OFICINA ORBITAL 

VOOS, PENAS E BICOS 

(Leonardo Aldrovandi)

Leonardo Aldrovandi é escritor, compositor e professor. Como escritor, recebeu os prêmios Jabuti de poesia, por Da lua não vejo minha casa, e Proac de criação em prosa, por Voos, penas e bicos. Como ensaísta e teórico, publicou O sonoro e o imaginável, pela editora Lamparina Luminosa, A ideia de espaço na música instrumental recente, pela editora Omniscriptum, e Música e mimese, pela Editora Perspectiva.

LÁPIS publica um trecho de Voos, penas e bicos, narrativa em que a experiência do autor como músico impulsiona o texto ao modo de uma instalação sonora no espaço do romance. Sob o influxo de uma escrita telegráfica, conduzida por uma vocalidade onipresente – advinda de um esmerado trabalho com a coloquialidade, no compasso de uma alta voltagem referencial –, Aldrovandi imprime dinamismo através da abertura de vértices sempre insuspeitados, envolvendo crítica cultural e intervenção em comportamentos, posturas relativas aos afetos e à sexualidade contemporâneos.

O livro incide numa inventiva concepção de romance. O universo musical comparece sempre como uma marcação obsedante e, a um só tempo, paródica, gozosa. Um evidente prazer de fabular a partir de um panorama profuso e controverso de signos fica evidenciado.

Há algo de panorâmico e, também, giratório na forma de narrar como se tudo se originasse de um longo fluxo de voz. Voos, penas e bicos surpreende, suspende as convenções do narrativo, simultaneamente ao pacto que se empreende com a vivacidade de notas velozes em torno de uma época hipermidiatizada por suportes/dispositivos. Justamente, quando a musicalidade redefine o âmbito da arte, da existência e de um gênero conhecido como romance. Por força mesma dos elos potentes que se criam entre o coro de valores/discursos/linguagens e o registro de um dado momento histórico (esse em que a tecnoesfera se esbate com o grande caos de seres barrados por mutações cotidianas concretas no que se refere a elos coletivos libertários off line). Reconfigura-se, com muito humor e despojamento, uma trilha imprescindível de autorias (no campo estrito do romanesco), em que Proust, Broch, Mann ganham atualidade (em sintonia com escritores de agora como Virginie Despentes e Jean-Jacques Schuhl) por meio do vínculo formado entre Música e Tempo. Ao ponto mais agudo e desconcertante da música do tempo.


CAMELOS NA CRIMÉIA E A POLPA DAS NÊSPERAS

Poxa, o que a minha linda vai querer de mim agora? Já não é difícil o suficiente ficar todo esse tempo distante? Ciúmes de última hora? Pô, bororo, faço tudo por ela.

Secura nos lábios em rachaduras refletidas no vidro. Leve azia de preocupação. Ciúmes da Donti? Fala sério. Logo na véspera? Vontade de ligar a tevê. Pelo menos um capítulo de Walking Dead para não bodear com isso. Don’t let the sun go down on me. King George. Corte inglesa sempre deprime, bororo. El corte inglés. Essa bebedeira, beliscão do estômago dobrado. Alívio é o pé descalço, isso sim. Elixir da vida. Não curto insinuações desse tipo. É a Gabi que atiça essa fogueira. Vive me diminuindo, achando que todos os homens são iguais, ou o que seja. Acha que por ser deusa, todo mundo só quer comê-la. E se eu falar isso pra Dafne, ela vai defender a amiga.

Algum filósofo já disse por aí. Zumbis explicam tudo hoje. Até as ninfas. Nos jogos de rede, Tuta fez amigos de vários países e, além de acalmar, afastavam um pouco os momentos de tédio ou a costumeira agitação na madrugada. Insônia é jazir na largura dos astros, seu melindroso. Com o pé direito levantado, tentou pescar um chinelo com o dedão esquerdo. Logo recalcou a vontade de se jogar na rede. Bem mais importante era ficar com a Dafne mesmo que fosse para discutir. Meu Deus, bororo, é nossa última noite! Amo tanto essa pessoa, poxa, isso tudo dá muito medo, muito medo mesmo. Será que ela vai me esperar? Tá ressabiada. Sei lá. E essa Gabi, vitrolinha do horror só na cola. Tuta esperou a ida de Dafne ao banheiro para abrir a geladeira e tomar três colheradas do leite moça aberto no dia anterior, o que reanimava sua cabeça quase de imediato. Sem mais nem porquê.

