetano Veloso (1979), em concatenação, por exemplo, com a ideia de “singularidade qualquer”, do filósofo italiano Giorgio Agamben, e a noção de “feminização do mundo” do escritor e psicanalista argentino, Ernesto Sinatra.

Liberando potenciais futuros detidos nos porões do passado de um país incinerador de sua própria memória, onde a cena e os eventos predominantes estão cada vez mais esvaziados de historicidade, Mauricio S. Vasconcelos compõe o seu ensaio com a força plástica e imagética de um roteiro filmado por Glauber Rocha. Promovendo uma justaposição, ou uma compenetração do velho e do novo que “toma a forma de uma aberração (...), fazendo tudo entrar em transe”, como se refere Gilles Deleuze ao cineasta brasileiro, não pretende refundar um mito nacional para justificar um projeto de nação: “não é analisar o mito para descobrir seu sentido ou estrutura arcaica, mas sim referir o mito arcaico ao estado das pulsões numa sociedade perfeitamente atual – fome, sede, sexualidade, morte, adoração”[7].

Ao vincular o antigo com o presente para desabrir uma ética e uma estética vindouras do Brasil sempre por meio da revolta pesquisadora –

a luta do humano plural, multiétnico e polissexual, diversificado culturalmente, advém de pesquisas incessantes, cartografias indispensáveis, passíveis de se colher nas refregas cotidianas concomitantemente sob o crivo das análises legadas por Mbembe, Preciado, Guattari, Agamben, Silvina Rodrigues Lopes, Pál Pelbart, Bakhtin, entre tantos aqui não citados (Suely Rolnik, Avital Ronell, Ramón Del Castillo, Sousa Dias, Eloy Férnandez Porta e a enumeração não para, embora venha de trabalhos isolados sem formação de “sistema”, de uma episteme compartimentada)[8]

–, o autor nos prepara um solo fecundo para um programa existencial alicerçado em filosofia, literatura e arte.

A lágrima macrológica, então, com sua ameaça de nos embeber e sufocar, torna compreensível a “força mutante de nossa condição trágica, inevitavelmente tática, quando se reveste de uma voltagem prismática”[9]. Algo que neste livro observo como o júbilo da vida na terra, também pode ser entendido como um chamado para sairmos (o quanto antes) deste imenso hospital que quer virar o Brasil.

 


Tiago Cfer é escritor e pesquisador. Escreveu o ensaio Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico (Ar Livre Edições, 2023). No mesmo ano, seu romance Gradiente Spectrum foi publicado pela editora Córrego (Coleção Vírus).

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[1] Vasconcelos, Mauricio Salles. A lágrima macrológica (Hospital Brasil). São Paulo: Ar Livre Edições, 2023, p. 39.

[2] Id., p. 17.

[3] Id., p. 19.

[4] Id., p. 20.

[5] Camus, Albert. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 27-28.

[6] Vasconcelos, Mauricio Salles. Op. cit., p. 88.

[7] Deleuze, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 261.

[8] Vasconcelos, Mauricio Salles. Op. cit., p. 93-94.

[9] Id., p. 107.

William Burroughs pintado por Tiago Cfer. Acrílico sobre tela, 40 x 50 cm. 

12/09/2023