Literatura-feitiçaria-pensamento

(Ellen Amaral)

Ellen Amaral 

é linguista, mestra em Estudos Comparados (FFLCH/USP)

Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala,
na fronteira dos campos e dos bosques

Deleuze & Guattari[1]

 

A sequência de palavras mortas é uma herança matricial. A construção da frase poderia ser como a formação de um caminho? Vereda, início em presentificação?[2].  

A frase sagrada: “Isso é o meu corpo que será entregue por vós”, que propunha a incorporação e partilha corpórea sagrada, tornou-se sequência muito conhecida, reproduzida por automação, corpo nomeando o estrangeiro, e mostra que o tempo transforma na nossa relação com a escrita. Jean-Luc Nancy[3] intui que as mutações temporais deixaram o corpo siderado no espaço (2000: 07). Na tendência em fixar ritos, perdeu-se o corpo. Da presença “de carne e sangue do corpo” (2000: 06), restou o rito morto[4].

Os discursos contêm ou emparedam textos, as expressões são adestradas, endereçadas, planos prontos, hábito cultural, A feitiçaria da literatura é o retorno ao corpo; pela perda de nortes, excessos de mortes, certamente vida pedindo para passar no soterramento das sequencialidades moribundas. A imagem da escrita e do pensamento associada a uma linha-de-feitiçaria, tal como Deleuze propõe no ensaio “Literatura e Vida”,  aponta para um caráter revelador, não apenas da ordem do reconhecimento de um real reportável, reendereçável.

Achille Mbembe, em “O Tempo negro”,[5] coaduna com esse senso em que a própria vida deve “ganhar corpo” para ser reconhecida como real (2014: 213). Mbembe considera o tempo como a antecâmara do real e da morte, unindo sentidos para fazer emergir a escrita romanesca contemporânea e o processo de transmutação do tempo: “esta quase indissociabilidade de palavras, signos e imagem, não permite somente exprimir o acontecimento, mas, de um modo mais radical, manifestá-lo, numa espécie de epifania” (2014: 211).

 “Ritual”, “perda do nome próprio”, “destruição da medida” “eventos divinatórios” aparecem no texto como expressões do acontecimento na narrativa, Mbembe se refere à Escrita Viva, considera o Romance como transmutação e experiência sensorial do tempo.

Walter Benjamim, em seus ensaios acerca da Linguagem, acredita que a essência linguística seria a manifestação imediata da essência espiritual (2011: 51.)[6]. No seu entendimento, a linguagem está em tensão entre fechamentos e aberturas:

 

a imediatidade de toda a comunicação espiritual, é o problema fundamental da teoria da linguagem e, se quisermos chamar de mágica essa imediatidade, então o problema originário da linguagem será a sua magia. Ao mesmo tempo, falar da magia da linguagem significa remeter a outro aspecto: a seu caráter infinito (2011: 54).

 

David Wills (2016)[7], sobre este ensaio de Benjamin, destaca a imagem de passagem de bastão no ato criativo entre Deus e o homem, havendo uma potência na linguagem que traduz o mundo (ou o texto original). Fica claro que, em Benjamin, o ato criativo é um processo aberto que produz a vida após morte (Wills, 2016: 159). A linguagem comparece como tecnologia para tecer e traduzir vida, tendo, segundo Wills, elementos de renovação e potência no desdobramento de elos incessantes (2016: 160).

Tudo é manifestado na linguagem, a sequência viva aparece com as aproximações, com as acelerações, lembrando um jogo de “persegue - escapa” (prende e solta). O ato criativo em presença, se dá como se o corpo, enquanto “máquina rápida”, deixasse em suspenso os encaixes prontos, as discursividades controladoras, cenas montadas e a prisão num único tempo.

Quando Mbembe trata do tempo no romance, considera a escrita como elemento mais célere que os estamentos; surge o romance intempestivo, e por isso, não imperativo na sequência morta, distância e arrasto (pendente de uma retórica simplesmente verbal). Há abertura para criação de um universo do sensível, da memória refeita (2014: 209).

A potência “elástica” do tempo que Mbembe traz, junto ao jogo de “molas” de aproximação e distância com a linguagem, ao se relacionar com as noções benjaminianas, mostram o corpo de potencializações de um texto, com seus componentes presentificadores, próprios de uma transmissão viva, ao vivo, no compasso de um ato performativo pleno, multiplicador de linguagens em presença.  

O romance transposto por sequência acelerada, pari passu, seria o corpo que persiste na escrita. Aparece como imagem simultânea de ferida e cura, como o choque que reativa a vida no monstro criado por Mary Shelley.

O caminho, ou a cartografia sensível, é presença contra os emparedamentos ou feitiçaria direcionada a aberturas e respiros construídas em cada frase. Soa como  jazz ou batuque primitivo e alquímico com a linguagem que emerge vivificada. Desponta enquanto resposta corpórea aos simulacros imperantes, guiados por  formalidades, discursos e castas corporativas que nos distanciam da vida, essa a pulsar, sem fim, nos textos feitos de corpo presente.

Referências

 

BENJAMIN, Walter. “Sobre a Linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” In: Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Trad. Suzana Kampf Lages e Ernani Chaves. São Paulo: 34, 2011. p. 49-73.

CASTILLO, Ramón del. Filósofos de paseo, Madri: Turner, 2020.

DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.

___________ e GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: 34, 2012.

MBEMBE, Achille. “O tempo negro”, In: Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014. p. 207-216.

NANCY, Jean-Luc. Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Vega, 2000.

WILLS, David. “Naming the mechanical angel”. In: Inanimation: Theories of Inorganic Life. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2016. p. 153-178.

ZUMTHOR, Paul. “A Obra Plena”. In: A Letra e a Voz: A Literatura Medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo. Companhia das Letras, 2001. p. 240-262.

[1] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 2012.

[2] Parte deste ensaio é a tentativa de responder à questão: “O que seria praticar uma cartografia no interior da frase?” proposta em Oficina de Narrativa ministrada por Mauricio Salles Vasconcelos, em junho de 2023.

[3] NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega, 2000.

[4] O medievalista Paul Zumthor, em A letra e a voz (2001), ressalta certa onipresença dos corpos nos ritos religiosos e festividades medievais. Ele compara o rito de outrora com a performance plena, que produz um elo genético entre poética, música e dança. Na cultura oral prevalecia a identidade da presença, que certamente se perdeu substancialmente com o registro escrito, mais restrito ao grande público, influenciando a cultura e ocasionando a supressão do corpo nos atos performativos.

[5] MBEMBE, Achille. O tempo negro, In: Crítica da razão negra. 1. ed., Lisboa: Antígona, 2014.

[6] Em “Sobre a Linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”,  Benjamin diferencia essência espiritual da essência linguística e traça um senso que que a linguagem vive uma tensão/combate entre fechamentos e aberturas.

[7] WILLS, David. “Naming the mechanical angel”. In: Inanimation: Theories of Inorganic Life.