Dafne não voltava do banheiro. Tuta esqueceu do computador e passou a zapear a televisão, outra forma de baixar a tensão. Acabou caindo numa entrevista das Alterosas com um antigo colega de faculdade, músico experimental que não via há anos e que tinha ganhado certa notoriedade por inventar um instrumento meio acústico meio eletrônico simpático e engraçado. A Romilda é uma homenagem a uma cabloca robusta que fazia faxina lá em casa. Ela era praticamente da família. Tem quatro lados e cinco interfaces diferentes. Você pode fazer três tipos de síntese ao mesmo tempo, além da parte acústica ser totalmente articulável, para mãos, baquetas e arcos. Ah, velho cangalheiro, virando doce capuchinho, hein? Esse sim sabe fazer a coisa suave. Fala demais, é verdade, mas é boa gente. Melhor que o doutor Gazela, querendo conscientizar a classe média fetichi-zando estrelas da miséria. Ai, deixa eu mudar isso. Homenagem de homem cordial à faxineira dá depressão.

Take on me, take me on. I’ll..be…gone...esse vídeo revolucionou os anos oitenta. Olha o desenho da coisa, bororo. Dafne voltou para a sala. Custava a acreditar na falta de senso do próprio namorado. Ele ligou a tevê! Inacreditável. Mas no retorno dela, Tuta logo desligou. Ah bom, caititu. De costas, ela girou bem devagar e olhou com o canto dos olhos, mordendo o lábio inferior. Amor, quero te mostrar uma coisa. O que será que será? Não precisava de tantas palavras, tinha adorado uma frase simples do Chomsky que ouviu no curso do Pitzkovisky, anotou e sublinhou no caderno. O centro da linguagem não é a comunicação, mas criar, inventar e interpretar. Dafne gostava de sentir tudo com muita calma, uma dose de ambiguidade dá o tom. Ele, que já via a coisa vindo, congelou no ato a respiração.

Não conseguia raciocinar muito bem. Acabou sentando no controle remoto e religou a tevê sem querer. Ivan o terrível e a chuva de moedas de ouro. O que foi?! Não achou o liga-desliga mas conseguiu diminuir o som. Dafne chegou de pé bem próxima ao sofá-cama, dobrou com três dedos um naco da cós da calça, arqueando o corpo para a frente e apontando para a renda da calcinha. Hum, tô sendo atacado! Ai, como você é bobo, javazinho! Com os braços sobre os ombros, sentou-se de frente, sobre as pernas dele. Que está na natureza, será que será. Segundo o técnico, o barulho do sofá só mesmo com lubrificante de silício. Molas precisam do azeite. Ai, ai, aqui também. Muito azeite. A fantasia de se sentir devassa? E daí, qual o problema? Só dele. Me vestir de bibliotecária? Ai, não sei, cada bobagem! Estava na revista, a fantasia que as mulheres mais pensam é a da submissão, como a de fingir ser puta. Fala sério, muito machista. Sofá Crébillon. Está no dia-dia das meretrizes. Volta pra terra, mulher. Perfume de gardênia. Dos gardênias para ti. Essa história de que homens são machos e as mulheres devem satisfazê-los é muito ridícula. Ser dominada na cama, mas não fora dela… não é a mesma coisa? Gente, ridículo. Opressor. Como aquela editora de livros idiotas para fugir da rotina. Como viciar qualquer homem em transar com você, só você. Misógino, horroroso! Eu, hein?!

