ELA NÃO USA PERFUME

Felipe Souza

Felipe Souza

Doutorando da linha de pesquisa “Laboratórios de Criação — Escrita de Literatura e Teoria” (FFLCH-USP)

Quebrar tudo para desestressar. A vida que criamos para nós é uma vida de cansaço. Cecilia já sabe pronunciar a palavra stress. Já a coloca numa frase com propriedade. Já sabe falar sobre. Stress e tédio. A História do Brasil é entediante. Escreveu, quando a moça da papelaria pediu para que ela escrevesse alguma coisa, à guisa de testar uma caneta. Tédio. Se Cecília diz que está com tédio, uma série de engrenagens passam a se mover em meu interior. Atividade. Diversão. Ocupação. Como preencher aquele tempo ocioso e carente de utilidade. Carente estou do tempo descompromissado, sem pacto estabelecido com nada nem ninguém. O filme da sessão vespertina exibe homens de terno lutando. Não combinam com o sol preguiçoso que faz lá fora. Pessoas correm, apressadas no filme da sessão vespertina. A música acelera. Um êxtase a cada dez minutos. Sempre o clímax. Os adolescentes assistem filmes na velocidade 2. Porque não têm tempo para perder. Se fizermos tudo na velocidade 2, faríamos em 75 anos o que só conseguiríamos fazer em 150. Trato os adolescentes com distanciamento. Eles lá, eu aqui. No cinema, o rapaz atrás de mim não para de falar. Ele narra o filme. Antecipa cada cena. Olho para ele por duas ou três vezes nos olhos. Deve achar que estou paquerando. Está acompanhado por uma moça. A moça ao meu lado não se aguenta. Ei, cara, será que não consegue ficar calado? Você não está na sala de sua casa. O rapaz se cala, constrangido. Pede desculpas. Sua voz é nervosa. Todos olham curiosos para trás. Não havia reparado na moça ao meu lado até aquele momento. Ela falou tudo o que gostaria de falar, sem se exaltar, coisa que eu jamais seria capaz de fazer. Em dois segundos, concluo que estou fascinado pela moça ao meu lado. Ela continua vendo o filme. Ao meu lado. Como se nada tivesse se passado. Ela está sozinha. Não precisa de companhia. Eu estou bem ao lado dela, mas ela não se dá conta. Autossuficiente. Decerto sentou ao meu lado porque não tinha outro lugar disponível. Ou simplesmente porque quis. Ela faz tudo o que quer. Do jeito que quer. Já não presto mais atenção no filme. Não consigo. Fico apreensivo. O filme agora para mim é outro. Fico pensando que a qualquer momento o rapaz atrás voltará a falar. Não vai se controlar. O que a moça vai fazer depois de mais essa? Agredi-lo, talvez. Não importa o que fizer. Será o melhor, a mais sábia decisão a se fazer. Queria ter sido eu o corajoso a ter olhado para trás e falado tudo aquilo sem perder a calma, mas não fui. Sinto ganas de sair, mas estou preso ali, naquela cena. Quero ver como continuará aquilo. Quero ver a moça quando as luzes se acenderem. Ela não pisca. Deve estar satisfeita agora com a nova situação de silêncio instaurada. Nem sequer som de respiração vindo da fileira de trás. Mas tudo é frágil. Aspiro o ar com força. Quero sentir seu cheiro. Algo disperso no ar. O máximo que consigo é sentir aroma de manteiga, pipoca e poltronas de couro. Ela ri. Penso que é de mim, mas todos riem. As pessoas na tela riem. Ainda havia um filme na tela. Esboço um sorriso também. Ela não usa perfume. Não precisa. Ela se basta. Não desvia o olhar um milímetro em minha direção. A música aumenta. Créditos. Luz.



Data da publicação: 16/07/2022