NOVEMBRO (Narrativas Breves) 

Maria Letícia

Maria Letícia é doutoranda na FFLCH-USP, onde concluiu seu Mestrado em Estudos Literários e Culturais


Correntes Vazias

O ônibus obedeceu a todas as paradas. No seu ritmo apressado, costumeiro. Quis descer na última parada, aquela que me deixaria mais próxima da casa do Jardim Rizzo. Se eu pudesse chamá-la de minha, teria uma cicatriz que ganhei na praia, depois de uma tormenta. Se eu pudesse chamá-la de minha, não teria meu nome, nem minha identidade, talvez minha digital e o gosto azedo que eu trouxe de outra cidade. No final da linha, eu pressuponho que a data de validade está chegando. Porém, enrijeci minha ossada contra qualquer sinal de sussurro. Me responsabilizei pela distância entre a catraca e o corredor de pedregulhos que tateio toda madrugada à procura do interruptor. E se não o encontro, me vejo livre, me sei livre da luz que me cega. Caminhar como o nyctalope, aquele cujos olhos veem no escuro. Acordo do farol ruidoso e temo pelo estrago que meu ego tenha causado, contra mim e contra todos. Espero, pois estou sempre à espera. Na paulista quando se fecha, à noite, e se torna meu território. Da ponte sinto o rio, não tão diferente do mar, que me resgata da praia. E me sinto sóbria, sempre sóbria, mas doente. A doença que me é companheira, tanto quanto o escuro. Se tenho mais alguns anos é porque a doença não me deixa ir, mas sigo indo por outros meios, do toque, da transição, do orvalho, da pose, da sacristia, do olho, da pesca, da reza, da incumbência, do último abraço que neguei a quem eu amava no leito de morte. E de nada meus pés me valem, senão para me lembrarem que preciso subir uma ladeira até o metrô e buscar o contato com os pés do outro no frio. Com as cortinas fechadas, não se faz ideia de tempo e o espaço é anulado pela presença na minha ausência. De onde partir e para onde? A clareira dos justos me persegue e tenta me reger. Com o vão que afere meus batimentos cardíacos, eu pressinto a febre subir. Sobe na minha coberta, desliza no assoalho, me captura na esquina. Tonta, eu me retiro e prendo a respiração para não vomitar. Sinto casa na multidão, com a condição de que não me veja, não me escute, apenas sinta meu movimento como o da fumaça que sai dos cigarros ansiosos. Inalo essa fumaça e não sei se agradeço a minha condição não me permitir fumar ou se condeno a privação de poder me viciar. Dentre a ordem, a desordem e a liberdade, é no caos que considero os meus passos. Me arrasto para longe, para dentro de mim e para o Butantã. Deixo a rua Rocha com o vinho de três anos atrás e obedeço a meu instinto de autodestruição, de cegueira, de colisão. Não é possível enxergar a memória. De todas as mentiras que contei, a que mais me estimula é a da origem. Origem que deserdei e que nunca existiu.



Retalhos de cetim

A rua de pastiche fechou o céu naquela noite. Podia-se escutar os grilos no portão que prenunciavam a chegada do domingo. A brevidade dos domingos, que se estende por um toldo de teimosia. O carnaval também chegava e, com ele, a cidade vazia. O comércio da esquina fechado, era um estúdio de fotografia. As crianças que moravam nas casinhas conjugadas brincavam de bola, aproveitando a falta de carros. O domingo fazia aquele pequeno pedaço de mundo parecer uma cidade de interior ou um bairro afastado da racionalidade. Mas era a ilusão que tomava conta uma vez por semana daquela avenida. Ela também tinha direito de viver um sonho impossível, fazendo jus ao carnaval, ser ao menos uma vez na vida aquilo que não é e que não se pode ser. As horas arrastavam a gritaria dos pirralhos. O sol atravessava a vidraça de verde translúcido, como água do mar, dos janelões de madeira e queimava o piso alaranjado da sala de estar. O cheiro de sargaço denunciava a proximidade do mar, a 500 metros dali. Era um dia português, que pedia comida portuguesa. O cheiro de bacalhau se misturava com o das algas, com quem nadaram antes de entrarem no forno. Dona Lila, com seu braço para sempre quebrado, pois o osso não voltou para seu lugar, orquestrava a cozinha, enquanto Preta, como gostava de ser chamada, organizava os temperos. A neta, gulosa e escolhida pela melancolia, fazia de tudo para eternizar aquela promessa de vida nos rabiscos que desenhava com um lápis grafite no chão da sala.



Orgasmo

Beirando os olhos na borda do mar, eu respirei. Senti a espuma me inundar. O som do silêncio me guiava mais para o fundo. Minha visão chegou até o horizonte. De lá, não vi mais. Queria saber o que aconteceria se eu estivesse naquele barco, sozinha. A escuridão é minha amiga. As únicas luzes que vejo vêm da orla e de algumas estrelas. O céu salpicado. Sem ninguém por perto, eu mergulharia no mar e aguardaria o meu corpo perder forma na obscuridade. Perdida na abóbada da minha mente, tomei meu tempo para a despedida. Deitei-me sob o céu, cabeça erguida para a Lua minguante. Ninguém à minha espera. Sujei meus dedos com a espuma neon. Ácida. Queimou minha película protetora. Solucei diante da impassibilidade do acaso. O grito dele, que me pareceu mais de pavor do que de prazer, me despertou do transe. Eu sabia que era hora.


Amor

Acompanhei todo o processo de amanhecer. Estava eu aqui, saindo da festa. E estava eu lá, também, na cama dele. Não de corpo presente, em matéria que se deita, mas em pensamento improvisado. Eu era a cidade. E eu era o céu. O sol não me aquecia ainda, tímido. Era aquele instante quando o tempo entra em suspensão e a madrugada toma seu último fôlego, prende a respiração antes de morrer e mudar de cor. Enquanto caminhava para o ponto de ônibus, no vestido de oncinha, encontrei uma tangerina, lisa, redonda, impecável, à espera de ser recolhida no chão do gramado. Comi, porque aqui tinha fome e sede. Porque lá, na cama, a tangerina sempre me pareceu a fruta mais bonita, vibrante, sonora, ardente e de melhor aroma. Respingando seu suco no ar, me apressei para apanhar o ônibus. O mesmo que apanho, aqui e lá. No ônibus, o outro me viu, o de pensamento em cama. De oncinha e comendo minha fruta favorita, pois ele o sabia. Disso ele sabia, não da festa à meia noite. Me disse um oi abreviado, cortado, sisudo. Aqui e lá. Engoli o último bago da tangerina, durante a manhã suspensa pelo céu anil sem fôlego.



Melancolia

Hoje ataquei meu desejo no aguardo de ontem.