Rei da Polônia, palácio da valsa às voltas. Belos joelhos. Ao contornar os braços em torno do pescoço do namorado, Dafne lembrou de outra matéria sobre os incríveis benefícios da masturbação mútua. Efeito sobre a tez, o sono e até o estômago. Tudo bobabem, mulher. Tuta esfregou a cara nos seios da Dafne, sugando cada mamilo em sequência. A luz oscilante da tevê embaralhava a sensação visual dos corpos a qual, naquele momento, era a que menos importava. O agarra-agarra deixou Dafne mais confiante. Girava o pescoço de forma aleatória, arqueando a coluna com os olhos para o alto, era como se dançasse algum rock lento e antigo. Começou a rebolar o quadril em rodeios suaves, com as mãos passando dos ombros ao pescoço do caititu. A visão da calcinha encravada deixou-o com a respiração intermitente e entrecortada. Tuta tinha prazer especial em apanhar uma das nádegas com uma das mãos e o seio com a outra, abrindo a boca para ela ver a baba escorrendo e ficar mais maluca. Passaram a murmurar com os lábios moles. Ai, que delícia.... Pega, vai! Hum.....que tesão, cadê o óleo? Ai, ai, que delícia, mas....ai, espera.... o que que é isso!!!? Pega o óleo, vai! Ai….espera…o que que é isso? Ai, que coisa. Cadê o óleo, amor? Sai, espera aí! O que aconteceu?

Que alho? Pra que alho, linda? O cheiro excita? Eu falei óleo, amor!? Quaquaqua. Dança russa girando em mil cores. Joelhos cossacos. Olhos em transe. Ai, caititu! Não Acredito! E essa tevê aí tá com defeito! Já tinha cor nessa época? Poxa, xapralá linda! É defeito, tevê velha é assim mesmo, dura um ano e tchau. Who cares? Não acredito nisso, paramos para falar da tevê? Mas pensa bem, amor, a guerra acabou em quarenta e cinco. Casablanca é preto e branco. Eles devem ter pintado por cima, não é possível. Ai, sai de cima, não consigo alcançar o controle remoto. Peraí. Aumenta logo o som. Ainda meio ofegantes, fixaram os olhos na tela para tentar entender. O clássico em preto e branco tinha ficado colorido de repente. Entreolharam-se. Technicolor? Sei lá, Eisenstein era foda.

Puta que o pariu! Que merda! Não acredito que ela parou. Puta que o pariu, que merda! Não acredito que ele parou. Entre alhos, óleos e olhos. Não acredito que a nossa última noite vai ser assim. Puta que o pariu. Estraguei totalmente o clima! Que merda! Ridículo. Sempre isso, essa coisa meio intelectual, fico achando que não sou gostosa o suficiente, viu? Que merda! Me acha velho. Vai querer outro depois dessa. Estava tão bom.

Você ali no love e começa a falar sobre filme do Eisenstein? Sobre alho?! Fala sério! Joelhos, caras, roupas. Brenha infeliz das vozes, órbitas radiosas. Cossacos ou o meu saco, Cacilda! Sabe que o Stalin não gostou da segunda parte. Olha a caretice que virou Prokofiev. Não acredito, meu caro amigo! Notícias frescas nessa fita. Está brincando que vamos ficar nessa charanga crítica de filme cabeça. Ei, caititu, onde foi que a gente se perdeu?

BOJO DA CAÇAROLA E DENGO DO CANDEEIRO

Eita, Aroreira. Ora humildosos, ora sobervosos, ora buliçosos. You’re unbelieva-BÔÔU. Anticlímax daqueles. Apoiando o braço sobre o encosto do sofá, Dafne resolveu mudar de canal e desistir de tudo. Palavras de consolo, nugas ninharias, todas em vão. Sexo bom mesmo só no início do relacionamento? Nada a ver! Tuta foi até o espelho do banheiro. No dia dia não ligava pra isso, mas naquele momento queria ver sua própria cara. Achou-se uma besta, um tonto, um desmiolado. Ela vai querer um cara mais novo. Algum daqueles descolados da produtora. Um naco de melancolia bateu no seu peito ao sentir as pontas do cabelo. O toque que seguiu a visão disparou um lampejo de memória, ao lembrar do medo que sentia quando seu tio-avô mais parrudo lhe puxava os cachos na infância. Desorbitado, circunvagou o olhar enquanto o pescoço oscilava como um pêndulo. Vai saber? Ela vai querer alguém mais novo. Ou a Gabi. Pode escrever.

