Versão Bilíngue

(Juliana Ángel-Osorno)

Versão Bilíngue


Juliana Ángel-Osorno

(Migrante, linguista, professora, pesquisadora e escritora colombiana, doutoranda no programa de pós-graduação em Semiótica e Linguística Geral da USP.)

OITO

O colombiano chegou perto do brasileiro sobre o fundo verde da grama. Juntaram as cabeças como irmãos, testa a testa, amantes que dançam e ainda ensaiam um beijo, olhando um na boca do outro. Mas os lábios não estavam relaxados, desejantes. Tinham o buço molhado de tanto correr e além disso os projéteis de saliva de um molhavam a boca do outro. Os peitos estavam inchados, como os pássaros. Tudo isso eu vi na repetição. Nas milhões de repetições explicativas da cena, o contexto. Voltei para casa no uber procurando na internet todos os ângulos da briga, tentando ler nas bocas os conteúdos da raiva, consegui ler um malparido na boca do colombiano, mas logo me pareceu que não foi bem isso.

No entanto, o que eu vi primeiro, na tela do bar atrás da cabeça de uma das meninas da redação e bem por acaso, foi o colombiano, um menino, não devia chegar nos 25 anos, coitado, pegando a cabeça do brasileiro, menino também, negro, e embora não tivesse som lá perto deles eu pude ouvir com os olhos o craque do pescoço se quebrando. As mãos do colombiano o pegaram do lado das orelhas, aí sim parecia que viria o beijo, mas o giro foi tão seco, veloz, tão profissional, como se tivesse passado a vida matando galinhas. Talvez passou, menino camponês que gostava de jogar bola na infância e agora ganhava sabe-se lá quantos milhões de dólares para jogar bola para algum time estrangeiro.

O brasileiro caiu sobre si mesmo, boneco de pano, como se toda a rigidez pudesse ser tirada de um corpo assim, em um estalo. Caiu flácido, a cabeça ainda deu uma quicadinha na grama. O colombiano ficou lívido e assim que sentiu a quebra ergueu as mãos aos céus como quem encontra a polícia, ou quem pede a Deus. No primeiro caso: não fui eu, tô limpo; no segundo: fui eu mas não quis, me perdoa, Pai.

Assim acabou a cena que foi interrompida pela repetição da briga, a falta que, para fins do jogo, começou o desencontro de final trágico. Imagino que por ordem de quem quer que mande na rede de tevê não quiseram mostrar o levantamento do corpo, ou o que quer que se faça nesses casos. Porém, não desligaram, nem fizeram um corte comercial. Alguma moral ainda impede lucrar em cima de mortos que nem sequer esfriaram. Isso é falso, quem assiste o jornal sabe, muitas coisas são ganhas nesse país em cima de corpos mortos, mas são os corpos certos, né? Pode ter sido o respeito ao futebol que não permitiu o comercial de cerveja nesse momento. Esse menino era quase a vítima perfeita, mas jogava bola, era bom, ainda merecia algum respeito, imagino. Ficou apenas o simulacro circular e infinito da jogada, a queda do colombiano, o brasileiro rodando por cima, o começo da briga, os pombos amantes com os peitos inchados e as testas coladas, mas a quebra do pescoço não apareceu mais.

Houve um silêncio estranho no bar. Uns caras de verdeamarelo mais perto da tela tinham tirado os celulares dos bolsos e não falavam nem xingavam, como faziam antes de ver a imagem que eu também vi e que a rede de televisão nos negava, deixando-nos loucos. Nenhuma das meninas da redação viu, e eu não conseguia sequer chamar a atenção delas e explicar o que eu tinha visto. Foquei nos caras de verdeamarelo. Eles dariam testemunho do que vi a partir do que eles mesmos vissem nas redes sociais sendo testemunhado sobre o gesto fatal do colombiano no brasileiro. Todos nós dentro de um jogo de bonecas russas de imagens de tevês sendo reproduzidas infinitamente de tela em tela. Tinha gente no estádio, já deviam existir os vídeos nas redes.

O levantamento do corpo, a saída do colombiano com a cabeça baixa e os braços ainda em alto. Vi todos eles no carro no caminho de casa. Nessa hora todos os simulacros já tinham sido criados e quem quiser pode entrar no youtube para ver o brasileiro morto infinitas vezes. Posso dizer que as mãos do colombiano tremiam, como as minhas.

“Matou, não matou?” falei para um dos caras de verdeamarelo. Já tinha levantado da minha mesa e ido até eles, com naturalidade, como se o fato de estarmos falando da mesma coisa dispensasse cumprimentos ou explicações. “Matou”. Mas ninguém tinha a imagem, apenas a rede de tevê. Perdemos o fato e nos sobraram apenas os relatos e as imagens do antes e depois como colchetes. Assassinato vazio entre eles. Antes, a suposta causa, queda, briga, depois, consequência: corpo morto, desmaiado, apenas objeto.

Depois viriam colchetes maiores, relatos jurídicos, jornalísticos, bilíngues. Jornais da Colômbia e do Brasil falando do mesmo fato, mas de fatos perfeitamente distintos. Duas potências se saúdam, brigam, uma morre. Enchendo o vazio entre os colchetes com duas línguas irmãs, mas mutuamente irredutíveis. Duas línguas, testa na testa, cuspindo impropérios incompreensíveis ou apenas parcialmente compreensíveis uma na boca da outra. O tesão da versão, do preenchimento do fato, da recriação da vida. No meio delas, um fato reconstruído em versão bilingue.

E dentre esses colchetes maiores, dentre as narrativas em rede que procuravam explicações raciais, de gênero, esportivas, históricas, a minha. A mensagem chegou na manhã seguinte: “Manuela, vai no consulado da Colômbia achar alguma história, tenta falar com a mãe do menino, alguma coisa”. Logo depois veio outra: “nada de muito mórbido, Manuela.” E então minha testemunha veio fazer parte dessa rede, construir o fato. Curioso né? Que na era das imagens esse seja tão difícil de ver.


— E você viu.