Vamos ver o que dá pra fazer. Sentiu o som do corte. Um pouco por dia, bororo. Amo essa mulher. Eisenstein que se foda. A tesoura faz o necessário. Multi-uso, também servia para cortar o envelope récem-chegado e desprezado no calor de tonelada das duas da tarde. Esfria a cabeça, bororo, a gente se dá tão bem! Isso que importa, né? Como vou ficar sem a gente rindo junto de tudo? Ah, minha tampa da panela. Foi para o quarto com a tesoura na mão. Ao abrir o envelope, resolveu conhecer a programação do festival BarbaCena, cujo acesso como artista lhe fora negado em “seleção por edital.” Segundo o parecer, preferiam convocar artistas “de várias partes do mundo.” The ghost walks, indig-enous man. BarbaCena, homenagem da cidade ao grande encenador Eugenio. Olha só como esse pessoal deglute nervuras do real, Marilena. Remoendo diversas circunstâncias e memórias, foi induzido aos relíses e fotos estilizadas dos artistas-promôuters-curêitors como forma de distração para desviar do ocorrido.

Duo Antonin. Três peças com o djembé como recorrência na performance. A primeira pretende produzir o espaço do reflexo-transparência, o vidro como devir-outro, em ritornello. O batuque em transe transformado em timbre de vidro deflagra o espaço contraditório entre um significado ritual e a forma translúcida. Na segunda, movimentos frenéticos, mas quase imperceptíveis, sons rápidos de pouca intensidade e gestos silenciosos são o material, explorando a tensão da narrativa da imagem em desterritorialidade fantasma. A terceira tem por base Para acabar com o julgamento de Deus, transvalorando sons acessórios, fisiológicos, da respiração ou guturais do grande Artaud, espaço íntimo compartilhado. Metamorfose homem-coisa, homem-bicho, homem-outro, em suma, agenciamento de desterritorialidades em devir-louco.

Tuta morde a mão e cala. Com a cigarrilha de canela nos dedos, Dafne suspira, levantando do sofá. Amor, e essa mala que não sai nunca! Você é muito enrolado. O barbeador, já pegou?

Crestzone é música criada com um gravador portátil norueguês recondicionado para facilitar a utilização na performance. A peça-performance também usa microfones, sintetizador, cordas de dulcímero magnetizadas, fitas k-sete e de vídeo encontradas em lojas de usados, gravação processada de entidades aquáticas e um cartão de transporte público. O resultado da gravação magnética em suportes não-convencionais é o de uma memória que falha, metáfora da política e da informação que se perde no vazio. O uso de fitas Betamax de segunda-mão também visa evitar qualquer facilidade em relação aos fluxos do capital. A insistência neste tipo de suporte é também uma declaração a favor do imperfeito, do inacabado e do perdido, mas também uma reivindicação no terreno do mistério, tomando relevância frente aos escândalos de má administração pública da água e do transporte, sempre abafados pela mão invisível da grande mídia.

Estereótipos de gênero? Talvez. Fico fritando esses peixes da feira. Atalhos de Attali, oleira ciumenta, antropólogo em Marte. Tentativa de ópera bufa ou a feiúra da seda pura. Antes Vertumno, claro, Ovídio. Performance, desempenho. Performance, desempenho. Performance, desempenho. Haja saco para esse papo de imanência. Não à toa, sempre o gesto ao vivo, ou gravado, mesmo que sem graça. Sempre o outro, a diferença, o nativo, despencado e esquecido depois de dez minutos. Gesto, bigorna do extravio, máscara do desempenho. Performance, desempenho. Velho Lyotard. Gesto, tão mais visível porque entra fácil em qualquer cálculo do juízo capital. Sim, como o pintor, só que com ípsilon. Sempre lembrado pela coisa errada. Hoje, até crítica só é acessada via fetiche, bororo. Dafne, vendo Tuta pirar na maionese, olhou para o alto e pensou em porque se metia naquela relação. Ele sorriu com ternura e lentidão nos olhos. Amo essa garota.